* Artigo de Lázaro Bustince, Mundo Negro
‘Em 2013, cumpriram-se 125 anos da
Campanha Antiescravagista posta em marcha pelo cardeal Lavigerie entre 1888 e 1889. O fundador
dos Missionários de África (Padres Brancos) seguiu os passos de outro fundador, Daniel Comboni, que já em 1873 se
debateu com aquela praga. Comboni tinha sido testemunha, nas suas intermináveis
viagens entre o coração de África e a Europa, das caravanas de escravos que
atravessavam o deserto africano e dos barcos que percorriam o Nilo para levar
escravos até ao Egipto e ao mar Vermelho, onde eram vendidos para a
prostituição e para outros trabalhos. Este negócio encontrava-se nas mãos de
mercadores e governantes, que utilizavam os africanos para as suas investidas.
Daniel Comboni, graças ao contacto que
manteve – entre outros – com o sultão turco de Constantinopla, conseguiu
resultados formidáveis na libertação de escravos, e converteu-se num grande
lutador contra a escravatura, que fustigava a África em meados do século XIX.
As missões católicas transformaram-se, já na altura, em refúgio para os escravos
perseguidos e lugar de luta contra os grupos que traficavam pessoas. Porém,
ainda que as grandes potências tenham abolido a escravatura em finais do século
XIX, foi necessário retomar essa causa, que o cardeal Lavigerie fez sua.
Foi o próprio Papa Leão XIII quem
confiou ao fundador dos Missionários de África a tarefa de acabar com a
escravatura em África. Numa audiência com Lavigerie, o papa realçou o trabalho
que a Igreja podia fazer em favor dos escravos, ao sublinhar : ‘Já que o continente africano é o cenário
principal de tão horroroso comércio e a terra da escravatura, recomendamos a
todos os missionários que consagrem todas as suas forças e a sua própria vida a
esta obra de redenção.’ O papa pediu, de algum modo, ao próprio Lavigerie
que liderasse a causa antiescravagista : ‘Contamos
sobretudo com Vossa Eminência para o êxito das difíceis obras e missões de
África. Conhecemos o vosso zelo activo e inteligente; sabemos tudo o que haveis
realizado até hoje e confiamos que não descansareis antes de ter levado a bom
termo as vossas grandes empresas.’ Era o dia 20 de Maio de 1888.
Denúncia e dados
Esta petição do papa impulsionou uma
campanha contra a escravatura, que Lavigerie começou um mês mais tarde. A 1 de
Julho de 1888, na Igreja de Saint-Sulpice, em Paris, Lavigerie dava já números
aterradores de escravos africanos : ‘Sabeis
quantos escravos são vendidos pelos traficantes muçulmanos, desde há dez anos,
no interior de África? [...] No mínimo, quinhentos mil por ano. Deve
permitir-se esse comércio de escravos, que em África origina uma perda anual de
pelo menos quinhentas mil pessoas? Compreendem-me? Quinhentos mil escravos
vendidos todos os anos nos mercados do interior africano!’ Assim, com estas
palavras, arrancou a campanha.
A denúncia de Lavigerie sempre esteve
apoiada em dados. Na conferência pronunciada na Igreja de Jesus, dos Jesuítas,
em Roma, citou não apenas os relatórios oficiais enviados pelos missionários ou
pelos grandes exploradores que percorriam o continente africano, Stanley,
Cameron ou Livingstone. Neste caso, também trouxe algumas provas proporcionadas
pela Inglaterra, publicadas pelo Foreign Office : ‘Este ano, estima-se que os escravos vendidos, apesar dos tratados e da
vigilância do Governo turco, são mais numerosos do que nunca’, denunciou o
cardeal, que recordou que já em 1872 Henri Barthe Frere – enviado pelo Foreign
Office a Zanzibar para negociar um tratado com o sultão com vista à supressão
do tráfico de escravos – informou o Parlamento inglês que o número de negros
assassinados ou capturados no interior do Sudão alcançou a cifra de um milhão, ‘e a quantidade de escravos realmente
vendidos nos mercados clandestinos ou públicos das províncias africanas,
asiáticas e europeias do império turco, [...] duzentos mil’.
Negócio lucrativo
Que
significado tem o facto de os três negócios mais lucrativos do mundo
continuarem a ser a venda de armas, as drogas e o tráfico de pessoas? Segundo a Organização Internacional do
Trabalho (OIT), em 2012 havia vinte e um milhões de pessoas vítimas de trabalho
forçado em todo o mundo. Para o Global Slavery Index 2013, elaborado pela
Fundação Walk Free – que se dedica a identificar e a denunciar as empresas e
países responsáveis pelas novas formas de escravatura –, mais de vinte e nove
milhões de pessoas vivem cativas, em todo o mundo.
