* Artigo
de Bento XVI, Papa Emérito
‘Nas
catequeses sobre as grandes figuras da Igreja dos primeiros séculos chegamos
hoje à personalidade eminente de Santo
Ireneu de Lião. As notícias biográficas sobre ele provêm
do seu próprio testemunho, que nos foi transmitido por Eusébio no quinto livro
da História Eclesiástica.
Ireneu
nasceu com toda a probabilidade em Esmirna (hoje Izmir, na Turquia) por volta do
ano 135-140, onde ainda jovem frequentou a escola do Bispo Policarpo, por sua
vez discípulo do apóstolo João. Não sabemos quando se transferiu da Ásia Menor
para a Gália, mas a transferência certamente coincidiu com os primeiros
desenvolvimentos da comunidade cristã de Lião : aqui, no ano 117, encontramos
Ireneu incluído no colégio dos presbíteros. Precisamente naquele ano ele foi
enviado para Roma, portador de uma carta da comunidade de Lião ao Papa
Eleutério. A missão romana subtraiu Ireneu à perseguição de Marco Aurélio, que
causou pelo menos quarenta e oito mártires, entre os quais o próprio Bispo de
Lião, Potino que, com noventa anos, faleceu por maus-tratos no cárcere. Assim,
com o seu regresso, Ireneu foi eleito Bispo da cidade. O novo Pastor dedicou-se
totalmente ao ministério episcopal, que se concluiu por volta de 202-203,
talvez com o martírio.
Ireneu
é antes de tudo um homem de fé e Pastor. Do bom Pastor tem o sentido da medida,
a riqueza da doutrina, o fervor missionário. Como escritor, busca uma dupla
finalidade : defender a verdadeira doutrina contra os ataques heréticos, e
expor com clareza a verdade da fé.
Correspondem
exactamente a estas finalidades as duas obras que dele permanecem : os cinco
livros Contra as Heresias, e a Exposição da pregação apostólica (que se pode
também chamar o mais antigo ‘catecismo da
doutrina cristã’). Em suma, Ireneu é o campeão da luta contra as heresias.
A Igreja do século II estava ameaçada pela chamada gnose, uma doutrina que
afirmava que a fé ensinada na Igreja seria apenas um simbolismo para os
simples, que não são capazes de compreender coisas difíceis; ao contrário, os
idosos, os intelectuais chamavam-se gnósticos teriam compreendido o que está
por detrás destes símbolos, e assim teriam formado um cristianismo elitista,
intelectualista. Obviamente este cristianismo intelectualista fragmentava-se
cada vez mais em diversas correntes com pensamentos muitas vezes estranhos e
extravagantes, mas para muitos era atraente. Um elemento comum destas diversas
correntes era o dualismo, isto é, negava-se a fé no único Deus Pai de todos,
Criador e Salvador do homem e do mundo. Para explicar o mal no mundo, eles
afirmavam a existência, em paralelo com o Deus bom, de um princípio negativo.
Este princípio negativo teria produzido as coisas materiais, a matéria.
Radicando-se
firmemente na doutrina bíblica da criação, Ireneu contesta o dualismo e o
pessimismo gnóstico que diminuíam as realidades corpóreas. Ele reivindicava
decididamente a santidade originária da matéria, do corpo, da carne, não menos
que a do espírito. Mas a sua obra vai muito mais além da confutação da heresia
: pode-se dizer de facto que ele se apresenta como o primeiro grande teólogo da
Igreja, que criou a teologia sistemática; ele mesmo fala do sistema da teologia,
isto é, da coerência interna de toda a fé. No centro da sua doutrina situa-se a
questão da ‘regra da fé’ e da sua
transmissão. Para Ireneu a ‘regra da fé’
coincide na prática com o Credo dos Apóstolos, e dá-nos a chave para
interpretar o Evangelho, para interpretar o Credo à luz do Evangelho. O símbolo
apostólico, que é uma espécie de síntese do Evangelho, ajuda-nos a compreender
o que significa, como devemos ler o próprio Evangelho.
De
facto o Evangelho pregado por Ireneu é o mesmo que recebeu de Policarpo, Bispo
de Esmirna, e o Evangelho de Policarpo remonta ao apóstolo João, do qual
Policarpo era discípulo. E assim o verdadeiro ensinamento não é o que foi
inventado pelos intelectuais além da fé simples da Igreja. O verdadeiro
Evangelho é o que foi transmitido pelos Bispos que o receberam numa sucessão
ininterrupta dos Apóstolos. Eles outra coisa não ensinaram senão precisamente
esta fé simples, que é também a verdadeira profundidade da revelação de Deus.
Assim diz-nos Ireneu não há uma doutrina secreta por detrás do Credo comum da
Igreja. Não existe um cristianismo superior para intelectuais. A fé
publicamente confessada pela Igreja é a fé comum de todos. Só esta fé é
apostólica, vem dos Apóstolos, isto é, de Jesus e de Deus. Aderindo a esta fé
transmitida publicamente pelos Apóstolos aos seus sucessores, os cristãos devem
observar o que os Bispos dizem, devem considerar especialmente o ensinamento da
Igreja de Roma, preeminente e antiquíssima. Esta Igreja, devido à sua
antiguidade, tem a maior apostolicidade, de facto haure origem das colunas do
Colégio apostólico, Pedro e Paulo. Com a Igreja de Roma devem harmonizar-se
todas as Igrejas, reconhecendo nela a medida da verdadeira tradição apostólica,
da única fé comum da Igreja. Com estas argumentações, aqui resumidas muito
brevemente, Ireneu contesta desde os fundamentos as pretensões destes
gnósticos, destes intelectuais : antes de tudo eles não possuem uma verdade que
seria superior à da fé comum, porque o que dizem não é de origem apostólica, é
por eles inventado; em segundo lugar, a verdade e a salvação não são privilégio
nem monopólio de poucos, mas todos as podem alcançar através da pregação dos
sucessores dos Apóstolos, e sobretudo do Bispo de Roma. Em particular sempre
polemizando com o carácter ‘secreto’
da tradição gnóstica, e observando os seus numerosos êxitos entre si
contraditórios Ireneu preocupa-se por ilustrar o conceito genuíno de Tradição
apostólica, que podemos resumir em três pontos.
