Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)
Estudantes de enfermagem cuidam de um paciente na enfermaria de HIV e Aids do Hospital Saint Vincent, na década de 1980.
(Arquivo/ Sisters of Charity of New York)
*Artigo
de Michael J. O'Loughlin,
correspondente da America Magazine
Tradução : Ramón Lara
‘Uma
mãe de cinco crianças precisava de ajuda para ir a várias consultas médicas,
organizar seus medicamentos, arranjar transporte e completar os muitos outros
desafios do dia-a-dia que enfrentam as pessoas com HIV e Aids nos primeiros
anos da epidemia. Julie Driscoll, freira da congregação das Irmãs da Caridade
de Nazaré, lembra-se desta mulher em particular, porque, mesmo diante do medo e
da incerteza que acompanhavam o diagnóstico, ela aprendeu uma lição sobre
gratidão.
‘No
final, quando perguntávamos : ‘Winnie, como você está?', ela sempre respondia :
‘Sou abençoada’, recordou recentemente a irmã Driscoll. ‘Vocês podem imaginar?’
Nos
últimos anos, pesquisei como a Igreja Católica, tanto a instituição quanto os
fiéis, responderam ao intenso sofrimento dos mais marginalizados durante a
crise da Aids nos Estados Unidos. Para aqueles de nós que são muito jovens para
lembrar, o escopo desse sofrimento pode ser difícil de compreender. De acordo
com o grupo de pesquisa sobre a AIDS da agência amfAR, mais de 319.000 pessoas
nos Estados Unidos morreram de complicações relacionadas com o HIV e a Aids
entre 1981 e 1995.
‘As
pessoas estavam desesperadas. Seus amigos estavam morrendo a cada semana’,
lembra Andy Humm, ativista dos direitos dos gays e jornalista.
Muitas
pessoas, entre elas alguns padres católicos, irmãs e irmãos religiosos e leigos
enfrentaram o estigma perpetuado em quase todos os setores da sociedade,
incluindo a Igreja, respondendo pastoralmente ao HIV e à epidemia de Aids nos
primeiros anos. A irmã Driscoll estava entre eles.
De
1993 a 2003, Driscoll foi diretora executiva da Casa de Rute (House of Ruth),
um centro de serviços sociais em Louisville, Kentucky, fundado em 1992 por um
punhado de outras religiosas e seus amigos.
Em
seus primeiros dias, a Casa de Rute não era exatamente uma ‘casa’, mas
duas salas em um centro paroquial. Era um espaço para pessoas que lidavam com o
HIV e a Aids, em sua maioria mulheres e seus filhos, que ficavam na Casa de
Rute para assistência. Às vezes, precisavam de ajuda para encontrar um médico
disposto a tratá-los – essa era uma época em que até mesmo alguns profissionais
de saúde não tocavam em pacientes com HIV ou Aids. Às vezes, simplesmente
pediam o necessário, apenas alguns dólares para a passagem de ônibus para que
pudessem fazer alguns trabalhos informais. Eles também procuraram garantias de
que não estavam sozinhos.
‘As
pessoas frequentemente me perguntavam, o que deveriam fazer se conhecessem
alguém que tem HIV?’ A irmã Driscoll relembrou seus esforços na educação
comunitária. Sua resposta foi : ‘Toque-os por favor. Abrace-os se puder’.
Hoje,
a Casa de Rute é um centro de acolhimento e serviços sociais que atende mais de
600 pessoas por ano (Estima-se que cerca de 6.600 pessoas em Kentucky vivem com
HIV). É um dos maiores centros do seu tipo no estado, que já experimentou uma
onda de diagnósticos de novas infecções por HIV nos últimos anos.
•••
Hoje,
os desafios permanecem na erradicação do HIV, mas um diagnóstico não é mais uma
sentença de morte. Muitos medicamentos estão disponíveis tanto para diminuir a
transmissão de HIV, como para retardar ou eliminar o progresso da HIV à Aids.
Então,
por que estou entrevistando dezenas de pessoas sobre eventos há 30 anos,
pedindo-lhes para descrever momentos marcados por tristeza, medo e ansiedade?
Já faz décadas desde que muitos deles pensaram sobre essas experiências. Tenho
notado que, muitas vezes, quando encerro essas conversas, a pessoa que estou
entrevistando dize algo como : ‘Espero que tenha sido útil. Há tanta coisa
que não me lembro’.
E
às vezes eles voltam algumas semanas depois, para compartilhar outras
histórias.
Essas
pessoas podem ter vasculhado seus arquivos pessoais ou contatado um amigo ou
ex-colega. Eles agora têm mais a me dizer. Em conversas subsequentes, tornam as
vidas de seus amigos perdidos mais vivas, recontando peculiaridades de
personalidade ou jantares memoráveis. Eles também articulam mais claramente sua
tristeza e se lembram de seus sentimentos de desamparo.
Esses
encontros estão sempre em movimento, mas eu os procuro por razões mais
importantes do que simplesmente querer aprender sobre o passado.
Primeiro,
muitas dessas histórias de pessoas comuns que respondem ao sofrimento de
maneira extraordinária ainda não foram capturadas em formas que durarão. Dado
que o primeiro caso do que se tornaria conhecido como a Aids foi relatado em
1981, quase quatro décadas atrás, muitas das pessoas que estavam na linha de
frente estão agora na velhice. O tempo não está do nosso lado.
Segundo,
o relacionamento da Igreja institucional com as pessoas LGBT hoje é tenso. Mas
há exemplos históricos de bondade entre católicos e pessoas LGBT durante a
epidemia que podem ser úteis à medida que navegamos em grandes mudanças
sociais.