De acordo com este relatório, a
Mauritânia é o país com maior prevalência de novas formas de escravatura. Entre
os dez piores países do mundo encontramos também o Benim, a Costa do Marfim, a
Gâmbia, a Nigéria, a Etiópia, a República Democrática do Congo e o Gabão. O
comércio de escravos, tal como o colonialismo e o sistema capitalista, gérmenes
das novas formas de escravatura, continuam a oprimir os povos africanos. A
venda ilegal de pessoas, sobretudo de crianças e mulheres desamparadas, ou
pertencentes a minorias étnicas, é actividade frequente para o trabalho forçado
na agricultura e na indústria, na prostituição e na pornografia ou no tráfico
de drogas. A ONU adverte que, embora tendo sido abolida a prática da escravatura
no Brasil, em 1888, e em 1948, com a Declaração Universal dos Direitos Humanos,
ela continua viva e próspera nos nossos dias, mesmo que com uma grande
diferença relativamente ao passado. Antes, afectava principalmente homens
jovens, enquanto na actualidade as suas vítimas são maioritariamente crianças e
mulheres. Estas escravidões notam-se de forma particular em alguns países
africanos como a Mauritânia, o Níger, o Sudão, a República Democrática do
Congo, o Benim, o Mali, a Costa do Marfim, a Nigéria, a África do Sul, Angola,
Moçambique, Etiópia, Quénia, Malauí ou Uganda. Noutros, como a Líbia, a
Somália, a Nigéria, o Mali ou a República Centro-Africana, as invasões de
grupos militares de raiz islâmica radical continuam a escravizar regiões
inteiras.
As cifras dos
escravos
Na Mauritânia, não obstante as leis
terem abolido a escravatura em 1960, existem hoje entre oitenta e noventa mil
pessoas controladas e tratadas como ‘propriedade’
de outros seres humanos. A maioria dos donos é bérbere e árabe. No vizinho
Níger, o total das práticas escravagistas atinge cerca de novecentas mil
pessoas, que vivem submetidas a diversos trabalhos forçados. Existe uma lei
antiescravagista, mas uma coisa é a lei e outra é fazê-la cumprir diante de um
costume tradicional.
Ainda assim, o primeiro lugar nesta
história de tráfico e exploração de seres humanos vai para o Sudão, devido,
nomeadamente, aos abusos e genocídios do Darfur. As tribos de origem árabe do
Norte consideram um direito tradicional capturar e submeter a escravatura os
negros africanos do Darfur e do Sudão do Sul. Os chefes dincas falam de
aproximadamente cem mil membros da sua tribo sujeitos a servidão forçada pelos
árabes do Norte. A organização Christian Solidarity Internacional afirma ter
resgatado à volta de setenta e oito mil escravos desde 1995.
Entretanto, em Moçambique, trezentas
mulheres saem diariamente do país para se prostituir na África do Sul, segundo
a Save the Children. Tanto a Unicef como o Diário de Moçambique denunciaram que
algumas seitas religiosas estão envolvidas no tráfico de pessoas no país.
Também com destino à prostituição, estima-se que dez mil nigerianas se
encontram espalhadas por Itália, Bélgica, Alemanha e Holanda; assim como jovens
etíopes e ugandesas, recrutadas pelas máfias que dominam o lucrativo negócio da
prostituição para trabalhar no Líbano e no Bahrein.
A Unicef denunciou que, todos os anos,
cerca de duzentas mil pessoas de ambos os sexos são tornadas escravas na África
Ocidental. Traficantes de pessoas aproveitam-se da situação de pobreza extrema
em países como o Benim, o Togo e o Mali para raptar as suas vítimas e levá-las
para o Gabão, Costa do Marfim, Camarões ou Nigéria, por preços que oscilam
entre trezentos e mil dólares por menino ou menina. Os compradores utilizam as
crianças para os serviços domésticos, para mendigar ou trabalhar nas plantações
de algodão, de cacau, de café ou chá, ou para se prostituir.
O continente africano converteu-se numa
mina que abastece a indústria do sexo na Europa e no Médio Oriente. Segundo a
Unicef, trinta e cinco mil menores e mulheres do Ocidente africano entram todos
os anos nos circuitos da prostituição. Dentro do continente, a África do Sul
revela uma florescente indústria do sexo, por causa do comércio de pessoas
procedentes de Angola, Moçambique, Etiópia, Quénia e Malauí. Países como o
Quénia e o Senegal contam com um bem organizado turismo sexual, destinado
essencialmente a europeus e americanos.
Novos paradigmas
O desaparecimento definitivo da
escravatura passa, indubitavelmente, por uma maior responsabilidade dos
indivíduos e, por conseguinte, das sociedades, através de uma educação
integral. Neste sentido, o Parlamento ugandês acaba de introduzir as
disciplinas Educação para a Vida e Educação Social no currículo nacional de educação
primária e secundária.
A resposta às estruturas que geram
escravatura requer um novo paradigma, em que a dignidade da pessoa humana deve
ser o centro das atenções, e em que as estruturas políticas e económicas se
rejam por valores éticos, com o objectivo de superar toda a injustiça e
violência, a fim de construir uma sociedade na qual reine a solidariedade e a
harmonia.
O cardeal Charles Lavigerie, em 1888,
deixou-o bem claro : ‘Eu sou pessoa
humana e qualquer injustiça contra outros seres humanos me indigna o coração.
Continuo a trabalhar para restaurar a honra e a liberdade dos habitantes deste
continente.’ Hoje, 125 anos depois, continuamos presos àquelas palavras.’
Fonte :
* Artigo na íntegra
de http://www.alem-mar.org/cgi-bin/quickregister/scripts/redirect.cgi?redirect=EFAEukuAZpZkllxoFT
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