a) A
Tradição apostólica é ‘pública’, não
privada ou secreta. Ireneu não duvida minimamente de que o conteúdo da fé
transmitida pela Igreja é o que recebeu dos Apóstolos e de Jesus, do Filho de
Deus. Não existe outro ensinamento além deste. Portanto quem quiser conhecer a
verdadeira doutrina é suficiente que conheça ‘a Tradição que vem dos Apóstolos e a fé anunciada aos homens’ :
tradição e fé que ‘chegaram até nós através da sucessão dos Bispos’ (Adv.
Haer.3, 3, 3-4). Assim, sucessão dos Bispos, princípio pessoal; e Tradição
apostólica, princípio doutrinal coincidem.
b) A
Tradição apostólica é ‘única’. De
facto, enquanto o gnosticismo se subdivide em numerosas seitas, a Tradição da
Igreja é única nos seus conteúdos fundamentais, a que como vimos Ireneu chama
precisamente regula fidei ou veritatis : e isto porque é única, gera
unidade através dos povos, através das culturas diversas, através dos povos
diversos; é um conteúdo comum como a verdade, apesar da diversidade das línguas
e das culturas. Há uma frase muito preciosa de Santo Ireneu no livro Contra as
heresias : ‘A Igreja, apesar de estar
espalhada por todo o mundo, conserva com solicitude [a fé dos Apóstolos], como
se habitasse numa só casa; ao mesmo tempo crê nestas verdades, como se tivesse
uma só alma e um só coração; em plena sintonia com estas verdades proclama,
ensina e transmite, como se tivesse uma só boca. As línguas do mundo são
diversas, mas o poder da tradição é único e é o mesmo : as Igrejas fundadas nas
Alemanhas não receberam nem transmitiram uma fé diversa, nem as que foram
fundadas nas Espanhas ou entre os Celtas ou nas regiões orientais ou no Egipto
ou na Líbia ou no centro do mundo’ (1, 10, 1-2). Já se vê neste momento,
estamos no ano 200, a universalidade da Igreja, a sua catolicidade e a força
unificadora da verdade, que une estas realidades tão diversas, da Alemanha à
Espanha, à Itália, ao Egipto, à Líbia, na comum verdade que nos foi revelada
por Cristo.
c) Por
fim, a Tradição apostólica é como ele diz na língua grega na qual escreveu o
seu livro, ‘pneumática’, isto é,
espiritual, guiada pelo Espírito Santo : em grego espírito diz-se pneuma. De
facto, não se trata de uma transmissão confiada à habilidade de homens mais ou
menos doutos, mas ao Espírito de Deus, que garante a fidelidade da transmissão
da fé. Esta é a ‘vida’ da Igreja, o
que torna a Igreja sempre vigorosa e jovem, isto é, fecunda de numerosos
carismas. Igreja e Espírito para Ireneu são inseparáveis : ‘Esta fé’, lemos ainda no terceiro livro
Contra as heresias, ‘recebemo-la da
Igreja e conservámo-la : a fé, por obra do Espírito de Deus, como um depósito
precioso guardado num vaso de valor rejuvenesce sempre e faz rejuvenescer
também o vaso que a contém. Onde estiver a Igreja, ali está o Espírito de Deus;
e onde estiver o Espírito de Deus, ali está a Igreja com todas as graças’
(3, 24, 1).
Como
se vê, Ireneu não se limita a definir o conceito de Tradição. A sua tradição, a
Tradição ininterrupta, não é tradicionalismo, porque esta Tradição é sempre
internamente vivificada pelo Espírito Santo, que a faz de novo viver, a faz ser
interpretada e compreendida na vitalidade da Igreja. Segundo o seu ensinamento,
a fé da Igreja deve ser transmitida de modo que apareça como deve ser, isto é, ‘pública’, ‘única’, ‘pneumática’, ‘espiritual’. A partir de cada uma destas
características podemos realizar um frutuoso discernimento sobre a autêntica
transmissão da fé no hoje da Igreja. Mais em geral, na doutrina de Ireneu a
dignidade do homem, corpo e alma, está firmemente ancorada na criação divina,
na imagem de Cristo e na obra permanente de santificação do Espírito. Esta
doutrina é como uma ‘via-mestra’ para
esclarecer juntamente com todas as pessoas de boa vontade o objecto e os
confins do diálogo sobre os valores, e para dar impulso sempre renovado à acção
missionária da Igreja, à força da verdade que é a fonte de todos os valores
verdadeiros do mundo.’
(março de 2007)
Fonte :
* Bento XVI, Santos e Doutores da
Igreja (catequeses condensadas), Lisboa, Paulus Editora, 2012.
Nenhum comentário:
Postar um comentário