*Artigo de Dom Walmor Oliveira de Azevedo,
Arcebispo
Metropolitano de Belo Horizonte, MG
‘O
tesouro da fé, com sua força sustentadora, é indispensável alicerce para a
humanidade, ainda que as assimilações das práticas religiosas e políticas
tenham desvirtuado a vivência da fé. Assim, o que deveria ser uma rica
experiência se distanciou da essência da verdade e do amor, próprios desse
tesouro, causando prejuízos e perda de credibilidade.
O
retorno às fontes da fé, à sua vivência testemunhal, longe das perigosas
divisões e tendências ideológicas, comprova a retomada de um caminho iluminado
capaz de qualificar a condição existencial de cada pessoa e, consequentemente,
a sua cidadania, conduzindo a humanidade na direção do amor e da verdade.
A
inteligente referência à imagem simbólica do vaso de barro, que guarda o
tesouro da fé, é um recurso com força pedagógica, usado pelo apóstolo Paulo, em
sua missão desenvolvida em contextos urbanos semelhantes aos atuais. Um tempo
marcado pelas polarizações e arriscada relativização de valores e princípios. A
exemplo do que se assiste hoje, grupos e segmentos se digladiavam, provocando
preocupante distanciamento do tesouro da fé.
Os
argumentos ideológicos na defesa da fé se aproximam, pelos extremos, da conduta
daqueles que a instrumentalizam por interesses político-partidários. Conduzem
ao caos, acelerando o enfraquecimento das relações entre os que creem.
Incapacitam ou impedem que a força da fé reoriente os caminhos da humanidade na
direção do amor de Deus. Nesse horizonte, lamentavelmente, os cristãos gastam
muito tempo com disputas a partir de suas diferenças. Deixam-se engolir por
dinâmicas hegemônicas, de caráter partidário, acentuando ainda mais os
distanciamentos.
É
fato que as disputas crescentes e as resistências multiplicadas não contribuem
para a construção de um novo tempo, e retardam a recepção do que é genuíno da
fé, pela Palavra de Deus, com a força própria da tradição. Assim, pode-se
perceber que o ponto de partida das divisões não é a autenticidade da fé, mas a
disputa a partir de lugares que evidenciam queda de braço entre ideologias de
matizes diferentes. O contexto revela um confronto que não encontrará a solução
do entendimento e do fortalecimento, a exemplo do que requer a construção de
uma sociedade assentada nas dinâmicas do desenvolvimento integral - com
crescimento sustentável e relações cidadãs em parâmetros civilizatórios que
permitam o diálogo.
Vale
pensar o próprio constitutivo da fé a partir da escuta que impulsiona ao
indispensável diálogo, capaz de fazer das diferenças a riqueza e a consequente
força criativa de reconstrução. Mas, ao contrário, fala-se muito sem escutar
integralmente o outro e a si mesmo. Discurso autodestrutivo que se configura
por descompassos, rigidez, acusações.
É
fundamental ter presente o discernimento de que a palavra do cristão, inspirada
pelo Espírito Santo, deve ser edificante, incluir a correção, a crítica
necessária e, sobretudo, o compartilhamento de nova compreensão, de
entendimentos que construam e desenvolvam novas condutas à luz dos valores do
Evangelho. O cristão é morada do Espírito Santo, logo, o que diz e o que faz há
de ser movido por esse mesmo Espírito. Na contramão dessa direção e dessas
dinâmicas, já não é Deus quem age.
Por
isso mesmo, a cidadania civil precisa da qualificada cidadania cristã. Algo que
se constrói na vivência da fé e tem seu ponto de partida no retorno à fonte
dessa mesma fé. Mas dos assoreamentos dessa fonte, vêm o risco das disputas
figadais sem solução, empurrando indivíduos ao contexto de criminalização por
falta de respeito à inviolável dignidade de toda pessoa. O momento cultural e
sociopolítico, como também religioso, indica a importância de assimilação e
práticas que, cotidianamente, devolvam as pessoas à necessária conexão com a
força transformadora da fé, recebendo desse tesouro uma sabedoria com claridade
própria para entendimentos, correções e alinhamentos em busca do bem e da
verdade.
Urge
a purificação dos interesses partidários hegemônicos, com a transparência de
propósitos e a estrita fidelidade aos valores cristãos inegociáveis, para o
retorno à fonte inesgotável da fé e, assim, beber de sua água com toda a
humildade. A luz da fé é a única que possibilita enxergar o invisível e tem em
si as propriedades para fazer de cada cristão uma força de amor nesta
configurada crise, abrindo o ciclo de contribuições que só o evangelho pode
oferecer, em diálogos construtivos, entendimentos na busca da verdade e da
fraternidade solidária.’
Fonte
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