Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)
*Artigo de Cardeal Dom Orani João Tempesta, O. Cist.,
Arcebispo Metropolitano de São Sebastião do Rio de Janeiro, RJ
‘Vivemos momentos complexos em nossa sociedade!
Perseguições, vilipêndios, martírios, intolerâncias, fanatismos ideológicos,
culturais, sociais e religiosos, laicidade mal compreendida, o Estado ocupando
o lugar da família na educação dos filhos, promessas de solução da violência
juvenil com encaminhamentos falaciosos, intolerância religiosa em todos os
níveis e certo anticatolicismo espalhado pelo mundo. Sabemos que nesse tempo de ‘mudança de época’, todos estes conceitos
e práticas arraigadas em filosofias e visões do mundo, que já há séculos vêm
sendo fermentadas na sociedade, devem passar por uma reflexão profunda para que
possamos escolher o melhor caminho para o futuro. Estamos colocados diante de
uma situação que necessita de um grande discernimento.
Já
há muito tempo que no Brasil e no exterior acompanhamos as manifestações de
intolerância religiosa em várias modalidades e contra os mais diversos credos,
mas também um aumento da violência e insatisfação com revoltas. Existe um clima
da necessidade de tempos novos no ar! Eis a oportunidade de uma séria reflexão
e escolhas para o futuro. Aparece um direcionamento para banir da sociedade em
geral os valores humanos transcendentais e sagrados em favor de um laicismo
agressivo, fanático e intolerante.
Quando
recebi, no Palácio São Joaquim, na manhã do dia 19 de junho, sexta-feira, a
menina Kailane Campos, de 11 anos, que foi atingida por uma pedrada na cabeça
por ser reconhecida pela sua religião porque estava vestida com as roupas
próprias do Candomblé, na Vila da Penha, aqui no Rio de Janeiro, além do fato
pessoal, pude ver no gesto com uma criança uma terrível intolerância religiosa
que chegou também em nosso país, infelizmente. No citado encontro, em nome da
Arquidiocese, ocasião em pude expressar a nossa solidariedade e reafirmar sua
abertura ao diálogo com outras religiões, contamos também com a presença da avó
de Kailane, Kátia Marinho, que estava com a menina no momento da pedrada.
Representantes da Comissão Arquidiocesana de Ecumenismo e Diálogo
Inter-religioso e da Comissão de Combate à Intolerância Religiosa também
participaram da reunião. Este foi um dos fatos dentro de tantos outros que
ocorreram aqui no Brasil e no exterior.
Neste
ano em que comemoramos os 50 anos da conclusão do Concílio Vaticano II é bom
recordar que ‘a Igreja, por conseguinte,
reprova toda e qualquer discriminação ou vexame contra homens por causa de raça
ou cor, classe ou religião, como algo incompatível com o espírito de Cristo’.
E ainda recorda, citando 1Ped 2,12 : ‘Quanto
deles depende, mantenham paz com todos os homens, de modo que sejam
verdadeiramente filhos do Pai que está nos céus’ (Nostra Aetate 5).
Os
fatos atuais devem nos levar à reflexão e à tomada de consciência quanto ao
nosso respeito pelo próximo e pelos valores religiosos que lhe são
subjetivamente caros, dado que ele, na fé cândida, pratica seu culto sem
prejudicar o bom andamento da reta ordem e sem desrespeitar os demais credos
religiosos da sociedade pluralista em que vive. Ora, se ele respeita, por que
não mereceria reciprocidade?
Aliás,
a própria Bíblia, Palavra de Deus escrita, nos adverte sobre isso ao nos
ensinar o seguinte : ‘Não faças a ninguém
o que não queres que te façam’ (Tb 4,15), ou ‘Tudo aquilo, portanto, que quereis que os homens vos façam, fazei-o vós
a eles, pois esta é a Lei e os Profetas’ (Mt 7,12). Não está já aqui um importante ponto de
reflexão sobre a nossa conduta humana com relação a quem professa uma fé
diferente da nossa?
