Irmã Ângela Cecília Traldi,
Agostiniana Missionária,
e a pequena Hori em
Moçambique
*Entrevista concedida a Luis Alberto Gonzalo Diez
(Revista ‘Vida Religiosa’)
‘Aprendi a ser mãe sendo avó de todos’
‘Quem é Ângela
Traldi?
Uma mulher de 72 anos, porém jovem. Muitas de
minhas professoras e formadoras ainda vivem. Sou de origem italiana, mas toda
minha família se estabeleceu no Brasil, país em que nasci. Não sou daquelas que
já nasceram religiosas. Custou-me seguir o chamado. Era rebelde... Inclusive
posso dizer que me custou fazer a profissão perpétua. Aquilo de ‘para sempre...’ Fiz um pacto com Deus,
lhe disse, bom ‘por hoje’ e esse ‘por hoje’ vou repetindo cada dia. Assim
descobri que a fidelidade é Dele. A mim cabe, somente, abrir-me a essa fidelidade.
O que fazes na vida
religiosa?
Vivo e deixo viver. Permito que a cada dia, ao meu
redor, brote a vida, sem impor condições. Minha existência está marcada pelos
ritmos da vida. Meus primeiros anos como Agostiniana
Missionária foram intensos, acompanhamento de jovens, luta pela igualdade.
Cheguei assim aos 34 anos quando minhas irmãs quiseram que eu fosse sua Superiora Provincial. A mudança de vida
me fez bem. Passados dois anos viajei a Roma porque tínhamos um Capitulo Geral.
Eu não conhecia quase nada da congregação fora do Brasil. Minhas irmãs me
elegeram Superiora Geral com 36 anos.
Estávamos no ano de 1977, século passado. Foram anos intensos de oportunidades
e busca de novos caminhos de missão. Anos difíceis de muitas desistências na
congregação e surgimento de perguntas que eu não tinha resposta. Passaram seis
anos e eu voltei ao Brasil onde me encarregaram da formação. Seis anos
acompanhando as missionárias mais jovens. De novo, em 1989, voltei a Roma.
Capitulo Geral e eleição como Superiora
Geral. Segundo mandato. Estava mais madura, mas com as mesmas ânsias de
abertura ao novo. Aconteceram muitas coisas nesses anos. Veio um novo capitulo
geral e minhas irmãs me reelegeram, terceiro mandato que conclui em 2001. Por
fim acreditava haver terminado meu tempo de governo, começou um tempo
maravilhoso de poder viver o que desde Roma eu tentei impulsionar.
Para onde foste em 2001?
Fiquei dois meses em Taiwan porque aí havíamos dado
início a uma nova fundação e era necessário participar deste abrir um novo caminho
com elas. Uma vez livre das responsabilidades de governo eu me ofereci para ir
a esta missão. Ao final desses dois meses
me reintegrei à província Cristo Rei,
no Brasil e um ano depois fui eleita Superiora Provincial. No início de 2009,
uma vez terminado mais este tempo de governo, enviei uma carta à nova Superiora
Provincial onde lhe dizia que, depois de haver pedido muitas vezes às irmãs que
se oferecessem para ir a lugares de fronteira e animado a muitas a permanecer
em determinados lugares, apesar dos grandes desafios, a ‘voltar a nascer’, eu também
deveria ir, por ser membro de uma Congregação Missionária. Em 2009, eu já não tinha 36 anos e sim 68.
Qual foi a resposta àquela
carta?
Enviaram-me a Moçambique onde estou. Aprendi a
respirar, a sentir e a me alegrar de maneira diferente. Entendi que devemos deixar que boa parte do nosso Carisma brote pelos poros. Tornei-me mais frágil, porém mais capaz de viver ao ritmo da
simplicidade. Descubro neste contexto, que é tão natural e que faz parte da
minha pessoa, desde sempre, o que muitas vezes ouvia o
Senhor me dizer na oração diária. Eu
aprendi, por exemplo, a exercer a maternidade sendo avó de todos. Um ministério novo, importante na nossa Igreja e na vida religiosa.
Voltaremos a Moçambique,
mas conta-nos algo de uma longa vida a serviço do governo. Algum momento
especial?
