sexta-feira, 28 de setembro de 2018

Compreendendo o acordo entre China e Vaticano

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 Há uma estimativa de 12 milhões de católicos na China, divididos entre uma associação governamental cujo clero é escolhido pelo Partido Comunista e uma igreja não oficial que jura lealdade ao Vaticano.
Há uma estimativa de 12 milhões de católicos na China,
divididos entre uma associação governamental
cujo clero é escolhido pelo Partido Comunista e
uma igreja não oficial que jura lealdade ao Vaticano.

*Artigo de Mirticeli Dias de Medeiros,
jornalista e mestre em História da Igreja

O acordo sobre a nomeação dos bispos chineses firmado entre Santa Sé e a República Popular da China (RPC), no último dia 22, fez com que Papa Francisco, mais uma vez, fosse alvo de críticas. Consciente disso, ele mesmo esclareceu, em entrevista concedida durante o voo de retorno a Roma, após sua visita apostólica aos países bálticos, finalizada na terça-feira (25), o que essa medida representou e quais serão os critérios estabelecidos por ambas as partes para que ela seja levada a cabo. ‘Será um diálogo (entre China e Vaticano) sobre os eventuais candidatos. Tudo se fará no diálogo. Porém, a nomeação virá de Roma, a nomeação virá do papa. Isso é claro’, ressaltou o pontífice.

O papa argentino assumiu para si toda a responsabilidade do acordo, além de mencionar aqueles que o auxiliaram no processo : os arcebispos Claudio Maria Celli e Gianfranco Rota Graziosi, ambos envolvidos nas negociações há mais de 10 anos, e o cardeal Pietro Parolin, secretário de Estado do Vaticano.

Segundo o Wikileaks, esse acordo sobre a nomeação dos bispos vem sendo ensaiado desde o pontificado de João Paulo II. Há alguns anos, o jornal italiano Le Formiche publicou uma afirmação atribuída ao chanceler italiano Giulio Andreotti, nos anos 90 : ‘A questão da nomeação dos bispos se resolverá a qualquer momento. O problema dos chineses é o poder que envolve essas nomeações, mas isso o Vaticano fará o possível para contornar. É até melhor que haja um acordo, uma vez que é importante para a Igreja Católica encontrar seu espaço na China’, disse.

Em 2003, outro documento publicado pelo Wikileaks, intitulado ‘Holy See and PRC: time for reconciliation?’, revelou o que Rota Graziosi, então responsável pelas relações diplomáticas entre Santa Sé e China, considerava ideal para se chegar a um acordo definitivo : ‘A Igreja deve ser autônoma, mas não pode ser independente da Santa Sé. [...] É possível que essa igreja se autogoverne, mas deve aceitar as direções do papa, exceção concedida à China por causa da estrutura de controle governativo na revisão e na aprovação das ordenações e de outras decisões papais’, reforçou.

Vale salientar que o reconhecimento da Santa Sé em relação a alguns bispos e sacerdotes da igreja patriótica já vinha acontecendo antes dessa recente oficialização. Durante o pontificado de Bento XVI, inclusive, não foram poucos aqueles que entraram com pedido de reconciliação com Roma, algo que não só lhes foi concedido, mas confirmado através da carta ao povo chinês, escrita por Joseph Ratzinger, em 2007 : ‘O Papa, considerando a sinceridade dos seus sentimentos e a complexidade da situação, e levando em conta o parecer dos Bispos mais vizinhos, em virtude da própria responsabilidade de Pastor universal da Igreja, concedeu-lhes o pleno e legítimo exercício da jurisdição episcopal’, escreveu.

Houve um problema na interpretação desse acordo porque muitas pessoas que não acompanharam o desenrolar das tratativas acabaram considerando-o uma espécie de concordata. Basta que estudemos a fundo o que foram esses tratados pontifícios ao longo de toda a construção da rede diplomática vaticana para derrubarmos essa definição. Não dá para comparar o presente acordo à concordata de Napoleão, de 1801, nem mesmo com aquela estabelecida com o Império austro-húngaro, em 1855, por exemplo. Outros, fazendo referência à fase colonizadora de Espanha e Portugal, o enquadraram dentro da lógica do padroado como se, de repente, o Vaticano passasse a aceitar tudo aquilo que é ditado pela RPC. Não se trata disso nem de longe.

