*Artigo de Cardeal Dom Orani João Tempesta, O. Cist.,
Arcebispo Metropolitano de São Sebastião do Rio de Janeiro, RJ
‘‘A ideologia de gênero é uma tentativa de
afirmar para todas as pessoas que não existe uma identidade biológica em
relação à sexualidade. Quer dizer que o sujeito, quando nasce, não é homem nem
mulher, não possui um sexo masculino ou feminino definido, pois, segundo os
ideólogos do gênero, isto é uma construção social’ (Dr. Christian Schnake,
médico chileno e especialista em Bioética,
Ideologia de gênero: conheça seus perigos e alcances. Destrave. Canção
Nova, acessado em 2/6/15), conforme expus em Nota Pastoral recém-publicada.
Até o fim de junho os municípios votarão sobre
a inclusão no PME
Ora,
essa ideia, que vem sendo difundida como palavra de ordem nos últimos tempos,
apareceu no Plano Nacional de Educação (PNE), mas, graças à mobilização das
forças vivas e atuantes do Brasil, contando, inclusive, com alguns Bispos, foi
banida. Agora, porém, volta ao Plano Municipal de Educação (PME). No mínimo
isso é uma incoerência : colocar no plano municipal o que não consta no
federal! Cada município ficará, pois, por meio de seus vereadores, responsável,
diante de Deus e de seus munícipes, de excluir (se, obviamente, já estiver no
texto), até o fim de junho, a revolucionária ideologia de gênero para as
crianças e adolescentes em fase escolar atendidas pela rede municipal de
ensino. Arbitrariamente, algumas atitudes federais já inserem alguns tipos dessa
ideologia em nossas escolas, mesmo através de livros e outras decisões por
decreto. Querem transferir para a orientação da escola aquilo que as famílias
são chamadas da passar aos seus filhos.
De
um modo amplo, ideologia é um termo que se origina dos filósofos franceses do
século XVIII, conhecidos como ideólogos (Destutt de Tracy, Cabanis etc.) por
estudarem a formação das ideias. Logo depois, passou a designar um conjunto de
ideias, princípios e valores que refletem uma determinada visão de mundo, orientando
uma forma de ação, sobretudo uma prática política. Hoje, o termo ideologia
parece ser amplamente utilizado, sobretudo por influência do pensamento de Karl
Marx, na filosofia e nas ciências humanas e sociais em geral, significando o
processo de racionalização – um autêntico mecanismo de defesa – dos interesses
de uma classe ou grupo dominante para se manter no poder (cf. H. Japiassú e D.
Marcondes. Dicionário Básico de Filosofia. 3ª ed. rev. e ampl. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 1999, verbete ideologia).
Bases dessa ideologia
Ora,
esta base é que sustenta a ideologia de gênero, cujas raízes merecem ser, em
suas várias vertentes, conhecidas pelo povo brasileiro.
Pois
bem, no período entre as duas grandes guerras mundiais (1918-1939), estudiosos
de diversas áreas – Filosofia, Sociologia, História, Economia, Psicologia etc.
– ligados à chamada Escola de Frankfurt, se puseram a criticar tanto a
burguesia capitalista quanto o comunismo extremado, ou seja, aquele de fundo
marxista-leninista dogmático. Em seu lugar, propunham um marxismo sorridente,
capaz de se difundir no Ocidente dado que aqui se faziam muitas ressalvas ou
críticas ao modelo comunista russo implantado no governo desde novembro de
1917.
Esse
comunismo, mais aberto para enganar os ingênuos, trazia em seu bojo a filosofia
marxista da luta de classes, na qual, segundo o filósofo alemão
Frederick Engels, em sua obra ‘A Origem
da Família, da Propriedade e do Estado’, escrita em 1884, ‘o primeiro antagonismo de classes da
história coincide com o desenvolvimento do antagonismo entre o homem e a mulher
unidos em matrimônio monogâmico; e a primeira opressão de uma classe por outra,
com a do sexo feminino pelo masculino’ (New York, 1972, p. 65-66).
Pois
bem, essa luta de classes no modelo tratado por Engels foi unida às teorias de
Sigmund Freud (1856-1939) e transformada também em luta de sexos, na qual a
mulher seria a classe oprimida e o homem a classe opressora. A libertação viria
no momento em que as mulheres se soltassem sexualmente, praticando a genitalidade
sem barreira alguma. Mesmo o ‘incômodo’
do filho teria solução : a Rússia legalizou o aborto já no ano de 1920, visto
que ainda não se conhecia a pílula anticoncepcional e muito menos os fármacos
abortivos.
Infelizmente,
tudo isso não foi libertador, mas tornou muitas mulheres, sempre tão queridas
por Deus, novas escravas, não mais apenas vítimas dos homens, mas de si mesmas,
dado que, talvez na ânsia de se libertarem, acabaram pagando o alto preço dos
efeitos colaterais da libertinagem, especialmente com o aumento da
prostituição, do consumo de álcool e de outras drogas, das pílulas
anticoncepcionais, das pílulas do dia seguinte (abortivas) e do aborto
cirúrgico, cujas sequelas no corpo e na mente podem ser danosas para sempre.
Afinal, nenhuma mulher com uma boa formação humana e cristã, por sua natureza
materna inata, dormirá em paz depois de pensar que assassinou o próprio fruto
do seu ventre.
Logo
depois se assomou a isso tudo o construtivismo social. Que ensina
essa escola? – Ensina a desconstrução da realidade, e, com Jaques Derrida e
Michel de Foucault, foi também aplicada à sexualidade. Para eles não existe a
realidade (objeto) nem o homem que descobre a realidade (sujeito), mas apenas a
linguagem que produz os objetos ao lhe dar os nomes que os classifica e
caracteriza.
