domingo, 22 de novembro de 2015

A educação para a virtude e a diferença entre tolerância e indiferentismo

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

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*Artigo de Paulo Vasconcelos Jacobina 


Não se cria mais tolerância quando se nega às crianças que sequer exista um bom alimento, ou uma forma mais adequada de se alimentar, para início de conversa. Ao se negar este ensinamento às crianças, não se cria uma sociedade de tolerantes, mas uma sociedade de glutões

Na sua excelente obra ‘Cristianismo Puro e Simples’, o escritor inglês C.S. Lewis imagina, num determinado momento, uma cultura em que as pessoas se sentissem atraídas por um ‘strip-tease’ culinário. O que pensar de uma cultura assim? Trata-se de um povo faminto? Não necessariamente, diz ele. E acrescenta : ‘os homens famintos pensam muito em comida, mas os glutões também. Tanto os saciados quanto os famintos gostam de estímulos novos.’

Dentro deste mesmo mote, imaginemos uma sociedade com sérios distúrbios alimentares. Todos comem sem parar, e mais, estão sempre à procura de novas formas de comer que driblem o limite orgânico e permitam continuar o máximo possível com a comilança. Neste suposto país, cientistas descobriram uma pílula que impede o organismo de absorver calorias e outros nutrientes dos alimentos, e com isso as pessoas podem comer compulsivamente sem engordar, e mesmo sem que seu corpo jamais emita sinais de saciedade. Outros cientistas, ainda, descobriram pequenos artefatos de borracha que permitem ao comilão regurgitar o alimento mastigado sem que ele sequer vá para o estômago. Logo outros pesquisadores descobrem que as pessoas já não se satisfazem com a imensa variedade de alimentos oferecidos ao seu paladar cada vez mais voraz, e descobrem que em culturas primitivas alguns povos de ilhas distantes introduziam seu alimento pelo lado inverso do organismo, descobrindo ‘prazeres’ culinários que, segundo dizem estes cientistas, foram autoritariamente reprimidos pela cultura ocidental judaico-cristã. E começa uma ‘revolução alimentar’ no ocidente. Autores descrevem as antigas práticas religiosas de jejum como próprias de uma religiosidade fanática e castradora, e teólogos vanguardistas repudiam a ideia de que o jejum, ou mesmo a temperança, fossem autênticos ensinamento de Jesus.

O papa, então, interpelado por tais teólogos, lança uma Encíclica chamada, digamos, ‘Humanae Comidae’, condenando o uso de qualquer meio artificial como pílulas e borrachas para descaracterizar os fins naturais da alimentação, e sofre agressões de bispos, teólogos e leigos do mundo inteiro, que propõem uma ‘ ’ para substituir a ideia conservadora de que a temperança fosse uma virtude. O lema desses vanguardistas é; ‘mais tempero, menos temperança’. A gula é descrita como uma ‘inclinação natural do ser humano’, e aqueles que teimam timidamente em defender a moderação alimentar, bem como a necessidade de consumir os alimentos através da extremidade superior do organismo, são rotulados de ‘gastrofóbicos’ e acusados de desprezar os avanços científicos que nos legaram a pílula antissaciedade e a bolsinha de borracha antideglutição.

Trata-se, agora, de, a pretexto de preparar nossas crianças para conviver num mundo em que cada um come o que quiser, na hora que quiser, quanto quiser e pela extremidade que quiser, de ensinar a estas crianças que não se pode fazer nenhuma diferença ética entre nenhuma dessas formas de se alimentar, e que aqueles que quiserem são livres para jejuar na sexta-feira santa e de acreditar que a temperança é uma virtude, mas, num estado laico, não podem impor isto ao restante da sociedade. E as crianças são educadas, por decisão governamental, mesmo nas escolas confessionais, para esquecer a diferença entre saciar modestamente a fome com uma quantidade adequada de boa comida, por um lado, e empanturrar-se, regurgitar e comer de novo. Os educadores – e com eles alguns líderes religiosos e mesmo teólogos – estão absolutamente convencidos de que qualquer um que ensine temperança e mesmo ascese alimentar aos seus filhos é um tradicionalista fóbico que deve ser duramente combatido. E pedem ao Papa que não somente reconheça, mas aconselhe a todos os fiéis o uso da pílula antissaciedade, das bolsinhas de borracha regurgitadoras e da alimentação pela extremidade inversa não somente como toleráveis, mas até mesmo como desejáveis – já que o uso dessas técnicas até mesmo reduziu a obesidade da população, os índices de açúcar e colesterol e, por consequência, doenças como o enfarto e a hipertensão, sem necessidade de questionamentos moralistas sobre ascese e temperança, cientificamente ultrapassados – dizem eles. A resistência do Papa neste ponto, alertam, é só uma prova de que a Igreja Católica é ultrapassada e não sobreviverá ao futuro da humanidade esclarecida.