Não
pensemos, contudo, que são fatos isolados estes que estamos abordando; não,
eles parecem mais ou menos organizados, como dizíamos, para derrubar tudo o que
represente algo de sagrado na humanidade, a fim de dar lugar a um secularismo
doentio e desumano, pois, feito para Deus, o ser humano não descansa enquanto
não repousa n’Ele já, provisoriamente, aqui neste mundo e, definitivamente, na
eternidade.
Nós
lamentamos muitas situações de intolerância! Que se veja os martírios dos
cristãos, que se reflita sobre o vilipêndio e desrespeito aos templos
queimados, a imagens religiosas tanto no exterior como aqui entre nós. Em
alguns lugares se proíbe e se destrói, em outros (como aqui), além de quebrar,
vilipendiam como que insultando todos os que têm nesses símbolos um sinal
querido e amado.
Creio
que necessitamos de uma reflexão aprofundada, que gostaria de iniciar mesmo
sabendo que isso merece um pouco mais de considerações. Vamos iniciar com uma
abordagem sobre as orientações laicas, que desejam manipular as religiões e
seus ensinamentos.
Dois
pronunciamentos mais ou menos recentes nos fizeram constatar isso e, por essa
razão, é oportuno que nos atentemos a eles, ainda que de passagem. O primeiro
vem do Sr. Vincent Peillon, ministro da Educação na França, em 2013, com as
seguintes palavras : ‘Até agora foi feita
uma revolução essencialmente política, mas não a revolução moral e espiritual.
Deixamos à Igreja Católica o controle da moral e do espiritual. Agora é preciso
substituir tudo isso (...). Jamais poderemos construir um país de liberdade com
a religião católica. É preciso inventar uma religião republicana que deve ir
junto com a religião material, religião que, de fato, é a laicidade. E é por
causa disso, aliás, que no início do século XX se começou a falar de fé laica,
de religião laica’ (Obedecer antes a
Deus que aos homens, p. 84).
O
segundo discurso é bem recente, parte da Sra. Hillary Clinton e foi proferido
em 24 de abril último no Lincoln Center de Manhattan. Ali, ela expôs de modo
claro que ‘os códigos culturais
profundamente arraigados, as crenças religiosas e os enfoques culturais devem
ser modificados’, desde que privem a sociedade de desfrutar da ‘saúde reprodutiva’, termo ambíguo
denunciado mais de uma vez pela Santa Sé como fruto de engenharia de linguagem
para designar o aborto.
Indo
além, a pré-candidata à presidência dos Estados Unidos, na convenção de seu
partido, defendeu um Estado autoritário e controlador ao declarar que ‘os governos devem empregar seus recursos
coercitivos para redefinir os dogmas religiosos tradicionais’. Essa coerção
levaria à troca dos dogmas religiosos pelos do Estado laicista e perseguidor
das religiões, uma vez que estas lembram o Transcendental. Lembram que nenhum
poder têm os governantes deste mundo se ele não vier do alto (cf. Jo 19,11).
A
fala da Sra. Clinton causou grande repercussão nos Estados Unidos, de modo que
Bill Donohue, dirigente da Catholic League, pode declarar que ‘nunca antes se viu um aspirante à
presidência dos Estados Unidos atacar diretamente os ensinamentos da Igreja
Católica’, mas até aí chegou a intolerância religiosa naquele país que
sempre se arvorou em defensor das liberdades individuais ou do homem livre.
Esses
discursos que não se intimidam em deixar transparecer o ódio à fé católica e
cristã em geral vão além em outras falas ou escritos que também atacam a
religião de uma maneira mais ampla, como se fosse ela um grande mal para a
humanidade e precisasse ser extirpada a fim de que o ser humano pudesse ser
feliz, segundo dizem. Na realidade, porém, se dá exatamente o contrário,
conforme asseguram renomados estudiosos : a fé é um alimento propulsor da
humanidade para o progresso desde a Antiguidade até nossos dias.
