quinta-feira, 10 de junho de 2021

O coração, profundidade onde Deus mora

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 
*Artigo do Padre Alfredo Sampaio Costa, SJ

 

‘O coração é o centro da pessoa, o campo da profundidade, na qual alma e corpo entrelaçam as suas raízes1. Estamos dispostos a deixar nossa zona de conforto, a abandonar a segura superficialidade de nossa vida espiritual, para adentrarmos no mais íntimo de nós mesmos?

Aprendamos hoje da sabedoria dos Padres :

Macário, o grande, padre do quarto século, mestre espiritual, dizia em uma de suas homilias espirituais : ‘O coração, de fato, é o patrão e o rei de todo o organismo corpóreo, e quando a graça se apossa dos pastos do coração, reina sobre todos os seus membros e sobre todos os pensamentos; nele está a inteligência, nele se encontram todos os pensamentos da alma, a qual dele espera o bem2.

Outro grande mestre, Teófano, o Recluso, afirmava : ‘Se o coração é o centro da pessoa humana, então é através dele que a pessoa entra em relação com tudo o que existe3.

Há uma expressão antiga para designar o que chamamos ‘coração’ : é o termo ‘fundo da alma4 : Já S. Agostinho fala de ‘fundus’ da alma ou da ‘memória’ (Confissões X,8,15; PL 32.785). Mas será M. Eckhart a desenvolvê-la em um sentido metafísico para além de todo sentido sensível, espacial ou psicológico quando afirma : ‘De fato ele é ao mesmo tempo alto e profundo’ (In Sapientiam, n.48; In Exodum n. 242). S. Alberto Magno já tinha afirmado o mesmo no seu Comentário ao Evangelho de S. Lucas : ‘Altum et profundum idem est’ (In Lucam 1,32; Opera Omnia, éd. A. Borgnet, Paris 1890-1899, t.22, 76b). Neste sentido, a expressão ‘fundo da alma’ pode ser aproximada a outras expressões do vocabulário espiritual como ‘a parte superior da alma’, ‘o cume da alma’, ‘a centelha’, a ‘sindérese’.

Nas suas variadas expressões, remete a uma perfeita interioridade, como Santo Tomás de Aquino reuniu na sua reflexão : ‘Deus é interior a cada um de nós, como o ser próprio de uma coisa é interior a essa coisa, a qual não poderia nem começar nem durar sem a operação de Deus’ (Sent. I, dist. 37 q.1 a. 1 sol).

Eckhart utiliza dois símbolos para desenvolver o seu pensamento sobre o fundo da alma : o da semente jogada na terra e o do poço. A imagem da semente que lança as suas raízes na terra se liga facilmente com a ideia da ‘semente de Deus’ plantada no interior do ser humano : ‘Deus está no fundo da alma com toda a sua divindade’ (Predigt 10, DW 1, p. 162,5). Eckhart compreende essa semente como a presença de Deus na alma, como o nascimento de Deus na alma.

A imagem do poço é utilizada no seu escrito O homem nobre quando escreve : ‘A imagem de Deus, o Filho de Deus, está no fundo da alma como um poço de água viva’ (DW 5, p.113,5). Esta presença de Deus vai muito além de uma simples interioridade ‘natural’ : pois só Deus pode penetrar no íntimo do espírito da sua criatura. Já S. Tomás de Aquino afirmava o mesmo : ‘Só Deus pode penetrar no íntimo da alma’ (Summa Teológica 1 a. q. 89 a. 2 obj. 2). Portanto, a alma criada não possui as suas raízes em si mesma. Todo ser recebe o seu ser de Deus!

Eckhart deixou vários sucessores no uso dessa linguagem : Jean Tauler, Henri Suso, Jean Ruysbroeck, Louis de Blois, e também Santa Teresa de Ávila e S. João da Cruz.

