"Cristo ensina os apóstolos", pintura do século IV,
conservada na catacumba de Domitila, em Roma.
*Artigo
de Mirticeli Dias de Medeiros,
jornalista
e mestre em História da Igreja, uma das poucas brasileiras
credenciadas
como vaticanista junto à Sala de Imprensa da Santa Sé
‘É
muito comum ouvirmos que a suposta ‘conversão
de Constantino’, que teria ocorrido anos após a batalha da Ponte Mílvia, em
312 d.C, ‘cristianizou’ o império. A impressão que nos dá é que houve a
conversão em massa de grande parte dos cidadãos romanos e uma completa adesão
ao monoteísmo em todos os territórios que compunham o império, motivada pela
sucessão de eventos extraordinários, cujo protagonista fora o Deus dos
cristãos.
Toda
essa narrativa triunfalista adotada por muitos escritores cristãos do período -
resgatada por muitos apologetas na atualidade - pouco condiz com o que
realmente aconteceu entre o governo de Constantino (306-337 d.C) e o de
Teodósio I (379-395 d.C). Um exemplo
disso é a famosa biografia Vita Costantini, de Eusébio de Cesareia, a primeira
obra que narra a suposta visão de Constantino, publicada, curiosamente, após a
morte do imperador augusto. Até 337, portanto, não havia nenhum registro ou
notícia do episódio In hoc signo vinces
- com (sob) este sinal vencerás. Se todo o exército de Constantino teria
testemunhado a tal aparição - segundo a narração e Eusébio - como é possível
que ninguém a tenha citado em 25 anos? Esse é a questionamento atual de muitos
historiadores que pesquisam sobre cristianismo tardo-antigo.
Portanto,
é importante salientar que a cristianização no império romano aconteceu
paulatinamente, e a nova doutrina, cuja propagação passou a acontecer não mais
pelo heroísmo dos mártires, mas graças à influência dos cristãos, então membros
da alta aristocracia romana : invejados, por muitos que, até Teodósio I, eram
legitimamente autorizados a manter suas crenças e, por conseguinte, a celebrar
seus respectivos cultos pagãos.
O
historiador irlandês Peter Brown, diz que, na verdade, se observa um
submonoteísmo nos 4 primeiros séculos, uma vez que o povo em geral, inclusive
muitos cristãos, ainda eram simpatizantes de práticas pagãs. O cristianismo
conseguiu atenuar a crise religiosa que assolava o império, mas não penetrou o
suficiente ao ponto de promover uma transformação radical, ao contrário do que
muitos pensam.
Brown
em seu livro Authority and the Sacred,
publicado em 1996, narra um episódio do ano 420 d.C, no qual o monge egípcio
Scenute de Atripe - venerado como santo pelos coptos ortodoxos -, se depara com
um governador de uma província romana que, aconselhado por um monge cristão, ‘atou ao pé direito a unha de um chacal’ :
uma prática nada cristã. Em resposta ao governador, o religioso não negou a
existência de um universo composto por seres superiores e inferiores, mas
simplesmente destacou a superioridade de Cristo sobre todas essas entidades.
‘Na
verdade, nessa fase, vemos o florescer de uma cultura coletiva partilhada por
cristãos e não cristãos. [...] Existia uma visão de mundo que se baseava em um
mundus dividido em compartimentos superiores e inferiores. Tendo em vista essa
rígida divisão entre um Deus Supremo e alguns poderes inferiores, não é de se
surpreender que muitas pessoas continuassem a buscar a proteção nesses ‘poderes
inferiores’ [...]. Os membros que dirigiam a congregação de Agostinho, em
Hipona, por exemplo, consideravam que os ritos celebrados por muitos anos
segundo os antigos libri pontificales (registros de rituais romanos), de certa
forma, teriam o favor de Deus : para eles, somente ‘magia oculta moderna’
deveria ser condenada, ressalta o historiador.’
Fonte
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