O que se deve levar em consideração é que o acordo sobre a nomeação dos bispos é algo bem pontual e ainda não representa o estabelecimento das relações diplomáticas entre Santa Sé e China, o que implicaria na abertura de uma nunciatura - embaixada vaticana - no país asiático e em uma série de outras medidas de caráter jurídico. Além disso, o acordo é bilateral, portanto, da mesma forma que o Vaticano ‘cede’ ao permitir uma mínima interferência do regime na nomeação dos membros do episcopado, Pequim também ‘cede’ ao conceder ao papa a autoridade na nomeação desses prelados. Algo que, se analisarmos bem, é previsto dentro de qualquer ação diplomática.’


Fonte :

quarta-feira, 26 de setembro de 2018

A liturgia dentro da história da salvação

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

Celebração da Santa Missa em Kaunas, na Lituânia 
Celebração da Santa Missa em Kaunas, na Lituânia

*Artigo dJackson Erpen,
jornalista


No nosso Espaço Memória Histórica – 50 anos do Concílio Vaticano II, vamos falar no programa de hoje sobre o tema ‘A liturgia dentro da História da salvação’.

A palavra liturgia tem sua origem no grego leitourgos, para denominar alguém que fazia serviço público ou liderava uma cerimônia sagrada. Mesmo já sendo usada na antiguidade, somente depois dos séculos VIII e IX passou a ser usada no contexto da Eucaristia na Igreja grega.

Por meio da liturgia, ‘exerce-se a obra da nossa redenção’ (Concílio Vaticano II, Sacrosanctum Concilium, 2). Assim como foi enviado pelo Pai, Cristo enviou os apóstolos para anunciarem a redenção e ‘realizarem a obra de salvação que proclamavam, mediante o sacrifício e os sacramentos, em torno dos quais toda a vida litúrgica gira’ (ibidem, 6).

A Igreja pode celebrar e adorar o mistério de Cristo presente na eucaristia precisamente porque o próprio Cristo se entregou antes a ela no sacrifício da cruz’ (Sacramentum Caritatis, 14). ‘A Igreja vive desta presença e tem a difusão desta presença no mundo inteiro como a sua razão de ser e de existir’ (Bento XVI, Discurso de 15 de abril de 2010 aos Bispos do Brasil, Regional Norte-2).

Esta é a maravilha da liturgia, que, como o catecismo recorda, é culto divino, anúncio do evangelho e caridade em ato (cf. CIC, 1070). É Deus mesmo quem age, e nós nos sentimos atraídos por esta sua ação, a fim de sermos, deste modo, transformados nele.

Inicialmente a liturgia era da responsabilidade dos apóstolos e bispos, mas é sabido que algumas Igrejas criaram a sua própria liturgia, como a Igreja da Alexandria no Egito e de Antioquia na Síria. Existem várias manifestações de liturgia, como a liturgia ambrosiana, liturgia de S. João Crisóstomo, liturgias orientais.

Até a metade do século XVI não havia uma regra geral e obrigatória para a liturgia. O Concílio Vaticano II representou uma renovação da liturgia, dando maior ênfase à Sagrada Escritura na liturgia da palavra, e permitindo o uso de línguas em vez do latim, de forma que o fiel pudessem melhor compreender e participar de forma mais ativa da celebração.

Na edição de hoje deste nosso espaço, padre Gerson Schmidt, que tem nos acompanhado neste percurso de exposição dos documentos conciliares, nos fala sobre a liturgia dentro da história da salvação :

A Constituição Sacrosantum Concilium não foi proclamada no Concílio sem ter em conta a caminhada percorrida pelos teólogos, liturgistas e papas, antes do Concilio Vaticano II, num verdadeiro movimento sério de Reforma da Liturgia. Os teólogos Odo Casel e Romano Guardini tiveram sua importância fundamental aqui nos conceitos do Mistério Pascal e do Corpo Místico. Também contribuiram Salvatore Marsili, Dom Lambert Beauduin, Maurice Festugière, Cipriano Vagaggini. O caminho percorrido pelos papas Pio X, Pio XI e Pio XII também deram mais um passo à frente. 