Sim,
o sinântropo, ou o homem de Pequim, por ter os vestígios descobertos em
Chou-Kou-Thien, a 50 km da atual capital da China, intriga os estudiosos por
revelar três aspectos muito importantes : a) sabia produzir e usar o fogo, algo
impossível a infra-humanos; b) utilizava instrumentos devidamente talhados ou
trabalhados, reveladores de capacidade de invenção e reflexão, dado que
preparavam um objeto com finalidades bem próprias; c) expõem grande respeito
perante o mistério da morte, com ritos fúnebres, que dão a entender uma crença
no além ou numa Divindade. Daí constatar Bergounioux : ‘Seria imprudente deduzir desses fatos (os três atrás recenseados)
conclusões demasiado precisas. Contudo, é necessário registrar cuidadosamente
essas manifestações de vida de uma tribo ditadas por preocupações já não
meramente materiais e já características de uma consciência religiosa que
veremos expandir-se e aprimorar-se no homem da etapa seguinte’ (Les Relligions des Prehistoriques et des
Primitifs, coleção Je sais – jê crois nº. 140. Paris, 1958, p. 14 apud E.
Bettencourt, OSB. Teologia Fundamental. Rio de Janeiro : Mater Ecclesiae, 2013,
p. 43).
O
famoso psicanalista Carl Gustav Jung, mais recentemente nos assegura o seguinte
: ‘De todos os meus pacientes na segunda
metade da vida, isto é, tendo mais de trinta anos, não houve um cujo problema
mais profundo não fosse constituído pela questão de sua atitude religiosa.
Todos, em última análise, estavam doentes por ter perda daquilo que uma
religião viva sempre deu em todos os tempos a seus adeptos, e nenhum se curou
realmente sem recuperar a atitude religiosa que lhe fosse própria’ (cf. N. da Silveira. Jung : vida e obras, p.
141s).
Visto
isso, não é mais possível negar o valor da religião, do sagrado entre os
homens, pois sem Deus, como instância superior, o homem se torna lobo do homem
e se arroga no direito de ocupar o lugar do Criador, a fim de menosprezar o seu
próximo seja por ideologias de cunhos totalitários que conseguiram chegar ao
governo de alguns países, seja por outras que – como a ideologia de gênero –
vai tentando se implantar nos programas educacionais de nossos municípios para
procurar deixar Deus e a natureza humana em segundo plano a fim de manipular o
homem e a mulher segundo os caprichos desses mesmos ideólogos de plantão. Mas
toda religião bem vivida se opõe a isso e a outras formas de opressão. Daí o
desejo de removê-las do caminho revolucionário de qualquer modo.
Uns
optam por ridicularizá-la intelectualmente, outros por persegui-la a partir de
sistemas de governo autoritário, outros ainda por meio de recursos de
manipulação de linguagem ou da hipocrisia verbal, que vai substituindo
conceitos clássicos por novas linguagens, desejam nos fazer crer, quase sem
perceber, que é necessário apagar da sociedade tudo o que ainda nos leve a
Deus. Já alguns outros preferem o ataque frontal com bombas, pedras, tiros,
pichações em templos, destruição de imagens ou símbolos religiosos diversos. É
a intolerância em seus vários níveis e que precisa ser combatida.
Daí,
em 1º de janeiro de 2011, por ocasião do Dia Mundial da Paz, o Papa Bento XVI
pedia : ‘Diante das tensões ameaçadoras
do momento, especialmente a discriminação, o abuso de poder e a intolerância
religiosa que hoje atingem particularmente os cristãos, eu volto a fazer um
convite premente para que não cedam ao desânimo e à resignação’. (...) ‘Eu exorto todos a rezar para que os esforços
feitos por muitos lados para promover e construir a paz no mundo tenha um bom
resultado’, dizia.
