*Artigo de Padre Manuel João P. Correia,
Missionário Comboniano
‘Os tempos de Elias foram também
difíceis. Exerceu o seu ministério a meados do século IX antes de Cristo, no
reino de Israel. Do ponto social e político, foi um momento auge do Reino do
Norte, uma época de paz e de prosperidade econômica. Mas também de grande
infidelidade idolátrica. Como a nossa!...
Idolatrias
Reinava então em Israel o ímpio rei
Acab, que, para cúmulo dos males, casara com a perversa rainha Jezabel, filha
do rei de Tiro. Jezabel trouxe consigo o seu ‘senhor’ e ‘esposo’, Baal,
o deus da chuva e da fecundidade. Determinada como era, pelas boas e pelas más,
acabou por impor por todo o lado o culto a Baal (1 Reis 16,30-33). Também nisto
podemos ver uma analogia com a nossa época. Muda só o nome da ‘rainha’ e do seu ‘deus’. Todos seríamos capazes de dar-lhes um nome e um rosto. O
método para ofuscar as mentes e escravizar as consciências, a indiferença com
que se sacrificam tantas vítimas ao ídolo não diferem substancialmente. A luz
da fé parece extinguir-se, a voz das testemunhas é silenciada e até o céu
parece ofuscar-se...
É neste contexto que Deus suscita uma
testemunha extraordinária na pessoa do profeta Elias. Ele aparece de uma
maneira abrupta no capítulo 17 do primeiro Livro dos Reis, anunciando uma
carestia. As suas palavras ressoam como um relâmpago em céu sereno no rico e
idólatra reino de Israel : ‘Juro pelo nome do Senhor, o Deus de Israel,
a quem sirvo, que não cairá orvalho nem chuva nos próximos anos, excepto
mediante a minha palavra.’ E o céu obedece. Não chove, não obstante que
Baal se proclame senhor da chuva. E a terra ressequida não pode alimentar a
vida. A morte ameaça a todos : homens e
animais.
Fogo e zelo
O profeta Elias é uma das grandes
figuras bíblicas. A sua personalidade extraordinária, o seu carácter intrépido
e heróico, o carisma profético singular fizeram dele o profeta por antonomásia.
Recordemo-nos que Elias aparece com Moisés, falando com Jesus durante a
transfiguração. A sua figura continuou a suscitar um fascínio particular ao
longo dos tempos na tradição judaica e cristã.
Elias é o profeta
de fogo : ‘Suas
palavras queimavam como uma tocha ardente’ (Eclesiástico 48,1). A sua
oração faz descer o fogo do céu para devorar o sacrifício preparado para o
Senhor no Monte Carmelo, desafiando e desconfessando os profetas de Baal (1
Reis 18). No final da vida, será levado para o céu num carro de fogo.
É profeta de fogo porque o seu coração
está ‘cheio de zelo pelo Senhor’,
como ele repete por duas vezes na epifania de Deus no monte Sinai (1 Reis 18).
Este zelo consome toda a sua vida e o seu ministério. Como Jesus. Também trouxe
o fogo sobre a terra e o seu coração consumia-se pelo mesmo zelo : ‘Eu vim
trazer o fogo à terra e que quero eu senão que ele se acenda?’ (Lucas
12,49).
Em grego, a palavra ‘zelo’ tem a conotação de ‘fogo’.
Hoje falta tal fogo no coração do
cristão. Onde foi parar a chama ateada pelo coração de Cristo? Abundam os
corações apagados, cobertos de cinzas. Tudo se faz sem zelo e sem exaltação. Os
nossos ideais não despertam entusiasmo, liquefeitos como são e versados em
corações amorfos. Dir-se-ia que nos sentimos incapazes de nos enamorarmos, de
nos apaixonarmos verdadeiramente, por uma pessoa ou por um ideal. Até
desconfiamos e ficamos de pé atrás quando alguém defende um princípio com certa
convicção ou manifesta um pouco mais de zelo no que faz. Não é ‘politicamente correto’, pode ‘ofender a sensibilidade’ dos outros.
Impera o relativismo e, por conseguinte, a apatia.
Parece que o zelo hoje é mais
característico das forças do mal. Basta pensar, por exemplo, no terrorismo e na
sua energia destrutiva intensa, cheia de ódio e violência. Ou a manipulação
aguerrida das consciências orquestrada por certos movimentos promotores daquela
que João Paulo II apelidou de ‘cultura da
morte’. Ou, ainda, o sistema econômico mundial, hoje patrão supremo, que
com as suas ‘leis de mercado’
marginaliza populações inteiras, difundindo aquela que o Papa Francisco chama a
‘cultura do desperdício’.
À escola de Elias e de Jesus
Hoje temos necessidade de profetas de
fogo e zelo como Elias, para testemunhar o Deus vivo e verdadeiro e promover a
cultura da vida. Como obtê-los? Como despertar em nós o espírito de Elias? Como
herdar uma sua ‘dupla porção’ como
pedira o seu discípulo Eliseu? Frequentando a sua mesma escola : retirando-se na solidão e convivendo com os
pobres! Uma dupla escola. Como Jesus. Primeiro, no retiro de Nazaré e do
deserto, para receber o ensinamento do Espírito e ser revestido pela sua força.