O teólogo pioneiro na reflexão da teologia litúrgica sem dúvida é Odo Casel. Casel explorando a doutrina dos mistérios, construiu a base sólida da teologia litúrgica, a partir da tradição e do argumento teológico. Para ele, ‘o mistério de Cristo é um conjunto orgânico e vivo que não pode ser fracionado; é o grande mistério da redenção, portanto, onde está presente o mistério central, como é o mistério da cruz, todos os demais mistérios da vida de Cristo estão presentes¹’.

Isso o leva a afirmar a presença sacramental do ato da morte e ressurreição de Cristo no ato litúrgico atual. Por isso, Casel ocupa uma posição hegemônica na teologia moderna. Salvatore Marsili, outro expoente, seguiu os passos de Odo Casel e continuou o seu pensamento, embora com as devidas diferenças. Ao redefinir teologia como teologia do mistério de Cristo e da história da salvação, naturalmente incluiu a liturgia como um eixo da teologia, pois a ‘liturgia é aquela realidade na qual a revelação divina se torna acontecimento de salvação em ato e se coloca como momento síntese de toda a história da salvação²’.

A Constituição Sacrosantum Concilium insere a liturgia no seu lugar legítimo que é dentro da história da salvação. ‘Dentro da história da salvação existe uma economia eclesial e litúrgica. Aqui, torna-se evidente que a liturgia é o elo que liga o tempo de Cristo e o tempo da Igreja. A ação litúrgica aparece claramente como um momento da revelação³’ .

A história da salvação é atualizada nos ritos e sinais sagrados. Se a história da salvação não fosse ritualmente celebrada se transformaria em mero fato do passado, seria apenas um ‘rito mitológico, alienante e incapaz de despertar em nós a esperança escatológica’.’

 ____________________________________

[1] J.J. Flores, Introdução à teologia litúrgica, Paulinas, 2006, p.197-198.

[2] Idem, p.247.

[3] Apontamento de Dom Geovane Luiz da Silva, bispo auxiliar de Belo Horizonte, enquanto ainda padre da Arquidiocese de Mariana. Subsídio entregue na Assembleia Regional do Clero, Região Episcopal da Conceição – Arquidiocese de Belo Horizonte, p. 07.


Fonte :

segunda-feira, 24 de setembro de 2018

Corta-me a alma cada vez que fecho uma igreja, lamenta Cardeal holandês

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 
Catedral de Utrecht na Holanda


O Arcebispo de Utrecht, Cardeal Wim Eijk, descreveu a grave crise que a Igreja na Holanda está vivendo e comentou que, ‘cada vez que tenho que assinar um decreto para fechar uma igreja, corta-me a alma’.

Em uma recente entrevista concedida ao jornal ‘Gelderlander’, o Cardeal assinalou que ‘gostaria que todas as igrejas estivessem abertas. Toda vez que eu tenho que assinar um decreto para fechar uma igreja, corta-me a alma’.

Além da falta de dinheiro devido à falta de fiéis, que são as razões pelas quais as igrejas são fechadas, outro problema grave é a idade avançada dos católicos na Holanda.

Segundo o ‘Nijmegen institute Kaski’, estima-se que dos 3,5 milhões de católicos no país, somente cerca de 170 mil católicos vão à Missa aos domingos, ou seja, menos de 5% dos fiéis participam deste preceito fundamental.

Atualmente, continuou, ‘as paróquias estão com números vermelhos’. Em uma reunião recente com os administradores das paróquias, mencionaram o tema econômico e perguntaram : ‘O que pode mantê-las abertas a longo prazo? O que devem fazer para que estes números sejam azuis?’.

Embora o dinheiro não seja fundamental, é necessário ‘para pagar os funcionários pastorais. Além disso, se não puder pagar as faturas, então a primeira e a segunda leitura serão lidas pelo administrador’, disse o Purpurado.

O Arcebispo indicou que em 2028 completará 75 anos, idade máxima para o governo pastoral das dioceses. ‘Há quatro anos, predisse em uma carta que para esta época já não haveria mais de vinte paróquias na Arquidiocese de Utrecht, cada uma terá uma ou duas igrejas. Houve muitas críticas. Agora os sacerdotes dizem que haverá menos ainda. ‘O Cardeal, foi otimista demais’, disseram-me’.

Perguntado se poderia ‘suavizar a doutrina’ para convocar mais fiéis, o Cardeal respondeu com ênfase : ‘Esquece! Isso não ajuda e é uma ilusão’.