Também
o Papa Francisco nos exorta : ‘No mundo e
nas sociedades existe pouca paz, também porque falta diálogo e há dificuldade
de sair do horizonte limitado dos interesses próprios, para se abrir a um
confronto verdadeiro e sincero. Para que haja paz é preciso um diálogo
persistente, paciente, forte e inteligente, para o qual nada está perdido’
(...). ‘Nós, líderes religiosos, somos
chamados a ser verdadeiros ‘dialogantes’, a agir na construção da paz, e não
como intermediários, mas como mediadores autênticos. Os intermediários procuram
contentar todas as partes, com a finalidade de obter um lucro para si mesmo. O
mediador, ao contrário, é aquele que nada reserva para si próprio, mas que se
dedica generosamente, até se consumir, consciente de que o único lucro é a paz.
Cada um de nós é chamado a ser um artífice da paz, unindo e não dividindo,
extinguindo o ódio em vez de conservá-lo, abrindo caminhos de diálogo em vez de
erguer novos muros! Dialogar, encontrar-se para instaurar no mundo a cultura do
diálogo, a cultura do encontro’. (Papa
Francisco. A Igreja da misericórdia : minha visão para a Igreja. São Paulo :
Paralela, 2014, p. 97-98).
Se
essas palavras se fizerem ações em nossa vida, na de todos os líderes
religiosos, ou não, certamente o mundo terá alcançado uma fase da civilização
do amor e teremos menos guerra e mais paz em todos os meios, a começar em nossa
casa, na nossa rua, no nosso bairro, na nossa cidade até estender-se pelo país
e pelo mundo inteiro. Isso, no entanto, tem de começar de nós, de nosso
coração, de dentro para fora e não o contrário.
Ainda
recordando o cinquentenário do Concílio Vaticano II é bom salientar que : ‘... ainda existem regimes que, embora reconheçam
em sua Constituição a liberdade do culto religioso, levam assim mesmo seus
poderes públicos a empenhar-se em afastar os cidadãos da profissão da religião,
dificultando ao máximo e pondo até em perigo a vida das comunidades religiosas’
(Dignitatis Humanae 15). E ainda : ‘os homens todos devem ser imunes da coação
tanto por parte de pessoas particulares quanto de grupos sociais e de qualquer
poder humano, de tal sorte que em assuntos religiosos ninguém seja obrigado a
agir contra a própria consciência, nem se impeça de agir de acordo com ela, em
particular e em público, só ou associado a outrem, dentro dos devidos limites’
(DH 2).
Só
assim será possível dizer um basta bem forte a todo tipo de preconceito
religioso ou social injusto, e juntos afirmar que somos, realmente, filhos de
Deus e irmãos e irmãs de verdade querendo um mundo mais justo, humano e
fraterno e agindo para que isso realmente aconteça. As pedras, as
intolerâncias, os vilipêndios, os martírios, os escritos ou desenhos difamando
símbolos religiosos, a compreensão maldosa do estado laico e tantas outras
situações nos fazem pensar sobre qual a direção de nossa sociedade. Verdi, ao
escrever a ópera Nabucco, em 1842, fez com que o cântico do ‘coro dos escravos hebreus’ servisse
analogamente para despertar o nacionalismo italiano quando estavam dominados
por forças estrangeiras, recordando a saudade da liberdade ‘ó minha pátria, tão bela e perdida’
sonhando com os pensamentos navegando por asas douradas! Para nós, cristãos,
hoje esse anúncio é claro : é nesse momento que nós anunciamos o Cristo
Ressuscitado e somos testemunhas da esperança neste mundo mudado, cansado e
abatido. Cristo venceu a morte e o pecado e n’Ele nós vivemos, nos movemos e
somos!’
Fonte :
* Artigo na íntegra de http://www.cnbb.org.br/outros/dom-orani-joao-tempesta/16757-a-esperanca-nos-move