Muitas
pessoas na minha geração - eu tenho mais de 30 anos - deixaram a Igreja por
causa da percepção de hostilidade de alguns líderes eclesiais em relação
àqueles com sexualidades não normativas. Pessoas mais jovens que eu muitas
vezes olham para o passado da Igreja quando tentam ordenar suas vidas por
razões semelhantes.
O
HIV e a Aids afetaram mais pessoas do que a comunidade gay. Mas eu me concentro
na relação entre a comunidade gay e a Igreja naquela época porque fornece
histórias previamente desconhecidas de católicos que superam viver o viés
social. Estou ansioso para ouvir e busco ajudar a compartilhar suas histórias
de coragem silenciosa.
Tome
Michael Carnevale, OFM, um frade franciscano que por muitos anos ministrou na
Igreja de São Francisco de Assis, uma grande paróquia do lado da Estação
Pensilvânia, em Nova York.
Durante
um período sabático no início dos anos 80, o padre Carnevale vivia na área da
baía de San Francisco. Ele fez amizade com um homem chamado Michael e seu
parceiro, Donald. Michael, um artista cujo amor pela vida se manifestou nas
festas a fantasia épicas que hospedou, ficou doente. Ele viveu com HIV por
cerca de três anos. Durante esse período, o padre Carnevale passou os finais de
semana com seus amigos, ajudando Michael durante seu processo de
enfraquecimento.
Na
noite de Halloween de 1983, Michael morreu. Estava cercado por cerca de 30
amigos, cada um vestindo um traje para uma última festa. O padre Carnevale
estava entre eles. Movido pelo sofrimento de seu amigo, decidiu fazer mais. Ele
se voluntariou como capelão no Hospital Geral de São Francisco, visitando os
homens, em sua maioria gays, que estavam passando seus últimos dias em uma
enfermaria para pessoas com HIV e Aids. Ele rapidamente chegou a entender que
esses homens precisavam de mais do que cuidados médicos. Precisavam saber que
as pessoas se importavam com eles.
‘Naquela
época, a Igreja não estava realmente envolvida’, recordou o padre Carnevale
em uma entrevista em 2017. Ele sabia que havia uma necessidade, mas não tinha
certeza de quem poderia ajudar. Sua mente se voltou para um grupo de ‘velhas
senhoras italianas’ que se reuniam regularmente na Paróquia da Missão das
Dores, em San Francisco. Carnevale perguntou se poderia se juntar ao grupo e
eles concordaram.
‘Eu
lhes falei da necessidade que tínhamos, que jovens homens e mulheres[com HIV e
Aids] estavam [sozinhos] em seus apartamentos e realmente não tinham ninguém
para cuidar deles’, disse o padre.
Ele
perguntou se algumas mulheres considerariam ser voluntárias.
‘Eu
não sabia que tipo de resposta receberia, mas foi incrível’, disse
Carnevale. ‘Elas iam, limpavam e cozinhavam. Algumas delas levavam alguns
dos rapazes e garotas para os atendimentos médicos porque não tinham ninguém
que cuidasse deles’.
Refeições
caseiras, apartamentos limpos e passeios podem parecer insuficientes num
momento em que as comunidades mais afetadas pelo HIV e Aids exigia uma mudança
sistêmica - nos serviços de saúde, governo, instituições religiosas e quase
todos os outros setores da sociedade. A Igreja dificilmente não tem culpa
quando se trata de criar uma cultura de medo e julgamento em torno do HIV e
Aids. Mas para aqueles que se sentiam abandonados e sozinhos, esses atos de
bondade eram mais do que gestos. Eles eram linhas de vida para o mundo
exterior.
Era
impossível para qualquer um que ficasse vivo na época, não sentir visceralmente
o medo que permeava as comunidades devastadas pelo HIV e Aids nos primeiros
dias. Era impossível não compreender o abandono e isolamento que muitos
indivíduos experimentaram em seus últimos dias. Mas sentei-me em silêncio com
homens que, décadas depois, choram ao relatar todos os amigos que perderam em
apenas alguns anos. De fato, tenho admirado as irmãs católicas, agora com seus
70 e 80 anos, que se emocionam com minha sugestão de que seu trabalho foi
extraordinário, e ainda heroico.
‘Não
se trata de um bando de mártires nesse período. Realmente não é’, diz
Pascal Conforti, uma irmã ursulina. A irmã Conforti era a diretora de serviços
pastorais do antigo Hospital St. Clare, no bairro Hell's Kitchen, em Nova York.
Antes de fechar em 2007, St. Clare's serviu a um grande número de pacientes com
HIV e Aids. ‘Fizemos o que fizemos porque era onde estávamos no momento’.
Embora
a maioria das pessoas que entrevistei resista ao elogio, um olhar reflexivo
desta vez na história mostra que cada resposta diferente ao HIV e à epidemia de
Aids durante os primeiros anos foi, de fato, extraordinária.
Algumas
pessoas, incluindo católicos, tornaram a vida mais difícil para os mais
vulneráveis. A grande maioria dos americanos não fez nada. Contudo, mais do que
algumas poucas pessoas, muitos ofereceram um toque gentil, livre de julgamento
e desprezo. Estas são apenas algumas histórias. Muitas outras pessoas
compartilharam seus testemunhos comigo e continuo procurando ouvir mais, porque
incorporar essas histórias pode ser um testemunho duradouro do poder do chamado
de Jesus de amar uns aos outros.
Se
você tem histórias dos primeiros anos da epidemia de HIV e Aids que você
gostaria de compartilhar, por favor envie um email para o autor em oloughlin@americamedia.org.’
Fonte
:
* Artigo na íntegra https://domtotal.com/noticia/1362347/2019/06/catolicos-escreveram-uma-historia-secreta-durante-a-epidemia-da-aids/
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