Muitos momentos especiais carregados de nomes de
pessoas. Recordo da nossa volta à China, depois de 47 anos de grande silêncio. Essa
história daria um filme! A Congregação esteve na China e de lá teve que sair
nos tempos da Revolução Comunista. Em 1997, nos chegou a noticia de que havia
umas religiosas que diziam ser Agostinianas
Missionárias. Superadas certas dificuldades de documentação, fui até elas.
O que encontrei? Em uma casa muito antiga que impressionava muito, duas irmãs velhinhas,
três irmãs jovens, um padre agostiniano idoso, em cadeira de rodas e um jovem
sacerdote. Todos viviam nessa casa. Eu cheguei sem saber quem eram aquelas
pessoas e fui perguntando. Uma das religiosas era franciscana, a outra
velhinha, era Marta, agostiniana. Na
década de 1950, Marta era noviça agostiniana e teve que deixar o noviciado
porque estava doente e já não havia condições de tratamento devido às
dificuldades apresentadas pelo sistema político. Quando melhorou, nossa Congregação
já havia sido expulsa. Ela tentou entrar em outra Congregação, mas seu pai
ficou doente e ela foi cuidar dele. Trabalhou em fábricas e em outros setores.
Durante esse período a situação estava muito difícil. Mas quando a situação
política do país deu um pouco de abertura, um bispo Agostiniano, ouvindo o seu
desejo, concedeu-lhe os votos e ela começou a trabalhar como Agostiniana Missionária. Isso sem poder
comunicar-se com as Irmãs da Congregação, presentes em outros países.
Segurando-me pelo braço dizia : ‘eu sou agostiniana’! Não me soltava e
continuava dizendo : ‘depois de muitos e muitos anos de busca,
finalmente encontro a minha mãe! Agora tenho uma luz na minha vida’. Quando
saímos de lá, Marta começou a recuperar a memória sobre os lugares e os nomes
das pessoas que haviam constituído a missão. Quando voltei a visitá-las pudemos,
então, restabelecer parte da história vivida antes do êxodo forçado das Irmãs.
A alegria e a dor sempre de
mãos dadas. Alguma experiência de sábado santo?
Sem dúvida alguma, Argélia. Ali semeamos vida com o
sangue de duas mártires. A situação se complicava, cada vez mais. As irmãs se
despediam todos os dias com a consciência de que ‘aquele dia’ poderia ser o último. Em 1992, a situação piorou e uma
Irmã da minha equipe de governo e eu fomos passar o Natal com as irmãs. Lá estavam
dois irmãos maristas que viviam perto da nossa comunidade e se ajudavam
mutuamente (somos chamados a viver a missão intercongregacional sempre). Um
deles foi o primeiro martirizado. Na Argélia, naquela ocasião, vivemos o
processo de discernimento da diocese. Havíamos decidido, a Superiora provincial
e eu, estar com elas durante cinco dias de discernimento. Dias de oração, de escuta da Palavra de Deus e de decisão sobre permanecer
ou deixar aquele lugar de missão segundo o que pudéssemos intuir ser a vontade
de Deus. Estando ainda em Roma, Irmã Esther, a responsável pelo grupo na
Argélia, me chamou e me disse : ‘Olha, o Cardeal,
o Bispo e nós, estamos pensando que não é conveniente que vocês venham’. Ao
interrogar o porque desta decisão deles, Esther me deu uma resposta que não nos
convenceu e fomos. Já em Argel, compreendemos a verdadeira razão. Temiam que o objetivo
da nossa viagem fosse fechar as comunidades. Foram dias difíceis, intensos, inesquecíveis...
Lembro-me bem do dia da minha viagem de volta a Roma. Na noite anterior resolvemos
unir as duas comunidades para o jantar. Uma das irmãs disse : ‘vamos tirar uma foto, será a última?’.
Já no aeroporto, uma cadeia de infortúnios, ameaça de bomba, suspensão dos voos
e eu isolada em uma sala. Assim com mil sensações, sentimentos e perguntas sem
resposta, cheguei a Roma. Era o dia 12 de Outubro, festa de Nossa Senhora
Aparecida. No dia 23 viajei a Madri, pois tinha me comprometido com uma visita
de animação em algumas de nossas comunidades da Espanha. Fui para Mósteles,
poucos quilômetros de distância da Casa Central. Nada mais a escurecer, chamam-me
com urgência para ir a esta Casa. Instintivamente agarro somente o meu
passaporte e sussurro ‘chegou a nossa
vez’. E, de fato, ao chegar constatamos que havia chegado mesmo. Esther
e Caridad haviam sido atingidas por duas balas.
