*Artigo
de Harry Fridman,
escritor especialista em história da religião
Tradução : Ramón Lara
‘Em
1427, o papa Martinho V ordenou que os ossos de John Wycliffe fossem exumados
de seu túmulo, queimados e jogados em um rio. Ele estava morto há 40 anos, mas
a fúria que causou sua ofensa ainda estava viva (uma tradução ousada da
bíblia).
John
Wycliffe (que viveu entre os anos 1330-1384) foi um dos principais pensadores
ingleses do século XIV. Naquela época, a Igreja era todo-poderosa, e quanto
mais contato Wycliffe tinha com Roma, mais indignado se sentia. O papado, ele
pensou, cheirava a corrupção e egoísmo. E esse pensador estava determinado a
fazer algo a respeito.
Wycliffe
começou a publicar panfletos, argumentando que ao invés de buscar riqueza e
poder, a Igreja deve cuidar dos pobres. Em uma ocasião, ele descreveu o papa
como ‘o Anticristo, o sacerdote mundano
orgulhoso de Roma e o mais maldito dos tosquiadores’.
Em
1377, o bispo de Londres exigiu que Wycliffe aparecesse perante sua corte para
explicar as ‘coisas surpreendentes que
brotaram de sua boca’. A audiência era uma farsa.
Como
explica o escritor britânico Harry Freedman, da BBC Mundo, especialista em
história da religião e da cultura e autor de The Murderous History of
Bible Translations (Bloomsbury, 2016), começou com uma briga violenta
sobre se Wycliffe devia sentar-se ou não. John de Gaunt, filho do rei e aliado
de Wycliffe, insistiu em que o acusado permanecesse sentado; o bispo exigiu que
ele se levantasse.
Quando
o Papa ouviu falar sobre o fiasco, ele emitiu uma bula papal [carta papal ou
documento oficial] em que Wycliffe era acusado de ‘ter vomitado da cela suja de seu coração as heresias mais perversas e
condenáveis’. Wycliffe foi acusado de heresia e colocado sob prisão
domiciliar e mais tarde forçado a se retirar de sua posição de mestre do
Balliol College, em Oxford.
A Bíblia pela emancipação
Wycliffe
acreditava firmemente que a Bíblia deveria estar disponível para todos. Ele via
a alfabetização como a chave para a emancipação dos pobres.
Embora
algumas partes da Bíblia tivessem sido traduzidas para o inglês, ainda não
havia uma tradução completa. As pessoas comuns, que nem falavam latim nem
podiam ler, só podiam aprender com o clero. E muito do que eles achavam que
sabiam, ideias como o fogo do inferno e o purgatório, não faziam parte das
Escrituras.
Assim,
com a ajuda de seus assistentes, Wycliffe produziu uma Bíblia em inglês, em um
período de 13 anos, começando em 1382. Era inevitável que isto produzisse uma
reação e em 1391, antes da tradução da Bíblia ser concluída, um projeto de lei
no Parlamento foi introduzido para proibir a Bíblia em inglês e prender
qualquer pessoa que possuísse uma cópia.
O
projeto de lei não foi aprovado, John de Gaunt cuidou disso no parlamento, mas
a Igreja retomou a sua perseguição contra Wycliffe, apesar de ter falecido sete
anos antes, em 1384. Sem outras alternativas, o melhor que podiam fazer era
queimar seus ossos [em 1427], mesmo apenas para garantir que seu local de
descanso não fosse venerado.
O
arcebispo de Canterbury disse que Wycliffe tinha sido descrito como ‘aquele canalha pestilento da memória
condenável, sim, o precursor e discípulo do Anticristo, como um complemento
para a sua iniquidade, inventou uma nova tradução das Escrituras em sua língua
materna’.
Em
1402, o recém-ordenado sacerdote tcheco, Jan Hus, foi nomeado para um púlpito
em Praga para ministrar na igreja. Inspirado pelos escritos de Wycliffe, agora
circulando na Europa, Hus usou seu púlpito para fazer campanha pela reforma administrativa
e contra a corrupção na Igreja.
Como
Wycliffe, Hus acreditava que a reforma social só poderia ser alcançada através
da alfabetização. Dar às pessoas uma Bíblia escrita em tcheco, em vez de latim,
era um imperativo.
Hus
reuniu uma equipe de estudiosos e em 1416 apareceu a primeira Bíblia tcheca.
Foi um desafio direto para aqueles que ele chamou de ‘os discípulos do anticristo’ e a consequência era previsível : Hus
foi preso por heresia.
O
julgamento de Jan Hus, que ocorreu na cidade de Constança, é um dos mais
espetaculares da história. Foi mais como um carnaval : quase todos as
principais figuras da Europa compareceram. Um arcebispo chegou com 600 cavalos;
700 prostitutas ofereceram seus serviços; 500 pessoas se afogaram no lago; e o
papa caiu da carruagem em uma pilha de neve.
A
atmosfera era tão estimulante que a eventual condenação e execução brutal de
Hus deve ter parecido anti ética. O condenado foi queimado na fogueira.
Sua
morte incentivou seus partidários para uma revolta. Sacerdotes e igrejas foram
atacados, as autoridades retaliaram. Em poucos anos, a Bohemia entrou em guerra
civil. Tudo porque Jan Hus teve a coragem de traduzir a Bíblia.