Podemos ver que as paróquias que são claras na catequese e têm uma boa liturgia de acordo com os padrões da Igreja são especialmente as paróquias que são bem atendidas’, continuou.

O Arcebispo advertiu que não se pode propor uma ‘liturgia experimental’ ou outras coisas que se distanciem das boas práticas da evangelização, porque ‘a graça de Deus só brilha nos caminhos que Ele nos mostrou e não em outros caminhos’.

Não tenho uma receita para que as igrejas estejam cheias de novo amanhã, mas a receita para levar as pessoas a Cristo é a catequese explícita e clara. E para isso buscaremos voluntários bem formados para que estejam com os nossos sacerdotes’, destacou o Purpurado.

A entrevista com o Cardeal foi realizada no mesmo dia em que o jornal ‘NRC Handelsblad’ publicou um relatório que assinala que cerca da metade dos bispos da Holanda entre 1945 e 2010 teria alguma ligação com casos de abuso contra menores.

O relatório indica cerca de 20 mil menores foram abusados em instituições católicas no país em 45 anos. Foram 800 abusadores, entre clérigos, religiosos e leigos.

Este relatório foi apresentado depois que foram divulgados relatórios semelhantes na Alemanha e nos Estados Unidos; e em meio aos casos de abusos na Igreja denunciados no Chile, na Irlanda e na Austrália.

Em uma nota publicada no site da Conferência Episcopal da Holanda, assinalaram que ‘as informações já haviam sido publicadas em 2011, após as investigações iniciadas pela Igreja Católica. Muitos acusados ​​já faleceram. A partir desta investigação realizada em 2011, a Igreja holandesa lançou algumas medidas para prevenir e combater os abusos’.’


Fonte :

sexta-feira, 21 de setembro de 2018

O 'Grand finale' da reforma de Francisco

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)
  
Os eventos dos últimos dias sinalizam que a reforma de Papa Francisco caminha para a sua conclusão. 
*Artigo de Mirticeli Dias de Medeiros,
jornalista e mestre em História da Igreja


O papa Francisco tomou uma medida que já pode ser considerada um dos grandes marcos da sua reforma, iniciada em 2013. Uma mudança importante que, pelo menos no Brasil, passou despercebida. Esta semana, o pontífice criou uma constituição (Episcopalis communio) para o Sínodo dos bispos, órgão de caráter consultivo que auxilia o papa em questões específicas. Na prática, isso dá mais poder a essa instituição criada por Paulo VI, em 1965. Quando foi fundado, representou uma das respostas imediatas a um tema espinhoso e bastante debatido durante o Concílio Vaticano II : a colegialidade dos bispos.

Os especialistas, pautados pelas experiências dos pontificados anteriores, consideravam que a revolução curial proposta pelo papa argentino se limitaria à criação de órgãos ou à fusão de alguns deles. Porém, papa Francisco tem feito isso e muito mais. E é algo tão revolucionário quanto o que aconteceu à época de Paulo VI. A grande reforma da cúria romana de papa Montini, logo após o Concílio Vaticano II - a qual se refletiu em toda a igreja - começou efetivamente com a criação do Sínodo dos Bispos. Francisco, às portas de lançar uma nova constituição sobre a reforma da Cúria - algo previsto para o ano que vem -, fortalece ainda mais o sínodo. Tudo isso porque, a partir de agora, o documento de conclusão da assembleia, uma vez aprovado pelo papa, passará a fazer parte do magistério ordinário. Antes, os participantes do sínodo apresentavam ao papa uma série de propostas a respeito do que havia sido discutido durante a assembleia, as quais, após criteriosa avaliação, se transformavam posteriormente na chamada exortação apostólica pós-sinodal. Agora, essas mesmas proposições, já reunidas em um documento final, poderão ser publicadas imediatamente como material conclusivo do sínodo a partir do placet papal. A prática, agora prevista oficialmente pela nova constituição, começou a ser adotada pelo último Sínodo para as famílias, ocorrido em 2014.