Depois vieram os momentos de tristeza e confusão. A
situação das que ficaram lá, a negativa das autoridades em deixar-me viajar por
razões de segurança, as famílias, a congregação, a missão, a vida. Todos os
pontos vitais se movem e se alteram quando se vive um momento assim!
Eram irmãs que conhecias
bem. Quanto tempo ressoaram suas palavras.
Seguem ressoando. Eram duas pessoas muito queridas,
e este querer bem era recíproco.
Esther, antes de sua viagem de retorno à Argélia,
conversou comigo e me disse que seus pais estavam inquietos pela situação do
País. Para pressioná-la a ficar, sua mãe buscou apoio em uma das netas,
perguntando-lhe o que pensava sobre o retorno de sua tia à Argélia. Para o seu
espanto, a neta respondeu-lhe : Vovó, pensamos que ela deve ir sim. Esther
tinha pai e mãe vivos, mas Cari só tinha os irmãos.
Vivo este acontecimento como se fosse hoje. Era
domingo. A Igreja era cercada por um muro e dentro daquele espaço viviam as
irmãzinhas de Foucauld. Duas de nossas irmãs, ao saírem de casa, viram que
estava chovendo e voltaram para pegar o guarda-chuva. Isso as fez distanciar-se
de Esther e Cari que já estavam a caminho. Este atraso insignificante as livrou
de ser também alvo das balas. Quando Esther e Cari chamavam à porta para entrar
na Igreja, duas balas certeiras atingem suas cabeças. Uma bala atravessou a
cabeça da Esther, atravessou o portão e chocou-se com a parede da Igreja. Esther
morreu ali mesmo. Quando chegou a ambulância já havia perdido a vida. A bala
que atingiu a cabeça de Cari, ali ficou. De pouco valeram todos os esforços
médicos para salvar-lhe a vida. Cinco horas depois faleceu.
Foram dias terríveis de paixão e ressurreição. Ficamos
muito impressionadas e temerosas em deixar as outras irmãs ali, pois se tratava
de um segundo atentado aos religiosos : uma
irmãzinha do Assunção e um irmão Marista no dia oito de maio, deste
mesmo ano e agora as duas. Uma pergunta rondava a nossa cabeça : ‘Vamos deixar as irmãs ali?’ e também a
cabeça de muitos : ‘vão ter coragem de
deixar as irmãs naquela situação?’ Uma pressão terrível.
Sem dúvida alguma, esta foi a decisão mais difícil
de ser tomada, em minha vida de animação da Congregação... permanecer.
Era necessário fazer uma parada como grupo, pedir
as luzes do Espírito Santo para que a nossa decisão fosse a mais acertada. Não
faltou quem nos dissesse : ‘sacudam o pó das sandálias e saiam’.
Era necessário também consultar autoridades da Igreja, perceber a situação das
famílias das outras irmãs. Destaco aqui
as palavras do Irmão Benito Árbues, Superior Geral dos Irmãos Maristas que já
havia sofrido, naquele ano, o martírio de sete irmãos. Em resposta ao conselho que lhe pedi, depois
de um tempo de reflexão, me disse : ‘Ângela, temos que subir a Jerusalém’. Foram muitas as consultas. Muitas. Não
poderia perdoar-me de expor a vida de mais irmãs. Foram tempos de muitos
contatos com as irmãs que haviam ficado em Argel. Em uma dessas chamadas
telefônicas, uma das irmãs que estava lá me disse : ‘Deixem de nos sufocar com o medo dos perigos! A elas mataram com bala e
a nós, vocês vão nos matar com tanta pressão’. Essa palavra me ajudou a
decidir, a confiar e a não transferir tanta preocupação. Hoje seguimos naquele
lugar. Muitas irmãs ofereceram-se para ir àquela missão.
Aquilo a afetou muito?