Em
relação à Bíblia inglesa, o tradutor mais famoso que perdeu a vida por esse
crime foi William Tyndale. O décimo sexto século estava em pleno auge e Henry
VIII estava no trono. A tradução da Wycliffe ainda estava proibida e, embora as
cópias dos manuscritos estivessem disponíveis no mercado negro, eram difíceis
de encontrar e caras de adquirir. A maioria das pessoas ainda não tinha ideia
do que a Bíblia realmente dizia.
Contudo,
a impressão em papel estava se tornando mais comum, e Tyndale achou que era o
momento certo para uma tradução acessível e atualizada. Ele sabia que poderia
criar uma Bíblia. Tudo o que precisava era do financiamento e da bênção da
Igreja.
No
entanto, ele rapidamente percebeu que ninguém em Londres estava disposto a
ajudá-lo. Nem mesmo seu amigo, o bispo de Londres, Cuthbert Tunstall. A
política da Igreja assegurou isso por um bom tempo. Contudo, o clima religioso
parecia menos opressivo na Alemanha.
A Reforma Protestante
Lutero
já havia traduzido a Bíblia para o alemão; a Reforma Protestante estava se
acelerando e Tyndale achava que teria uma chance melhor de fazer seu projeto
lá. Então viajou para Colônia e começou a imprimir.
Isso
acabou sendo um erro. Colônia ainda estava sob o controle de um arcebispo leal
a Roma. Quando estava no meio da impressão do Evangelho de Mateus, descobriu
que os seguidores do arcebispo estavam prestes a invadir a imprensa. Ele pegou
seus papéis e fugiu.
Essa
história se repetia várias vezes. Tyndale passou os anos seguintes evitando
espiões ingleses e agentes romanos. Mas ele conseguiu completar sua Bíblia e as
cópias logo inundaram a Inglaterra, ilegalmente, é claro. O projeto estava
completo, mas Tyndale era um homem marcado... e ele não era o único.
O
cardeal Wolsey estava fazendo campanha contra a Bíblia de Tyndale. Ninguém
relacionado a este ou sua tradução estava seguro. Thomas Hitton, um padre que o
conheceu na Europa, confessou ter contrabandeado duas cópias da Bíblia para a
Inglaterra. Foi acusado de heresia e queimado vivo. Thomas Bilney, um advogado
cuja conexão com Tyndale era tangencial, no máximo, também foi jogado nas
chamas em 1531.
Richard
Bayfield, um monge que havia sido um dos primeiros apoiadores de Tyndale, foi
torturado incessantemente antes de ser amarrado e pendurado em uma estaca. E um
grupo de estudantes em Oxford foi deixado em uma masmorra que fora usada para
armazenar peixes salgados até eles apodrecessem.
O
fim de Tyndale não foi menos trágico. Ele foi traído em 1535 por Henry
Phillips, um jovem aristocrata dissoluto que roubara o dinheiro de seu pai e o
perdera no jogo.
Tyndale
estava escondido em Antuérpia, sob a proteção quase diplomática da comunidade
mercantil inglesa. Phillips tornou-se seu amigo e o convidou para jantar.
Quando deixaram a casa do comerciante inglês juntos, Phillips chamou alguns
bandidos que pegaram o Tyndale. Foi o último momento livre de sua vida.
Ele
foi acusado de heresia em agosto de 1536 e queimado na fogueira algumas semanas
depois. Em Antuérpia, a cidade onde Tyndale acreditava estar seguro, Jacob van
Liesveldt produziu uma Bíblia em holandês. Como tantas traduções do século XVI,
seu ato foi tanto político quanto religioso.
Sua
Bíblia foi ilustrada com xilogravuras : na quinta edição, ele representou
Satanás com a aparência de um monge católico, com pés de cabra e um rosário.
Foi um passo longe demais. Van Liesveldt foi preso, acusado de heresia e
condenado à morte. Foi uma era de assassinatos.
O
século XVI foi, de longe, o período mais sangrento para os tradutores da
Bíblia. Não obstante, as traduções da Bíblia sempre geraram fortes emoções e
continuam a fazê-lo.
Em
1960, os recrutas da Reserva da Força Aérea dos EUA advertiram contra o uso
da Versão standard revisada recém publicada porque, como
afirmaram, 30 pessoas em seu comitê de tradução tinham participado ou tinham
sido ‘parte das frentes comunistas’.
Em
1961, o estado-unidense T.S. Eliot, um dos principais poetas do século XX, em
oposição à Nova Bíblia em inglês escreveu que ela ‘surpreende em sua combinação do vulgar,
trivial e pedante’.
E
os tradutores da Bíblia ainda estão sendo mortos. Não necessariamente por causa
da sua tradução, mas porque é uma das coisas que os missionários cristãos
fazem.
Em
1993, Edmund Fabian foi assassinado em Papua Nova Guiné por um homem local que
o ajudara a traduzir a Bíblia.
Em
março de 2016, uma organizadora evangélica dos EUA foi morta por militantes em
um local não revelado no Oriente Médio. Traduzir a Bíblia pode parecer uma
atividade inofensiva, mas a história mostra que é tudo menos isso.’
Fonte
:
* Artigo na íntegra https://domtotal.com/noticia/1360868/2019/05/a-historia-sangrenta-das-primeiras-traducoes-da-biblia/
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