No século 17, na França, a expressão ‘fundo do coração’ recorre com insistência. No assim chamado ‘ambiente devoto’, o termo ‘fundo’ é uma tentativa de traduzir o que o alemão medieval ‘grunt’ de Echkart queria dizer. Este termo procurava encontrar um lugar, na topografia psicológica, onde se exprimisse simbolicamente um processo de geração, o florescer de uma nova e misteriosa vida5.

Se o fundo do coração é o centro da pessoa, onde é impresso a marca da imagem divina, onde acontece a inserção da graça6, a ele é preciso aplicar a impressionante fórmula de S. João da Cruz : ‘O centro da alma é Deus’ (Chama Viva, 1,3). S. Francisco de Sales também usa a expressão no seu Tratado do Amor de Deus (livro 6, cap.7).

A ursulina Marie de l'Incarnation (1599-1672) utiliza diversas expressões para descrever essa realidade : ‘centro da alma’, ‘o quarto do Esposo’, ‘a sede de Deus’, a ‘morada de Deus’, ‘a parte suprema da alma’, ‘o mais íntimo do ser’, ‘a substância do espírito7.

A palavra ‘centro’ se encontra com frequência unida a até mesmo identificada a Deus presente na alma : ‘A alma está unida a Deus como ao seu centro’ (Écrits, t.1, p.200, 217, 323; t.4, p. 248-249). O fundo da alma é a unidade da alma, tocada intuitivamente por meio de uma experiência passiva da unidade da essência divina.

O fundo se determina por um ‘sim’ ou por um ‘não8 : é uma liberdade a decidir-se, um atravessar íntimo rumo à escolha mais dramática da existência9.

A devoção ao Coração de Jesus nos leva a fixar nosso olhar no Coração Amante e Amoroso do Senhor, verdadeira imagem de Deus, todo-amor. O seu Coração é símbolo e sinal de uma existência totalmente ex-cêntrica. A pessoa de Jesus é ‘ser-para-os-demais10.

Trata-se, pois, de um encontro de coração a coração. Não é por acaso que muitos santos falam da ‘troca de corações’, como Santa Catarina de Sena, para expressar esse intercâmbio de amor profundo.

Portanto, o que está em jogo ao falarmos de uma espiritualidade do Coração de Jesus é se estamos dispostos(as) a conformar o nosso coração (ser, pessoa, totalidade) a um Coração que expressa o Amor inesgotável do Pai por nós.

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Notas :

[1] Jacques SERR /Olivier CLEMENT, La preghiera del Cuore, Editrice Ancora, Milano 1980, 14.

[2] Macário, Hom. Spir. XV,20.

[3] Teófano, o Recluso, Compêndio Moral, 306.

[4] Cf. Héribert FISCHER, ‘Fond del'ame. Chez Eckhart’, in DSAM V, coll. 650-651.

[5] Cf. Charles-André BERNARD, Théologie Symbolique, Téqui, Paris 1978, 221-226.

[6] Benedetta PAPASOGLI, ‘Il 'Fondo del cuore' dalla mistica all'etica nel Seicento Francese’, in Antropologia dei maestri spirituali (a cura di Ch.-A. BERNARD), Paoline, Cinisello Balsamo (MI) 1991. 317.

[7] Cf. Fernand JETTÉ, ‘Fond del’ ame. Chez Marie de l'Incarnation’, in DSAM V, coll. 661-662.

[8] Cf. SAINT-CYRAN, ‘Du Coeur Nouveau’, in Théologie Familière, avec autres petits traités de devotion, Muguet, Paris 1669.

[9] Cf. Benedetta PAPASOGLI, ‘Il 'Fondo del cuore' dalla mistica all'etica nel Seicento Francese’, 321.

[10] Alejandro DÍEZ-MACHO, ‘Fundamentación bíblica de la devoción al Corazón de Jesús’, em: Pablo Cervera Barranco, Enciclopedia temática del Corazón de Cristo, Madrid: BAC 2017, 210-211.

 

Fonte : *Artigo na íntegra https://domtotal.com/noticia/1521044/2021/06/o-coracao-profundidade-onde-deus-mora/ 

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