É a primeira vez que Ângela cai num silêncio
prolongado... Retoma a expressão e nos diz... Afetou-me muito e me fez repensar
tudo. Poderia dizer que me levou mais à oração, mas, para ser-lhe sincera, foi
um tempo em que orar e confiar não era tão fácil. Não conseguia entender onde
estava Deus no meio de tudo aquilo. Por exemplo, era-me bem difícil rezar o Pai
Nosso. Automaticamente, eu me calava no ‘seja
feita a vossa vontade’.
Você se enganou alguma vez
na direção?
Sim. Equivoquei-me com uma província da minha
congregação. Havia nela, uma situação muito complicada. Tomei uma decisão muito
drástica e hoje quando penso... poderia
tomar a mesma decisão, mas de outra
maneira. Foi muito forte para mim.
Uma pessoa de idade pode
ser encarregada da pastoral vocacional?
Sim, porque se trata de uma pastoral de surpresas.
Cada pessoa é um mundo e cada história uma possibilidade. Gente de idade, com
visão, pode sustentar e acompanhar os caminhos desse seguimento já que não há
dois caminhos iguais.
O que é que mudou sua vida
religiosa?
A experiência de direção. É muito diferente ver as
coisas e as pessoas por dentro. Aprender
a calar, contemplar e sempre esperar.
Foi difícil deixar os
cargos?
A primeira vez que Ângela passa de um sorriso para
uma gargalhada... Em absoluto! Na manha seguinte do dia em que deixei de ser Superiora Geral, vesti a blusa mais
alegre que eu tinha e que não costumava usar. Minhas irmãs disseram ‘até a maneira de se vestir mudou’. Para
mim, deixar o cargo permitiu-me refletir sobre tudo aquilo que eu havia dito as
minhas irmãs e verificar, se de fato, eu havia escutado a minha própria voz.
O que encontrou em
Moçambique?
Encontrei vida. Em uma comunidade pequena inserida no
meio do povo. Uma casa aberta. A letra da música que levava tantos anos
cantando...
Encontrei muito conforto ao escutar duas irmãs
jovens, falando entre elas : ‘Olha, primeiro nos enviou, agora veio... veio
detrás de nós para estar conosco’.
Como é um dia normal em
Moçambique?
Levanto-me às 5 da manhã. Na primeira hora faço
oração pessoal, também a faço à tarde ou à noite. Não é uma comunidade para os
muito certinhos, porque tudo pode falhar ou faltar. Somos apóstolos do
imprevisto. O que está assegurado na comunidade é a oração da manhã. É uma
oração muito participada e cheia de vida. Rodeadas de situações difíceis e de
morte, a Palavra de Deus ressoa sempre como alento, água fresca e esperança de
um dia melhor.
Sente falta de alguma coisa
em Moçambique?
Nos meus 72 anos, nada. Desde dezembro passado
temos luz quase que regularmente. Temos água, que é a maior riqueza e a gente
se acostuma a esquentá-la um pouco para tomar banho, quando a temperatura é
fresca.
Como você vê a vida
religiosa em geral?
Está acabando um ciclo... e outro começa. O
religioso e a religiosa tem que experimentar a vida na fé, desde a realidade
concreta. Tem que sentir que estão a serviço da vida, doando vida e
proporcionando vida... Tenho muito medo daqueles que estão gastando as melhores
energias somente em gestões organizativas, sem experiência de fé.
Como tem que ser a
comunidade para esta época?
Tem que ser uma comunidade de fé, de
esperança e de caridade. A fé de crer em Deus porque Ele é a força, porque
existem momentos que sem Deus, você não sabe para onde ir. A fé em Deus e a fé
nas pessoas. A esperança de que este mundo pode mudar e que você pode
contribuir com algo. Estar aberto para viver a caridade segundo as situações.
Esta combinação deve ser vivida por jovens e adultos juntos para que seja real.
E o estilo de governo na
vida religiosa...
Para mim tem que haver direção, energia e ternura.
Ser enérgico, mas com flexibilidade.
Está disposta a voltar a
esse serviço?
Não. Temos que ser criativas. São novos tempos,
para pessoas jovens que tenho que dar apoio.
A decisão mais urgente que
se deve ter que tomar nas congregações?
Ir onde, realmente, nos necessitem.’
Fonte :
* Artigo na íntegra de http://agustinasmisioneras.net/wordpress/entrevista-a-angela-cecilia-traldi-mas-que-una-foto/
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