Este ano, publicamos um artigo sobre a descentralização da igreja proposta pelo C9 - conselho de cardeais criado por papa Francisco - para que ‘as conferências episcopais sejam concebidas como órgãos com atribuições concretas, incluindo também uma autêntica autoridade doutrinal’. Unindo essa proposta à reestruturação do sínodo dos bispos, é provável que, mais cedo ou mais tarde, os ares da revolução também atinjam a congregação para os bispos. Há duas constatações que conduzem a essa possibilidade : a primeira é de que o episcopado vive uma das maiores crises de sua história por causa dos escândalos ligados à pedofilia em várias partes do mundo e também porque esse dicastério, cuja metade dos membros foram substituídos em 2013, ainda conta com a presença dos cardeais Donald William Wuerl (americano) e George Pell (australiano), ambos suspeitos de terem acobertado padres abusadores de menores em suas respectivas dioceses. Além disso, o cardeal Marc Ouellet é o responsável pelo órgão desde o pontificado de Bento XVI. Apesar de ele estar alinhado com algumas das aberturas de Francisco, como por exemplo o apoio a uma participação maior das mulheres na formação dos sacerdotes, talvez a crise force a sua substituição.

Papa Francisco canonizará Paulo VI e o bispo salvadorenho Oscár Romero no encerramento do sínodo dos bispos para os jovens, em outubro. Esses dois pastores são bastante admirados por Bergoglio por causa do estilo pastoral que adotaram, além de considerá-los figuras proféticas do seu tempo. Será que a diplomacia de Paulo VI unida à coragem de Romero impulsionarão o papa argentino a traçar o novo perfil do bispo católico? Quem será o bispo da reforma de Francisco? Aguardemos as próximas nomeações e, inevitavelmente, as remoções.


Fonte :

quarta-feira, 19 de setembro de 2018

À escuta dos Pais do deserto hoje

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 JVARI MONASTERY
*Artigo de Vanderlei de Lima, 
eremita na Diocese de Amparo


‘O livro de 160 páginas que agora apresentamos foi escrito por Dom Lucien Regnault, monge beneditino da Abadia de Saint-Pierre de Solesmes e especialista em Padres (= Pais) do Deserto.

É fruto de um programa de rádio que o autor apresentou, em 1984, de manhã, por um semestre, com o nome de ‘Abba, diga-me uma palavra’, em uma emissora do sul da França, lendo o ensinamento de um Padre do Deserto e comentando-o brevemente. Dessa série de programas nasceu esse livro que, traduzido para o português e publicado pelas Edições Subiaco, de Juiz de Fora (MG), já está na segunda edição.

Por ‘Padres do Deserto’ se entende, aqui, eremitas (monges sem comunidade) que viviam em regiões pouco habitadas e dividiam seu tempo entre a oração e o trabalho, no silêncio quase perpétuo. Este só era minimamente quebrado quando o monge tinha de tratar algo com alguém que o procurava para uma ‘direção espiritual’.

Isso é o que chama a atenção. Aqueles homens quase não falavam, mas ao dizerem algo, via de regra, em sentenças (=Apoftegmas) curtas, revelavam uma sabedoria ímpar. Mereceram, portanto, a partir do século IV, o título de Abba (Pai) ou Padres (sem serem sacerdotes) por sua paternidade espiritual, sabiamente, exercida.

Escolhemos uma passagem da obra para apresentar a fim de que cada leitor(a) tenha breve noção de sua riqueza temática que muito pode ajudar a cada homem e mulher do século XXI, sedento de boas fontes capazes de amenizar sua sede do Absoluto. Eis uma sentença comentada, na página 135, com o título Três coisas capitais. ‘Abba Poimén disse : Há três coisas capitais que são úteis: temer o Senhor, rezar sem cessar e fazer o bem ao próximo’ (Alph 734).

A esta afirmação Dom Regnault oferece o seguinte comentário : ‘É bom lembrar que os Pais quando falam de temor de Deus, não pretendem de modo algum excluir o amor. Não é o temor de um escravo, mas o temor de um filho que tem receio de desagradar ou aborrecer o Pai, seja no que for. É a base de todas as nossas relações com Deus’.

Rezar sem cessar não é um sonho nem uma quimera. Significa rezar tão frequentemente quanto possível, nas diversas situações em que nos encontramos. Quando estamos absorvidos por uma discussão de negócios, ou durante uma refeição de família, não é tão fácil rezar como na solidão de nosso quarto. A continuidade de nossa oração depende muito do primeiro pensamento do dia, ao sair da cama, e do último, quando estamos prestes a dormir. Pode-se também rezar mesmo dormindo, mesmo sonhando.