Escritores lançam livros sobre esta ‘nova forma de comer’, e soam muito futuristas e vanguardistas para todos. Os educadores católicos temem ser ultrapassados pelas escolas laicas, que estão preparando seus alunos desenfreadamente para este mundo novo e certamente terão melhor desempenho nas provas públicas para o ensino superior. ‘Velhos preconceitos religiosos não podem prejudicar nossos alunos’, dizem. E introduzem disciplinas de reeducação gastronômica em suas próprias escolas.

Nste ponto, o grande C. S. Lewis acrescenta : ‘Não existe muita gente que queira comer coisas que não são alimentos ou que goste de usar a comida em outras coisas que não a alimentação. Em outras palavras, as perversões do apetite alimentar são raras. As perversões do instinto sexual, porém, são numerosas, difíceis de curar e assustadoras. Desculpem-me por descer a esses detalhes, mas tenho de fazê-lo. Tenho de fazê-lo porque, há vinte anos, temos sido obrigados a engolir diariamente uma série enorme de mentiras bem contadas sobre sexo. Tivemos de ouvir, ad nauseam, que o desejo sexual não difere de nenhum outro desejo natural, e que, se abandonarmos a tola e antiquada ideia vitoriana de tecer uma cortina de silêncio em torno dele, tudo neste jardim será maravilhoso.

Não é à toa que, em nossos catecismos – no tempo em que eram considerados documentos valiosos para a catequese e a educação cristã – a concupiscência alimentar está colocada no mesmo plano da concupiscência sexual. No esquema catequético da chamada ‘tríplice concupiscência’ (1Jo 2, 16-17), a gula e a luxúria estão inseridos na ‘concupiscência da carne’. Por isto, a parábola acima pode ser bem útil para entender o que exatamente está ocorrendo, hoje, no campo da educação sexual, o mote parece ser : ‘eduquemos as crianças para conviver num mundo em que não há diferenças éticas entre comportamentos sexuais, em nome da tolerância’.

Mas já não se trata de tolerar, ou seja, de aprender a aceitar que o outro é diferente e deve ser respeitado na sua diferença. Para isto (usando a mesma metáfora) precisaríamos dar às crianças, primeiro, o bom alimento, para que depois elas fossem educadas no sentido de que nem todos escolherão o bom alimento, e não devem ser repudiadas por isto. Não se cria mais tolerância quando se nega às crianças que sequer exista um bom alimento, ou uma forma mais adequada de se alimentar, para início de conversa. Ao se negar este ensinamento às crianças, não se cria uma sociedade de tolerantes, mas uma sociedade de glutões.

É claro que a concupiscência da carne é somente uma das três dimensões da concupiscência humana. E nem é a mais grave. O mais grave é que estamos ensinando, em nome da tolerância, que não temos o direito, como sociedade, de distinguir entre virtude e concupiscência, e que qualquer um que o faça é um moralista conservador ultrapassado. E promovemos a concupiscência, ensinamos a concupiscência, a título de preparar nossas crianças a viver num mundo plural. E mais, acreditamos mesmo que o avanço da ciência, no sentido de reduzir ou eliminar as consequências da concupiscência, mudam a própria moralidade das condutas concupiscentes. Isto é falso. E dizer isto não é intolerância, mas lealdade com a verdade.

Este é o último e mais profundo problema : ‘o que é a verdade?’ (Se a pergunta ‘o que é a verdade?’ deve pautar nossa educação, estamos num mundo em que Pilatos triunfou sobre Jesus). Mas um mundo relativista nega que a verdade sequer exista – e crê, portanto, que educar é simplesmente mostrar todos os fatos às crianças, para que elas próprias experimentem e construam seu próprio código moral. Não pode ser assim. Ninguém espera que seu filho se atire do último andar de um edifício para descobrir a lei da gravidade. Também não devemos ter receio de transmitir para eles os nossos próprios valores filosóficos, religiosos, éticos e culturais, ao lado do ensinamento de que devem conviver em paz com os diferentes. Porque, se não o fazemos, já não nos importamos com o desenvolvimento da capacidade de discernir, que é a essência da educação. Num mundo em que não há verdades, a rigor não há tolerância, mas indiferentismo. 


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