Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)
teóloga
‘O que o Papa Francisco denuncia desde o início de seu pontificado, como globalização da indiferença, acontece diariamente em várias latitudes e de diversas formas. São tão frequentes que já não chamam tanta atenção e não provocam a mobilização que deveriam. Às vezes se dão como cegueira total diante do outro que sofre, tornado invisível pelo individualismo reinante. Outras acontecem como violência inadmissível e revoltante. Ambas constituem verdadeiras tragédias humanitárias.
René
Robert, suíço, casado, tinha 84 anos, era fotógrafo. Especializou-se em
captar a beleza e o feitiço fascinante do flamenco contemporâneo. Morava
em Paris. Aparentemente poucas vidas poderiam ser mais charmosas do que a
deste homem já idoso, é verdade, mas vivia em uma das cidades mais belas e
cosmopolitas do mundo. Tinha uma profissão igualmente atraente e criativa.
No entanto, ei-lo que engrossa as estatísticas das 500 pessoas que morrem
anualmente nas ruas das cidades francesas. Seu perfil, porém, se destaca
dos demais que, em geral, são mendigos, migrantes, sem-teto, moradores de rua.
Robert não fazia parte desta triste condição de vida que existe até mesmo
no mundo desenvolvido.
Não
se tratava de um sem-teto, mas de alguém com uma carreira profissional
reconhecida. Graças a isso hoje sabemos as circunstâncias em que morreu.
Todos os dias esse artista da imagem fazia sua caminhada noturna por seu bairro
– na Place de la République - e no dia 19 de janeiro não foi diferente.
Passando pela rue Turbigo, por algum motivo que se desconhece, caiu ao chão
desacordado. E ali ficou por horas. Veio a noite, a rua ficou vazia, mas Robert
continuava ali, caído e sendo lentamente assassinado pelo frio do inverno
parisiense, sem que absolutamente ninguém parasse para socorrê-lo. As
pessoas tinham pressa, voltavam do trabalho, não havia atenção nem tempo
sobrando para socorrer alguém que se encontra caído no chão.
As
seis da manhã, uma pessoa – essa, sim, sem-teto e que não quis ter seu nome
divulgado – reparou nele e chamou por socorro. Robert foi levado a um
hospital, mas já era tarde. Após nove horas ao relento, morreu de
hipotermia grave, ou seja, de frio. Um de seus amigos declarou a respeito de
sua morte, fazendo ao mesmo tempo um exame de consciência : ‘Não poder ter
certeza de que não me afastaria de alguém deitado na rua é uma dor que me
persegue. Mas estamos com pressa, estamos com pressa, temos nossas vidas
e desviamos o olhar.’
Moise
Mugenyi Kagabambe nasceu na República Democrática do Congo e chegou ao Brasil
11 anos atrás, com 14 anos de idade. Hoje, tinha 24. Deixou seu país
fugindo de conflitos que faziam de sua terra um lugar de violência, corrupção e
criminalidade. As milícias eram ativas e Moise veio buscar a paz no
Brasil, país onde acreditou encontrar um povo pacífico e cordial. Sua mãe,
Ivana Lay, veio três anos depois do filho. Moise trabalhava no quiosque
Tropicália, na Barra da Tijuca. Contribuía assim para o sustento de sua
família. No dia 24 de janeiro, o jovem foi ao Tropicália reivindicar o
recebimento do dinheiro correspondente ao trabalho que ali realizara.
Moise
foi atacado e linchado por cinco homens nas dependências do quiosque. Os
que o agrediram usaram um taco de baseball e amarraram suas mãos aos pés. Um
sentou-se sobre sua cabeça até que ele não mais respirasse. O vídeo que
uma testemunha fez do acontecimento mostra esse mesmo homem tentando reanimar
Moise, sem conseguir. O jovem recebeu mais de 30 pauladas. As câmeras de
segurança também filmaram a agressão.
Por
que o fato de um jovem trabalhador ir ao local de trabalho e reivindicar
receber o que lhe era devido provoca essa reação de violência? Entre
várias razões emerge o fato de que Moise era negro e migrante. O racismo
estrutural que divide a sociedade brasileira, bem como a xenofobia velada ou
explícita que circula como veneno em nossas veias, fez com que a tragédia de
Moise acontecesse de forma tão brutal e cruel.
O
assassinato mobilizou a opinião pública, pelo menos alguns grupos. A mãe
de Moise, inconsolável com a perda do filho, deixa perceber nas redes sua
perplexidade. Vieram ao Brasil buscando paz e seu filho aqui encontrou a
morte de forma violenta como acontece em seu país.
Ambas
as tragédias humanitárias e suas vítimas nos interpelam. Uma, pela
indiferença que se apossou de nós que não nos deixa enxergar o outro ainda que
em situação infra-humana, caído ao nosso lado. Outra, pela violência
brutal e exponencial que faz atacar covardemente um jovem e acabar com sua vida
por não considerá-lo um sujeito com direitos e dignidade. Precisamos – e
como! – examinar-nos, e meditar constante e continuamente na parábola do Bom
Samaritano que o Papa Francisco propõe ao centro de sua encíclica Fratelli
Tutti : ‘Havia um ferido à beira do caminho...’ Havia, há, um ancião caído
na rua em meio ao inverno glacial. Havia, há, um jovem que necessita
receber os proventos que lhe são devidos. Havia, há, seres humanos que
necessitam justiça e atenção. O que está acontecendo com a humanidade?’
Fonte : *Artigo na íntegra
https://domtotal.com/artigo/9859/2022/02/rovert-e-moise-duas-tragedias-semelhantes/
Nenhum comentário:
Postar um comentário