Os Pais, na solidão, não esquecem o próximo. Não estão egoisticamente voltados para si mesmos. No deserto, sem dúvida, tinham menos ocasiões de ajudar os outros; mas há mil maneiras de fazer o bem ao próximo pelo pensamento, pela palavra, pelos atos, e principalmente pela oração. A boa ação diária dos escoteiros não deve ser a única do dia, mas deve multiplicar-se na medida do nosso amor por nossos irmãos e irmãs.’

Esta página já dá uma ideia do valor espiritual e vivencial contido no livro de Dom Lucien Regnault, traduzido pelas monjas beneditinas do Mosteiro de Nossa Senhora das Graças, de Belo Horizonte (MG), e publicado pela Edições Subiaco. Vale, portanto, a pena lê-lo de forma orante e meditativa ou até usá-lo para preparar formações e homilias.’
  
(Mais informações : publicacoesmonasticas@yahoo.com.br)
  
Fonte :

terça-feira, 18 de setembro de 2018

Francisco sob o olhar de um teólogo protestante

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 Francisco se esforça na busca da unidade cristã, tendo as ações concretas como primazia. Na foto, o papa se encontra com o presidente da Federação Luterana Mundial.
*Artigo de Fabrício Veliq,
teólogo protestante


Ao longo da história do movimento de Reforma que se iniciou com as propostas de John Wycliff (1328-1384), passando por Jan Hus (1369-1415), e culminando com as 95 teses de Lutero pregadas no castelo de Wittenberg, na Alemanha, em 1547, a relação com a Igreja Católica e, consequentemente, com os diversos papas, foi sempre um ponto de disputa e contestação para o Protestantismo durante muitos séculos. Foi somente por volta do século XIX e XX que a necessidade de união foi fortemente percebida, fruto do processo de evangelização dos povos da África e Ásia. Afinal, como era possível pregar o amor de Cristo e sua proposta de comunhão, uma vez que entre os próprios cristãos havia diversas rixas e anátemas?

Diante desse novo cenário, a proposta de diálogo ecumênico começa a engatinhar dentro do movimento cristão, tendo, por sua vez, no Concílio Vaticano II, seu reconhecimento por parte do Catolicismo como movimento cujo autor era o próprio Espírito Santo.

Ainda que os embates ainda continuem e diversas questões de cunho doutrinal e litúrgico ainda tenham que ser conversadas e resolvidas, é inegável o grande avanço que houve, neste século, para a questão desse diálogo que tão bem faz ao Cristianismo.

É nessa esteira que podemos situar os esforços do papa Francisco de se pensar um Cristianismo que se volta não para meras questões doutrinais formais, mas para uma Igreja que se pensa em saída, que vai à direção dos marginalizados deste mundo, por ver neles, o rosto do Crucificado.

Com esse movimento liderado pelo papa Francisco e suas diversas iniciativas de estabelecimento de diálogo com as Igrejas Ortodoxas, bem como com algumas igrejas da Reforma (Luterana e Anglicana) é possível perceber seu esforço na busca da unidade cristã, tendo as ações concretas como primazia, ao invés das questões doutrinais, que muitas vezes serviem para segregação e exclusão.

Isso, contudo, não quer dizer que essas questões doutrinais não sejam postas. As velhas questões como Filioque junto aos Ortodoxos, ou a comunhão de mesa para com os Protestantes, ainda não foram resolvidas e, talvez, ainda leve algum tempo para isso. Todavia, nas atitudes de Francisco, essas questões não se colocam como empecilho para a busca da unidade, mas como questões secundárias que, em seu ambiente próprio, devem ser discutidas.

Nesse sentido, do ponto de vista de um teólogo protestante, Francisco tem buscado efetivar a proposta de Jesus Cristo, que é a de se importar com os pobres, os marginalizados e os excluídos; de ser contra as estruturas de morte que se revelam no capitalismo predatório e no neoliberalismo que visa o acúmulo de riqueza e o aumento da segregação entre ricos e pobres, com a criação de castas baseada em posses.

Em sua luta, contudo, tem sofrido resistência por parte dos poderosos dentro do próprio catolicismo e do movimento reacionário cristão que desejam manter seus privilégios, vendo na distribuição de renda e na igualdade entre todos uma ameaça, por, na maioria das vezes, considerarem-se mais dignos dos bens dessa terra do que outros.