Essa
linguagem, porém, é fruto de mera construção social que atribui a ela o valor
semântico que quiser. Daí serem esses valores mutáveis como a sociedade, de
modo que o modelo cultural atual é responsável por destruir o anterior, e assim
sucessivamente, inclusive no campo moral. Reina, portanto, o relativismo, e,
para Foucald o pansexualismo : tudo giraria em torno da sexualidade.
Com
o existencialismo
ateu, dá-se um passo além, especialmente por obra de Simone de Beauvoir.
Esta ensina que ‘não se nasce mulher, mas
você se torna uma mulher; não se nasce um homem, mas você se torna um homem’.
O gênero seria uma construção sociocultural sustentada pela experiência. Ora,
se a experiência da mulher foi a de ser dominada pelo homem ao longo da
história, na visão de Beauvoir, toda hierarquia deveria ser eliminada da vida
pública e privada para dar lugar a relações de igualitarismo marxista (não de
igualdade cristã) entre os seres humanos.
Chega-se,
assim, ao feminismo de gênero como uma espécie de síntese de todas essas
correntes que, brevemente, apresentei acima. Esse tipo de feminismo supera o
anterior que o preparou, ou seja, aquele feminismo inicial desejoso de que a
mulher fosse equiparada aos homens. Descreve bem essa evolução feminista a
seguinte declaração de Shulamith Firestone : ‘Para organizar a eliminação das classes sexuais é necessário que a
classe oprimida se rebele e assuma o controle da função reprodutiva..., pelo
que o objetivo final do movimento feminista; isto é, não apenas a eliminação
dos privilégios masculinos, mas da própria diferença entre os sexos; assim, as
diferenças genitais entre os seres humanos nunca mais teriam nenhuma
importância’ (The dialectcs of Sex. Nova York: Bantam Books, 1970, p. 12).
Tudo
isso leva-nos ao cerne do gênero, que é a permissão para que sejam eliminadas
(como se isso fosse possível) todas as diferenças entre os sexos, complementando desse modo o que
propusera o feminismo anterior ao pregar o seguinte : ‘a raiz da opressão da mulher está em seu papel de mãe e educadora dos
filhos. Por isso deve ser liberada de ambas as tarefas, através da contracepção
e do aborto e da transferência da responsabilidade da educação dos filhos para
o Estado’ (J. Scala. Ideologia de gênero. São Paulo: Katechesis/Artpress,
2011, p. 21). Estejamos atentos a algumas leis que já existem em que o Estado
interfere na família e educação dos filhos.
A
partir dos anos de 1980, todos esses ideólogos do feminismo antigo ou de gênero
se uniram a outros lobbies e passaram a combater a família monogâmica e estável
como um estorvo para a liberdade sexual imaginada desde os anos de 1960 para
todos, a fim de destruir os planos perfeitos de Deus e, em seu lugar, impor os
planos falhos da criatura.
O
ser humano, como pessoa, nunca pode ser usado como um instrumento ou um objeto,
mas deve ser contemplado e amado como tal, sendo dotado de dignidade e valores.
A negação da transcendência afeta diretamente a dignidade da criatura humana.
Pois como disse São João Paulo II : ‘a
divindade da pessoa humana é um valor transcendente, como tal sempre
reconhecido por aqueles que se entregam sinceramente à busca da verdade’ (cf.
Mensagem de sua santidade João Paulo II
para a celebração do XXXII Dia Mundial da Paz: 1 de janeiro de 1999).
Expressão de autoritarismos
Analisando
essas ideologias supracitadas, percebemos que elas são expressão de
autoritarismos que visam a valorizar seus próprios interesses, fazendo com isso
que a sociedade acabe negando a transcendência do ser humano e,
consequentemente, rebaixando a dignidade do homem, acarretando graves
implicações no campo dos direitos humanos.
Por
fim, podemos concluir que a ideologia do gênero tornou-se um instrumento
utilizado para atacar a dignidade da pessoa e também a família, pois esta
representa para eles um tipo de 'dominação'.
Ao contrário, nós dizemos que é pela família que conseguiremos restaurar tal
dignidade; pois é por ela que somos educados e formamos verdadeiros valores e
ideais.
As
perguntas que ficam são : uma sociedade com indivíduos que cultivam ódio a Deus
e tentam destruir valores intrinsecamente sagrados como a vida e a família
poderão ter um futuro promissor? Os seres humanos são mais felizes ou mais
frustrados com tudo isso? Não estaria, em parte ao menos, atrelado a essa
degenerescência dos valores o alto índice de adolescentes e jovens que tentam
buscar escapes nos entorpecentes ou mesmo nas tentativas ou na consumação de
suicídios? As perguntas atuais sobre os rumos da humanidade e as dificuldades
de respostas da sociedade estão a comprovar os descaminhos que a sociedade
hodierna está tomando.
Já não passou da hora de nos voltarmos mais à
misericórdia de Deus e confessarmos confiantes : Senhor, só Tu tens palavras de
vida eterna! (cf.
Jo 6,68)?
Sim, pois só Ele é a verdadeira e definitiva libertação de toda opressão que o
ser humano possa sofrer. E ao acolhermos a ‘palavra
de Deus’ iremos ver que encontraremos o verdadeiro ‘ser humano’ criado à imagem e semelhança d’Ele. E veremos que mesmo
os estudiosos e cientistas sérios chegarão à mesma verdade através de suas
reflexões e raciocínios. Cabe a nós, cidadãos de hoje, levarmos avante os
verdadeiros valores desta pátria que amamos e aonde habitamos como cidadãos que
têm direitos e deveres e que se responsabilizam pelo futuro.’
Fonte :
* Artigo na íntegra de
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