*Artigo de Robert Mickens,
colunista da La Croix International
Tradução : Ramón Lara
‘‘Se
você quer ser padre, minta!’ Isso era para ser uma piada em Mass
appeal, uma comédia dramática escrita pelo dramaturgo católico americano
Bill C. Davis. Encenada pela primeira vez em 1980, foi transformada em filme quatro anos depois.
Na
versão para a tela, Jack Lemmon estrela no personagem do padre Tim Farley, um
pastor popular de uma paróquia rica em Connecticut. Ele é um tipo de padre
amigável e de bon vivant, cujas homilias são cuidadosamente
planejadas para evitar desafiar ou perturbar seus generosos paroquianos.
O
padre Farley dirige um Mercedes-Benz de último tipo, adora seu vinho e uísque e
passa o dia na pista de corrida. Ele é ‘considerado um dos melhores padres’
da diocese.
Um
dia, é convidado a ser mentor de Mark Dolson (Zeljko Ivanek), um jovem diácono altamente idealista, que corre o
risco de ser impedido de ser ordenado sacerdote por não ter lidado bem com
algumas situações no seminário. A principal ofensa de Mark é que ele defendeu
fortemente dois seminaristas expulsos por um relacionamento homossexual
suspeito.
O
reitor do seminário (Charles Durning) suspeita que Mark também seja gay. Então,
o padre Farley, que conta mentirinhas ‘inocentes’ o tempo todo
para ‘o bem de sua paróquia’, aconselha Mark evitar de contar a verdade
sobre sua sexualidade para que ele possa se tornar um padre, algo que o jovem
deseja com todo o seu ser. ‘Se você pode se dar ao luxo de não ser padre’,
Farley o adverte – ‘diga a verdade. Mas se você quer ser padre, minta!’
Mendicidade na casta
clerical
Nos
últimos meses, e até mesmo nestes últimos dias, essas linhas me vieram várias e
várias vezes. De fato, somos tentados a alterá-las e dizer : ‘Se você quer
ser um bispo e, especialmente, um cardeal, então minta’.
Os
crimes sexuais perpetrados por padres e bispos, e o encobrimento criminal por
membros de todas as classes do clero mostraram que não poucos homens nas Ordens
Sagradas disseram mentiras. Alguns, como Theodore McCarrick, parecem ter
construído uma carreira inteira baseada em não dizer a verdade, pelo menos não
toda a verdade.
Especialmente
naqueles países onde a ‘crise de abuso’ ainda está se desdobrando (ou
seja, na maioria dos lugares), os católicos estão perplexos e indignados. Eles
se perguntam : quanto mais de sujeira vai sair e mais quantos clérigos de alto
escalão serão expostos como abusadores e mentirosos.
O último
soco no estômago foi uma série de revelações sobre Michael Bransfield, o
ex-bispo completamente desonrado da única diocese católica no pobre estado de
West Virginia.
O Washington
Post publicou, em 5 de junho, uma reportagem mostrando que o bispo Bransfield,
que está sendo investigado por ter assediado sexualmente padres e seminaristas,
doou US$ 350 mil de fundos diocesanos em presentes a cardeais de alta patente e
aos homens que supostamente assediava.
McCarrick,
que foi fundamental na nomeação de Bransfield como bispo em 2004, foi um dos
principais beneficiários da generosidade do bispo em desgraça. O ex-cardeal
dirigiu a Arquidiocese de Washington, onde Bransfield serviu de 1980 a 2004 no
Santuário Nacional da Imaculada Conceição.
Outros
beneficiários dos generosos presentes do dinheiro de Bransfield incluíam os
cardeais Donald Wuerl (aposentado recentemente) e Timothy Dolan (Nova York),
bem como o arcebispo William Lori, de Baltimore.
O
bispo também deu dinheiro a três americanos com cargos poderosos em Roma – o
cardeal Raymond Burke e os agora falecidos cardeais Bernard Law e Edmund Szoka.
Dois
diplomatas do Vaticano também receberam doações monetárias substanciais do
bispo quando serviam como núncios papais aos Estados Unidos – o saudoso
arcebispo Pietro Sambi e o agora notório arcebispo Carlo Maria Viganò.
Todos os caminhos
levam a Roma
Mas
uma das revelações mais alarmantes no artigo do Washington Post,
que se baseia em documentos legais legitimamente verificados, é que o bispo
Bransfield deu dois presentes totalizando o valor de US$ 29 mil ao cardeal
Kevin Farrell, prefeito do Dicastério para Leigos, Família e Vida. Farrell
conseguiu seu posto no Vaticano em agosto de 2016 depois de cumprir nove anos
como bispo de Dallas.
Antes
disso, porém, ele era padre em Washington e atuou eventualmente como um dos
bispos auxiliares de McCarrick (2001-2007). Bransfield deu a Farrell quase US$
30 mil para reformar o apartamento do cardeal no Vaticano. Alguns desses
cardeais e bispos protestaram contra sua ingenuidade ou inocência em aceitar um
suborno.
A
maioria não disse nada. E nenhum deles neste momento, exceto o arcebispo Lori,
que está supervisionando a investigação das atividades de assédio sexual de
Bransfield, condenou o bispo em desgraça ou prometeu devolver os fundos.
