Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)
*Artigo
de Margot Patterson,
escritora e editora
Tradução : Ramón Lara
‘Não
há fantasmas no Mosteiro de Notre Dame de L'Atlas, em Midelt, no Marrocos, mas
há muitas lembranças. É nesta cidade, no pé das montanhas do Atlas, onde os
dois monges trapistas que sobreviveram ao massacre de sua comunidade em
Tibhirine, na Argélia, restabeleceram sua comunidade.
As
lembranças do passado estão por perto. Uma pintura na capela da abadia
representa os monges mortos de Tibhirine em oração; os quartos da abadia levam
seus nomes; um memorial para os monges através de seus retratos. Esses irmãos
que deram suas vidas pela paz e amizade se foram, mas não ficaram esquecidos
nessa abadia no Marrocos.
Junto
a outros 12 cristãos mortos durante a guerra civil argelina nos anos 1990, os
sete monges de Tibhirine foram beatificados em dezembro de 2018. Eles são
considerados mártires, suas mortes fazem parte das feridas de uma guerra
marcada pelos brutais massacres de civis.
No
início da manhã de 27 de março de 1996, membros do Grupo Islâmico Armado (GIA,
do Groupe Islamique Armé) chegaram à abadia em Tibhirine e sequestraram
os sete monges que estavam no local. O GIA e os governos argelino e francês
trocaram correspondências, quando o GIA tentou negociar a troca os monges por
um líder do GIA preso três anos antes. Os monges foram mantidos em cativeiro
por dois meses. Suas cabeças decapitadas foram encontradas no final de maio de
1996, e enterradas no cemitério de Tibhirine em 4 de junho. Os eventos que
levaram ao rapto dos monges no monastério de Notre Dame de L'Atlas em Tibhirine
são o tema que inspira o filme premiado de 2010, De deuses e homens.
O
padre Jean-Pierre Schumacher e o padre Amédée Noto devem suas vidas ao fato de
estarem em uma parte diferente do mosteiro quando os guerrilheiros chegaram. ‘Não
havia barulho. Não havia nada de extraordinário’, disse Schumacher sobre
aquela noite que marcaria a vida dele e de outros monges para sempre.
Com
a morte do padre Amédée em 2008, o padre Jean-Pierre é o único sobrevivente do
mosteiro de Tibhirine. O papa Francisco prestou homenagem a ele durante sua
visita ao Marrocos no final de março, beijando sua mão em gesto de respeito e
reverência.
Agora
com 95 anos, Schumacher continua sendo uma testemunha de eventos que ainda hoje
estão envoltos em mistério. As mortes dos monges foram atribuídas aos
jihadistas islâmicos, mas há suspeitas de que o governo argelino e,
possivelmente, o governo francês também possam estar envolvidos. Uma reportagem
da revista Time, de 2009, informou que o depoimento de um general
francês aposentado indica que as mortes podem ter sido resultado de uma
operação militar argelina que deu errado. Os corpos dos monges nunca foram
encontrados. ‘Não se sabe’, disse Schumacher. ‘É um mistério que não
foi esclarecido’.
Pequeno
e frágil, o monge fala com voz clara sobre os dias sombrios da guerra civil
argelina. ‘Vivíamos em um clima de total insegurança no dia a dia’,
lembrou ele. Os monges de Tibhirine foram avisados para deixar a Argélia. Eles
discutiram seriamente sobre a possibilidade de partir, mas decidiram
permanecer, apesar de sentir o perigo se aproximando a cada momento. Os monges
foram para a Argélia não para converter muçulmanos, mas para viver em amizade
com eles. Desde 1938, quando o mosteiro foi fundado, eles e seus vizinhos
muçulmanos conviveram em harmonia. Os religiosos chamaram o Exército argelino
de ‘nossos irmãos da planície’ e os rebeldes ‘nossos irmãos das
montanhas’ na esperança de que um dia os dois se tornassem verdadeiramente
irmãos. Pressionados a tomar partido entre os guerrilheiros islâmicos e o
governo argelino, eles se recusaram.
Schumacher
era o porteiro da noite na abadia. Como tal, todos esperavam que ele fosse o
primeiro a ser afetado pelo perigo para a comunidade. Mas os guerrilheiros que
chegaram depois da meia-noite não entraram pela porta principal, mas pelo
porão. Schumacher nunca ouviu nada. Somente horas depois ele e Noto descobriram
o que tinha ocorrido.
Apesar
de os cineastas terem visitado Notre Dame de L'Atlas em Midelt, De
deuses e homens foi rodado em um mosteiro beneditino abandonado a
cerca de 25 quilômetros de lá.
Em
parte por causa da popularidade do filme, a coragem e a fidelidade dos monges
ao seu chamado tornaram-se bem conhecidas. Mas os monges em Tibhirine não eram
os únicos nesse propósito, disse Schumacher. ‘Todas as comunidades cristãs
optaram por permanecer na Argélia para ajudar as pessoas que sofriam’,
disse ele. ‘Toda a Igreja teve essa atitude.’
E
não foram apenas os cristãos que resistiram à onda de violência que assolava a
Argélia, após governo perder uma eleição em 1991 e se recusar a ceder o poder.
Schumacher observou que 114 imãs perderam suas vidas porque se opuseram à
violência no país.
