*Artigo de Maria Tatsos e Fernando Félix
Vinte anos depois
do genocídio no Ruanda, um romance de uma escritora ruandesa conta a história
de um grupo de jovens estudantes das etnias tutsi e hutu que frequentavam um
liceu de elite vinte anos antes dos trágicos acontecimentos. Através das
histórias dos jovens e de várias personagens, o livro faz os leitores respirar
a atmosfera de ódio e desconfiança que marcava aqueles tempos e que culminou na
chacina.
‘Um milhão de mortos em cerca de três
meses. De 7 de Abril a meados de Julho de 1994, na chacina que ficou registada
na História como genocídio do Ruanda, famílias inteiras tutsis e muitos hutus
moderados, que se recusaram a colaborar na carnificina, sucumbiram no
extermínio.
Em 2014, no vigésimo aniversário deste
acontecimento sangrento, o Ruanda – terra verdejante de colinas e planaltos, no
coração de África – fez contas com o seu passado. Os tribunais populares,
criados em cada povoação – os gacacas, na língua kinyarwanda – julgaram mais de
dois milhões de arguidos. Os sobreviventes foram capazes de falar e testemunhar
o horror. Mas, e acima de tudo, procuraram fechar para sempre o capítulo de
ódio interétnico, cujas raízes estão na época colonial, quando, primeiro, os
Alemães e, depois de 1918, os Belgas alimentaram a divisão na população,
fomentando uma suposta superioridade dos Tutsis sobre os Hutus. Estas teorias
basearam-se em ideias racistas em voga no início do século XX na Europa.
Os Tutsis, que são minoria no Ruanda,
são pastores altos, magros e de fisionomia mais fina. Os colonizadores
favoreceram-nos, em detrimento dos Hutus, em maioria, a quem classificaram como
camponeses ‘menos evoluídos’.
Quando os Europeus deram a
independência ao Ruanda, em 1962, o fogo do ódio já estava em ignição. E um dos
legados dos colonizadores seria usado na caça às vítimas durante o genocídio :
a colonia belga deixou ao recém-nascido Ruanda um bilhete de identidade onde
constava a indicação da etnia.
Vinte anos depois, os Ruandeses de hoje
não querem ouvir falar de grupos étnicos. Nos documentos, os cidadãos são
ruandeses.
Escrever para testemunhar
Scholastique Mukasonga, de 57 anos,
nascida em Nyamata, no Ruanda, foi viver para França em 1992. Em 2004, tomou
consciência do dever da memória. ‘A
memória deve ser preservada, para testemunhar em nome daqueles que já não
existem’, afirma.
Assistente social, casada com um
etnólogo francês e mãe de dois filhos, trabalhava num tribunal em Caen, na
Normandia. ‘Esperei dez anos. Ganhei
coragem para voltar ao Ruanda só em 2004.’ Voltou à sua terra natal. ‘E foi depois desta estada que decidi começar
a escrever’, conta.
Uma forma de fazer luto
No genocídio de 1994 perdeu 37 membros
da sua família. Os seus dois primeiros livros foram autobiográficos. Inyenzi ou les cafards (‘Inyenzi ou as baratas’), Éditions
Gallimard, 2006, dá, desde logo, ênfase à designação depreciativa com que foram
designados os Tutsis. ‘É a história da
minha infância em Nyamata’, revela.
La femme aux pieds
nus (‘A mulher com os pés descalços’),
Éditions Gallimard, 2008, é uma homenagem à sua mãe e à coragem de todas as
mulheres de Nyamata que se esforçaram para sobreviver e salvar as crianças de
morte. Este livro ganhou o Premio Seligman
contra o racismo e a intolerância, em França.
‘O
genocídio dos tutsis do Ruanda, em 1994, fez de mim escritora. A escrita tem
sido uma forma de fazer luto. Com os meus livros, teço uma mortalha para
aqueles cujos corpos, enterrados em valas comuns ou espalhados em ossários,
estão perdidos para sempre’, revela Scholastique.
A metáfora das vítimas e dos
maus
A seguir vieram obras de ficção, porque
lhe davam a distância de que precisava para dizer coisas que não poderiam ser
expressas em autobiografia. L’Iguifou –
nouvelles rwandaises (‘O Igifu –
notícias do Ruanda’), Éditions Gallimard, 2010. Esta é uma obra tão
assombrada pelas memórias como as anteriores. O Igifu é uma metáfora de uma
boca insaciável. No livro, pessoas e animais são engolidos, macerados pelo
medo, pela dor, pela morte e pelo luto.
O seu quarto livro, Notre Dame du Nil (‘Nossa Senhora do Nilo’), Éditions Gallimard, 2012, é o seu primeiro
romance. Com ele, foi distinguida com o Premio Théophraste Renaudot, uma das distinções literárias mais
importantes de França. Embora esta seja uma história de ficção, descreve como
se foi esboçando o genocídio. ‘O romance
toma o nome de um liceu que imaginei implantado na montanha, a 2500 metros de
altitude, não muito longe de uma suposta fonte do Nilo’, diz Scholastique. ‘É uma escola frequentada pelas filhas da
elite do poder. Às estudantes tutsis apenas é concedida uma quota de dez por
cento. Neste lugar fechado, as rivalidades étnicas exacerbam-se de tal modo que
conduzem, vinte anos mais tarde, ao genocídio.’
Scholastique não deixa, porém, de expor
algo da sua vida pessoal neste livro. ‘O
liceu Nossa Senhora do Nilo assemelha-se ao liceu Notre Dame de Cîteaux, em
Kigali, em que estudei. A segregação das estudantes tutsis que eu sofri em 1973
forçou-me ao exílio no Burundi.’
O romance conta a vida diária das
estudantes : os livros escolares, os primeiros amores, rituais mágicos, a
vigilância rigorosa das freiras que administram o liceu. Seriam histórias da
adolescência comum a todas as pessoas, não fosse a exceção do ódio étnico que
atravessou os muros da instituição. Virgínia e Veronica, alunas tutsis,
encarnam as vítimas. O papel de má é atribuído a Gloriosa, jovem sedenta de
poder, racista e politizada, que encontra no padre hutu Herménégilde o seu
aliado contra as colegas tutsis. ‘E lembremo-nos que é uma escola que formava
as mulheres de elite do Ruanda.’’
Fonte :
* Artigo na íntegra de http://www.alem-mar.org/cgi-bin/quickregister/scripts/redirect.cgi?redirect=EukZAZFylZtuCwYdcK
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