Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)
*Artigo
do Padre Alfredo Sampaio Costa, SJ
‘O coração é o centro da pessoa, o campo da profundidade, na qual
alma e corpo entrelaçam as suas raízes1. Estamos dispostos a
deixar nossa zona de conforto, a abandonar a segura superficialidade de nossa
vida espiritual, para adentrarmos no mais íntimo de nós mesmos?
Aprendamos hoje da sabedoria dos Padres :
Macário, o grande, padre do quarto século, mestre espiritual,
dizia em uma de suas homilias espirituais : ‘O coração, de fato, é o patrão
e o rei de todo o organismo corpóreo, e quando a graça se apossa dos pastos do
coração, reina sobre todos os seus membros e sobre todos os pensamentos; nele
está a inteligência, nele se encontram todos os pensamentos da alma, a qual
dele espera o bem’2.
Outro grande mestre, Teófano, o Recluso, afirmava : ‘Se o
coração é o centro da pessoa humana, então é através dele que a pessoa entra em
relação com tudo o que existe’3.
Há uma expressão antiga para designar o que chamamos ‘coração’
: é o termo ‘fundo da alma’4 : Já S. Agostinho fala de
‘fundus’ da alma ou da ‘memória’ (Confissões X,8,15;
PL 32.785). Mas será M. Eckhart a desenvolvê-la em um sentido metafísico para
além de todo sentido sensível, espacial ou psicológico quando afirma : ‘De
fato ele é ao mesmo tempo alto e profundo’ (In Sapientiam, n.48; In
Exodum n. 242). S. Alberto Magno já tinha afirmado o mesmo no seu
Comentário ao Evangelho de S. Lucas : ‘Altum et profundum idem est’ (In
Lucam 1,32; Opera Omnia, éd. A. Borgnet, Paris 1890-1899,
t.22, 76b). Neste sentido, a expressão ‘fundo da alma’ pode ser
aproximada a outras expressões do vocabulário espiritual como ‘a parte
superior da alma’, ‘o cume da alma’, ‘a centelha’, a ‘sindérese’.
Nas suas variadas expressões, remete a uma perfeita interioridade,
como Santo Tomás de Aquino reuniu na sua reflexão : ‘Deus é interior a cada
um de nós, como o ser próprio de uma coisa é interior a essa coisa, a qual não
poderia nem começar nem durar sem a operação de Deus’ (Sent. I,
dist. 37 q.1 a. 1 sol).
Eckhart utiliza dois símbolos para desenvolver o seu pensamento
sobre o fundo da alma : o da semente jogada na terra e o do poço. A imagem da
semente que lança as suas raízes na terra se liga facilmente com a ideia da ‘semente
de Deus’ plantada no interior do ser humano : ‘Deus está no fundo da
alma com toda a sua divindade’ (Predigt 10, DW 1, p. 162,5).
Eckhart compreende essa semente como a presença de Deus na alma, como o
nascimento de Deus na alma.
A imagem do poço é utilizada no seu escrito O homem nobre quando
escreve : ‘A imagem de Deus, o Filho de Deus, está no fundo da alma como um
poço de água viva’ (DW 5, p.113,5). Esta presença de Deus vai muito além de
uma simples interioridade ‘natural’ : pois só Deus pode penetrar no
íntimo do espírito da sua criatura. Já S. Tomás de Aquino afirmava o mesmo : ‘Só
Deus pode penetrar no íntimo da alma’ (Summa Teológica 1 a. q.
89 a. 2 obj. 2). Portanto, a alma criada não possui as suas raízes em si mesma.
Todo ser recebe o seu ser de Deus!
Eckhart deixou vários sucessores no uso dessa linguagem : Jean
Tauler, Henri Suso, Jean Ruysbroeck, Louis de Blois, e também Santa Teresa de
Ávila e S. João da Cruz.