Depois, convivendo com os pobres e a miséria do mundo para experimentar e
receber a compaixão do Pai. E por isso proclamará na sinagoga de Nazaré : ‘O
Espírito do Senhor está sobre mim. Ele me ungiu para evangelizar os pobres.
Enviou-me a curar os quebrantados, a pregar a liberdade aos cativos, a dar a
vista aos cegos, a pôr em liberdade os oprimidos, a anunciar um ano de graça de
Senhor’ (Lucas 4,18-9).
Enviado em retiro…
Se a estrutura de um edifício não é
suportada por alicerces adequados, o prédio corre o risco de desmoronar-se. O
mesmo acontece no caso da pessoa chamada a exercer um ministério na Igreja : é preciso, antes de tudo, que tenha estado a
sós com Deus e que as raízes da sua espiritualidade tenham chegado às águas
profundas da contemplação. Caso contrário, será um propagador de ideias mas não
uma testemunha. É necessário que o seu ouvido esteja habituado a ‘ouvir’, para que a língua seja capaz de ‘falar’. Sem tempos de deserto e solidão
que favorecem o encontro com Deus na oração, não há profecia.
Por isso a primeira coisa que Deus faz
com Elias é mandá-lo em retiro : ‘Retira-te daqui, e vai para o oriente, e
esconde-te junto ao ribeiro de Querite…’ (1 Reis 17,3). Saber ‘retirar-se’, ‘orientar’ a própria vida, ‘esconder-se’,
eis o abc de todo discípulo. É o mesmo convite que Jesus nos dirige : ‘Quando
orares, entra no teu aposento e, fechando a tua porta, ora a teu Pai que está
em secreto; e teu Pai, que vê em secreto, te recompensará publicamente’
(Mateus 6,6).
Só nessa escola conheceremos o nosso
verdadeiro nome : ‘Elias’ (Eli-Ya, ‘o meu Deus é
Javé’) e aprenderemos a ‘estar
continuamente na presença de Deus’ como Elias (cf. 1 Reis 17,1, 18,15). O
testemunho da sua vida ajuda a compreender que a verdadeira tentação e o mal
supremo não é o ateísmo, mas a idolatria. O ateísmo pode ser um grito de
sofrimento e a dor de uma ausência. A idolatria, pelo contrário, transforma-se
pouco a pouco num coma profundo, antecâmara da morte.
Enviado à periferia da
cidade…
Da ‘periferia’
do seu retiro situado do ‘outro lado’,
à ‘esquerda do Jordão’, Elias é
enviado ao norte nas terras pagãs da rainha Jezabel, a uma outra periferia, a
da cidade, a dos pobres e desfavorecidos : ‘Vai
imediatamente para a cidade de Sarepta de Sídon e fica por lá. Ordenei a uma
viúva daquele lugar que te forneça comida’ (1 Reis 17,9). Partilhar a vida
do pobre, regressando à essencialidade e simplicidade de estilo de vida, é o
estágio do apóstolo. Trata-se de outro lugar privilegiado da Presença de Deus.
Só lá se pode reconhecer o verdadeiro rosto de Deus, o do amor e da justiça.
Duas faces inseparáveis. Deus que ama e restabelece a justiça, respondendo ao grito
da viúva.
As muitas barreiras criadas pelas
diferenças sociais, étnicas, religiosas… separam-nos não só dos ‘outros’ de diferente raça e cor, língua
e cultura, mas também do ‘Outro’ que
em todos se incarnou. Falta-nos a convivência com os ‘marginais’, embora nunca como hoje estiveram tão perto de nós. De
aí a insistência do Papa Francisco a convidar os pastores da Igreja (mas não só
eles!) a ir para as ‘periferias’.
Concluo com este seu fogoso apelo
dirigido aos sacerdotes na Quinta-Feira Santa : ‘O nosso
povo gosta do Evangelho quando é pregado com unção, quando o Evangelho que
pregamos chega ao seu dia-a-dia, quando escorre como o óleo de Aarão até às
bordas da realidade, quando ilumina as situações extremas, ‘as periferias’ onde
o povo fiel está mais exposto à invasão daqueles que querem saquear a sua fé.
As pessoas agradecem-nos porque sentem que rezamos a partir das realidades da
sua vida de todos os dias, as suas penas e alegrias, as suas angústias e
esperanças…
Quem não sai de si
mesmo, em vez de ser mediador, torna-se pouco a pouco um intermediário, um
gestor. A diferença é bem conhecida de todos : o intermediário e o gestor ‘já receberam a sua
recompensa’. É que, não colocando em jogo a pele e o próprio coração, não
recebem aquele agradecimento carinhoso que nasce do coração; e daqui deriva
precisamente a insatisfação de alguns, que acabam por viver tristes, padres
tristes, e transformados numa espécie de colecionadores de antiguidades ou
então de novidades, em vez de serem pastores com o ‘cheiro das ovelhas’ – isto
vo-lo peço : sede pastores com o ‘cheiro
das ovelhas’!’’
Fonte :
* Artigo na íntegra
de http
: //www.alem-mar.org/cgi-bin/quickregister/scripts/redirect.cgi?redirect=EFZlEkllpkKDBVZiDw
Nenhum comentário:
Postar um comentário