Com tudo isso, Francisco se mostra como papa que propaga a mensagem de Jesus, de que a salvação vem pela graça de Deus a todos e todas que o buscam com coração sincero, gerando ao mesmo tempo uma esperança de uma nova criação de todas as coisas que, por sua vez, gera a luta contra as estruturas de morte tão abundantes na sociedade vigente, ou seja, gera uma igreja em saída, que leva as boas novas de que a morte não tem mais a última palavra, porque por meio do Ressuscitado a própria morte foi destruída.

Temos assim, um papa que protesta contra o sistema atual. E isso é muito bom.


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domingo, 16 de setembro de 2018

A interpretação caricaturada do cristianismo

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

A incredulidade de São Tomé, de Caravaggio.
A incredulidade de São Tomé, de Caravaggio.
 *Artigo de Mirticeli Dias de Medeiros,
jornalista e mestre em História da Igreja


Inúmeras vezes, a história foi instrumentalizada para fins políticos. Do ‘cristianismo positivo’ de Hitler, que chegou a exaltar o que ele considerava o nacionalismo germânico de Lutero para atrair os protestantes à sua nova ‘religião política’, à ideia de ascensão de ‘um novo império romano’, a proposta de Mussolini que respaldou sua estatolatria. De repente, as figuras e os eventos históricos ganham vida para sustentar batalhas do presente e acabam, em muitos casos, causando os mesmos estragos de outrora. É o que se chama na Itália de ‘uso público da história’, prática muito presente também no processo de institucionalização do cristianismo.

Carlos Magno, que desejava ser o novo Constantino, fez com que o papado, então enfraquecido, ficasse à mercê das ingerências de seus sucessores e, assim, recebesse novo impulso. A grande ‘gafe’ da coroação do primeiro imperador do Sacro Romano Império, no ano 800, foi a demonstração disso. Leão III, por uma série de razões que ainda hoje são debatidas fazendo uso das únicas três fontes medievais disponíveis - uma pontifícia, uma imperial e outra biográfica - se vê praticamente ‘obrigado’ a ungir o novo rei dos francos. Com a entronização de ‘um novo Constantino’ - o imperador responsável por transformar o cristianismo em uma religião lícita, no século IV - a garantia da sobrevivência do cristianismo na alta idade média era tida como certa. Carlos Magno, evocando figuras do passado, se transforma em rex sacerdos, título que, posteriormente, passaria a ser reivindicado pelo próprio papa na famosa luta das investiduras, três séculos depois.

E a ideia de ‘cristianismo perfeito’ atribuída à vivência primeiros cristãos? Como não falar sobre o conceito de ‘idade das trevas’ que desconsidera os feitos luminosos desse período? E as cruzadas, interpretadas tão somente como uma investida cristã contra o avanço dos muçulmanos, sem levar em consideração os interesses comerciais por trás das campanhas militares nas terras do Oriente? E o monge que, de maneira isolada, concebeu a teoria da terra plana e, ao ser descoberto séculos depois, impôs à Igreja os títulos de retrógrada e hostil à ciência que a marcariam para sempre? E tudo isso vem sendo reproduzido por pessoas sem o mínimo de senso crítico, que justificam o próprio viés ideológico a partir da reprodução ‘canonizada’ e ‘infalível’ de eventos e personagens ‘míticos’. Na atualidade, fazem isso com imperadores, ditadores, torturadores e até com papas.

O livro ‘A fábrica do falso : as estratégias da mentira na política contemporânea’, de Vladimiro Giacché, explica como uma história feita de silêncios e omissões e construída na geração mass media, contribuiu para mudar o curso dos acontecimentos. Se observarmos, tal constatação de Giacché se reflete amplamente nas redes sociais, hoje.

Em termos de catolicismo, não surpreende esse retorno a uma ‘tradição fabricada’ que se limita ao Concílio de Trento como forma de oposição e resistência ao papado atual. Como também não surpreende a divulgação de dezenas de encíclicas e documentos papais do século passado que, desmembrados do seu contexto, entram para acirrar os ânimos dentro do cenário eleitoral brasileiro.