Nenhum
desses bispos ou cardeais parou para se perguntar de onde Bransfield estava
recebendo todo esse dinheiro? Algum deles considerou se ele tinha segundas
intenções para lhes enviar dinheiro? Ou que pode ser antiético para eles
receberem esse dinheiro?
Alguém
pode ser tentado pela caridade a insistir (ou pelo menos desejar fortemente)
que as ações de Bransfield fossem apenas as de um bispo solitário – uma espécie
de ação única que de modo algum sugere que tais tentativas de comprar favores
sejam uma prática comum no sacerdócio e na hierarquia.
Mas a tentação mais forte – apoiada pelos fatos da história e a
profunda desconfiança da hierarquia que o abuso sexual e os escândalos de
encobrimento geraram – é identificar esse padrão de corrupção e
falsidade como mais disseminado e endêmico de um sistema clericalista ruim.
Isso já aconteceu
antes
E
não se iluda pensando que isso é apenas ‘uma coisa americana’. Você pode
apostar que continua acontecendo em todo o mundo. Afinal, as tentativas de
adquirir influência e ofício eclesiástico existem desde a fundação da
comunidade cristã primitiva (cf. At 8,18-25).
As
histórias de cardeais que, acredita-se, teriam ‘comprado’ seus chapéus
vermelhos são lendárias em Roma. E aqueles prelados vestidos de escarlate que
usaram seu próprio dinheiro ou o dinheiro de outros para encobrir seus delitos
são mais conhecidos do que a maioria das pessoas nas ‘províncias’ pode
suspeitar.
Um
dos casos mais recentes a ganhar as manchetes foi o relativo à reforma da
residência do cardeal Tarcisio Bertone, o secretário de Estado do Vaticano sob
Bento XVI e brevemente secretário do papa Francisco.
Depois
de se aposentar em 2013, o cardeal salesiano desembolsou quase US$ 400 mil para
renovar dois apartamentos de cobertura no Vaticano, que ele comprou para ser
seu lar de idoso. Tornou-se controverso apenas porque foi descoberto que a
construtora faturou duas vezes pelo projeto e dois funcionários do Hospital
Infantil Bambino Gesù pagaram a outra metade. Os dois acabaram sendo acusados
de apropriação indevida de fundos.
Bertone
negou pedir o dinheiro, mas em um gesto de boa vontade doou cerca de US$ 170
mil para o hospital infantil para ajudar a cobrir a perda. O que foi mais
surpreendente foi que ninguém parecia se perguntar de onde o cardeal tinha
tirado todo esse dinheiro. Ele vem de uma família modesta e passou a maior
parte de sua vida em uma ordem religiosa, o que significa que ele fez um voto
de pobreza.
Ele
não estava mais vinculado a esse voto quando se tornou bispo em 1991. Mas,
mesmo assim, os salários do Vaticano não são tão altos – mesmo para os
cardeais. Ele obviamente tinha amigos generosos e benfeitores.
Sexo e dinheiro
Um
amigo padre previu, há 15 anos ou mais, que o próximo grande escândalo ou crise
na Igreja seria de natureza financeira. Mas ele não estava falando sobre coisas
como suborno ou compra de favores como vimos no caso Bransfield.
E
nem quis dizer peculato ou roubo da cesta das oferendas. Em vez disso, estava
falando da inépcia financeira do pároco comum e de um sistema clerical que
coloca o ‘padre’ encarregado de tudo – até mesmo das cestas e da bolsa
paroquial.
Negligência
na supervisão, falam alguns. O padre disse que a forma como os bispos continuam
a transferir tais pastores ineptos de uma paróquia para outra poderia ser
facilmente documentada.
O
padrão típico é que o clérigo seja designado para uma paróquia com dinheiro no
banco, apenas para deixá-lo com uma grande dívida quando for transferido para
outro lugar, seis ou 12 anos depois. E aí o padrão se repete.
‘A única coisa que enfurece os católicos quase tanto quanto
saber que os bispos protegem os padres predadores que poderiam ter acabado
molestando seus próprios filhos, é saber que os bispos estão se arrastando em
torno de padres que estão desperdiçando o dinheiro do povo’, disse meu amigo padre.
Isso também é uma
forma de desonestidade
Mas
provavelmente não é devido à malícia, embora o abuso de sexo e dinheiro possa
ser uma forte tentação até para os homens de estola. Não, o problema com grande
parte do comportamento escandaloso que estamos testemunhando entre os clérigos
está enraizado no ‘clericalismo’, como o papa Francisco insiste.
Graças
a Deus a Igreja Católica tem tantos sacerdotes bons e honestos quanto ela.
Porque, com certeza, o heroísmo é bom em um sistema clericalista muito ruim e
quebrado, no qual ‘o pai/padre sabe o que é melhor’, e espera-se que as
pessoas façam o que ele diz. Isso, claro, também é mentira. E cada vez menos
católicos ainda acreditam nisso.’
Fonte
:
* Artigo na íntegra https://domtotal.com/noticia/1364492/2019/06/confianca-quebrada-em-um-sistema-clerical-quebrado/
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