No século 17, na França, a expressão ‘fundo do coração’
recorre com insistência. No assim chamado ‘ambiente devoto’, o termo ‘fundo’
é uma tentativa de traduzir o que o alemão medieval ‘grunt’ de Echkart
queria dizer. Este termo procurava encontrar um lugar, na topografia
psicológica, onde se exprimisse simbolicamente um processo de geração, o
florescer de uma nova e misteriosa vida5.
Se o fundo do coração é o centro da pessoa, onde é impresso a
marca da imagem divina, onde acontece a inserção da graça6, a
ele é preciso aplicar a impressionante fórmula de S. João da Cruz : ‘O
centro da alma é Deus’ (Chama Viva, 1,3). S. Francisco de Sales
também usa a expressão no seu Tratado do Amor de Deus (livro
6, cap.7).
A ursulina Marie de l'Incarnation (1599-1672) utiliza diversas
expressões para descrever essa realidade : ‘centro da alma’, ‘o
quarto do Esposo’, ‘a sede de Deus’, a ‘morada de Deus’, ‘a
parte suprema da alma’, ‘o mais íntimo do ser’, ‘a substância do
espírito’7.
A palavra ‘centro’ se encontra com frequência unida a até
mesmo identificada a Deus presente na alma : ‘A alma está unida a Deus como
ao seu centro’ (Écrits, t.1, p.200, 217, 323; t.4, p. 248-249).
O fundo da alma é a unidade da alma, tocada intuitivamente por meio de uma
experiência passiva da unidade da essência divina.
O fundo se determina por um ‘sim’ ou por um ‘não’8
: é uma liberdade a decidir-se, um atravessar íntimo rumo à escolha
mais dramática da existência9.
A devoção ao Coração de Jesus nos leva a fixar nosso olhar no
Coração Amante e Amoroso do Senhor, verdadeira imagem de Deus, todo-amor. O seu
Coração é símbolo e sinal de uma existência totalmente ex-cêntrica. A pessoa de
Jesus é ‘ser-para-os-demais’10.
Trata-se, pois, de um encontro de coração a coração. Não é por
acaso que muitos santos falam da ‘troca de corações’, como Santa
Catarina de Sena, para expressar esse intercâmbio de amor profundo.
Portanto, o que está em jogo ao falarmos de uma espiritualidade do Coração de Jesus é se estamos dispostos(as) a conformar o nosso coração (ser, pessoa, totalidade) a um Coração que expressa o Amor inesgotável do Pai por nós.’
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Notas :
[1] Jacques SERR /Olivier
CLEMENT, La preghiera del Cuore, Editrice Ancora, Milano 1980,
14.
[2] Macário, Hom. Spir. XV,20.
[3] Teófano, o Recluso, Compêndio
Moral, 306.
[4] Cf. Héribert FISCHER, ‘Fond del'ame. Chez Eckhart’, in DSAM V,
coll. 650-651.
[5] Cf. Charles-André
BERNARD, Théologie Symbolique, Téqui, Paris 1978, 221-226.
[6] Benedetta PAPASOGLI, ‘Il 'Fondo
del cuore' dalla mistica all'etica nel Seicento Francese’, in Antropologia
dei maestri spirituali (a cura di Ch.-A. BERNARD), Paoline, Cinisello
Balsamo (MI) 1991. 317.
[7] Cf. Fernand JETTÉ, ‘Fond del’ ame. Chez Marie de l'Incarnation’, in DSAM V,
coll. 661-662.
[8] Cf. SAINT-CYRAN, ‘Du Coeur Nouveau’, in Théologie
Familière, avec autres petits traités de devotion, Muguet, Paris 1669.
[9] Cf. Benedetta PAPASOGLI, ‘Il
'Fondo del cuore' dalla mistica all'etica nel Seicento Francese’, 321.
[10] Alejandro DÍEZ-MACHO, ‘Fundamentación
bíblica de la devoción al Corazón de Jesús’, em: Pablo Cervera Barranco, Enciclopedia
temática del Corazón de Cristo, Madrid: BAC 2017, 210-211.
Fonte : *Artigo na íntegra https://domtotal.com/noticia/1521044/2021/06/o-coracao-profundidade-onde-deus-mora/
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