Após
a morte dos monges em sua comunidade, Schumacher ficou atormentado e se
questionou por que ele não havia sido levado também. ‘Meu coração não estava
pronto?’ ele se perguntou. ‘A lâmpada não estava acesa?’
A
carta de uma abadessa de um mosteiro cisterciense na Suíça lhe ofereceu
consolo. Ela perguntou sobre sua vida interior e lhe disse para não se
incomodar pela ansiedade ou apreensões – que Deus tinha levado sete homens para
testemunhar o Evangelho através de suas mortes e deixou outros dois para testemunharem
por suas vidas.
Schumacher
não tem dúvidas disso. ‘Foi Deus quem dirigiu essa história’, disse ele
sobre os eventos de 1996. ‘O que aconteceu naquele mosteiro se tornou uma
imagem para o mundo inteiro. Uma imagem de reconciliação. É um chamado para
todos hoje.’
A
comunidade em Midelt é pequena, apenas meia dúzia de monges de diferentes
países. Ainda assim, é um lugar ativo. O padre Benoît, o monge que me recebeu
na entrada do mosteiro, disse que pessoas de fora do Marrocos frequentemente
viajam ao mosteiro para visitar o padre Jean-Pierre Schumacher. Um grupo de
estudantes franceses fazendo estágio em Marrocos estava hospedado no mosteiro
quando o visitei. Era realizado também um encontro das Pequenas Irmãs de Jesus,
reunindo religiosas de meia dúzia de lugares na Argélia e do Marrocos.
As
irmãs, como os monges, inspiram-se no exemplo de Charles de Foucauld, um
oficial da cavalaria francesa, explorador e geógrafo que se tornou padre e
viveu no Saara entre o povo tuaregue da Argélia antes de sua morte, em 1916.
Uma pequena capela no mosteiro é dedicada a ele. Próximo a essa capela, outra é
dedicada ao padre Albert Peyriguère, um francês tão movido pelo exemplo de seu
compatriota que partiu para imitá-lo no Marrocos, estabelecendo-se na pequena
cidade de El Kbab e oferecendo ajuda médica, comida e roupas para a população
indígena berbere das redondezas. Como Charles de Foucauld, ele coletou
histórias, canções e poemas da população local, tornando-se um etnólogo e
especialista no povo berbere.
‘Ele
se tornou mais berbere do que os berberes’, disse o padre Benoît, que
descreveu Peyriguère, cujo túmulo está na capela, como um indivíduo
extraordinário, um pai espiritual dos monges e um homem muito amado pelas
pessoas locais a quem ele ajudou. Nascido em 1883, Peyriguère morreu em 1959. ‘Os
xiitas são os muçulmanos mais próximos de nós cristãos’, disse o padre
Benoît. ‘Porque Trump segue essa política com o Irã?’
Quando,
há quase 20 anos, Notre Dame de L'Atlas se mudou para Midelt, perto de Medea,
na Argélia, os monges ocuparam aposentos anteriormente das religiosas
pertencentes às Missionárias Franciscanas de Maria. ‘Elas eram muito amadas’,
disse o padre Benoît. Um policial na entrada do mosteiro me deixou imaginando
se os monges se sentiam ameaçados, mas o padre disse que as relações entre o
mosteiro e a comunidade são excelentes. Ele achava que a polícia havia sido
colocada no portão depois de ataques terroristas na França. ‘As pessoas
estão felizes por estarmos aqui para mostrar que cristãos e muçulmanos podem
viver juntos’, disse.
Ele
me apresentou a uma irmã que atravessava o pátio do mosteiro, integrante das
Pequenas Irmãs de Jesus, uma ordem religiosa fundada na Argélia em 1939.
Seguindo o caminho do padre Charles de Foucauld, as Pequenas Irmãs de Jesus são
contemplativas e compartilham a vida cotidiana com trabalhadores, minorias e
outras pessoas que são materialmente pobres ou são ignoradas e desconsideradas.
Originalmente,
as Pequenas Irmãs de Jesus viviam entre os muçulmanos. Sua fundadora se estabeleceu
entre os nômades no deserto do Saara. Desde a sua criação, a ordem cresceu. As
integrantes das Pequenas Irmãs de Jesus estão agora presentes em 63 países,
onde tentam ser uma ponte entre todas as raças, classes e religiões. A irmã
Anne Yvette disse que ela e as outras irmãs buscam ‘uma vida de amizade,
oração e presença, um testemunho de uma fraternidade maior’.
Hoje,
mais do que nunca, a fraternidade parece ilusória no mundo, mas a missão dos
monges em Midelt não parece menos importante. Em nossa conversa, o padre
Jean-Pierre Schumacher falou da necessidade de diálogo, da necessidade de um
novo equilíbrio no mundo. Ele tem esperança de que a morte de seus irmãos
monges em Tibhirine, há 23 anos, gerem um novo espírito de reconciliação.
Em
um mundo polarizado, a menção ao ‘diálogo’ pode parecer quase singular,
mas não abalou o desejo do homem que sobreviveu a uma guerra civil e ao
assassinato de seus irmãos. Quando o deixei, ele perguntou se a publicação para
a qual eu escrevo provoca diálogo de fato. Essa era sua
principal vontade.’
Fonte
:
* Artigo na íntegra https://domtotal.com/noticia/1367163/2019/06/o-ultimo-monge-de-tibhirine-deus-dirigiu-essa-historia/
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