Ora maquiada, ora caricaturada, a história do cristianismo cai nas mãos de figuras messiânicas na política e na Igreja que, sem recorrer às fontes históricas - por vezes, intencionalmente - a transformam em um cavalo de batalha dentro desse emaranhado jogo de interesses. Se um dia quiseram resgatar a história do cristianismo das mãos dos iluministas e, posteriormente, de dezenas de outros céticos, é hora de resgatá-la das interpretações marginais feitas tanto por católicos partidários quanto por aqueles que sequer conhecem a religião fundada por Jesus Cristo.


Fonte :

sexta-feira, 14 de setembro de 2018

Mártires da Argélia serão beatificados


Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

Os monges cistercienses mártires na Argélia
Os monges cistercienses mártires na Argélia
 *Artigo de Vatican News


8 de dezembro de 2018 é uma data que entrará para a história da Igreja argelina. O dia foi escolhido para celebrar na Basílica de Santa Cruz, em Oran, a beatificação de 19 mártires, religiosos e religiosas francesas assassinados na década de 1990, década sombria para a Argélia.

Os bispos argelinos falam em um comunicado de uma ‘grande alegria’ e de uma ‘boa notícia’. Deve-se dizer que o caminho foi longo, pois a Causa da Beatificação foi aberta em 2006 em Argel.

21 anos após o assassinato, seis religiosas e onze monges, incluindo os 7 cistercienses de Tibhirine, tiveram seu martírio reconhecido. Em janeiro passado o Santo Padre aprovou a promulgação dos decretos de beatificação. Beatificação que será presidida pelo cardeal Becciu, prefeito da Congregação para as Causas dos Santos,  enviado pessoal do Papa Francisco.
  
Década sombria para a Argélia 

Os monges de Tibhirine foram sequestrados em março de 1996 em seu mosteiro Nossa Senhora do Atlas, Argélia. Somente suas cabeças foram encontradas poucos meses mais tarde.

As seis religiosas, menos conhecidas do grande público, foram mortas nesta mesma década, em 1994 e 1995, em Argel.

Dom Pierre Claverie, Bispo de Oran, foi assassinado em 1º de agosto de 1996 com a explosão de uma bomba em frente ao bispado. Ele tinha 58 anos de idade. Um atentado que ocorreu logo após a visita à Argélia do ministro das Relações Exteriores da França, Hervé de Charette, que foi ao túmulo dos monges de Tibhirine.

Que o exemplo deles nos ajude em nossa vida de hoje’, foram os votos dos bispos da Argélia, assegurando que essa beatificação será, para a Igreja e o mundo, um apelo para  ‘construir juntos um mundo de paz e de fraternidade’. Um caminho para a Igreja da Argélia e todo o país, para virar esta página sombria da história.

Os novos Beatos

Esta beatificação diz respeito a um total de 19 pessoas consagradas, alguns deles bem conhecidos, como o irmão Christian de Chergé ou Dom Pierre Claverie. Os nomes dos outros religiosos e religiosas são menos familiares ao grande públicos.

Esses mártires que viveram a serviço do povo argelino serão homenageados em nome das milhares de vítimas, principalmente muçulmanas, da guerra civil dos anos 90.
Aqui a lista dos futuro Beatos, na ordem cronológica de seu assassinato :

08 de maio de 1994 em Argel : Irmão Henri Vergès, nascido em 15 julho de 1930 em Matemale, religioso marista e professor de francês e Irmã Paul-Hélène Saint-Raymond, nascida em 24 de janeiro de 1927 em Paris, religiosa francesa das Pequenas irmãs da Assunção.

23 de outubro de 1994 em Bab El Oued : Irmã Esther Paniagua Alonso, nascida em 07 de junho de 1949 em Izagre, freira espanhola das Irmãs Agostinianas Missionárias e Irmã Caridad AlvarezMartin, nascida 09 de maio de 1933, em Santa Cruz de la Salceda, freira espanhola das Irmãs Missionárias Agostinianas.

Em 27 de dezembro de 1994, em Tizi Ouzou : quatro Padres Brancos, incluindo três cidadãos franceses : padre Jean Chevillard, nascido 27 agosto de 1925 em Angers, padre  Alain Dieulangard, nascido em 21 de maio de 1919 em Saint-Brieuc, e o padre Christian Chessel, nascido em 27 de outubro de 1958 em Digne, e um belga, padre Charles Deckers, nascido em 26 de dezembro de 1924 na Antuérpia.

Em 03 de setembro de 1995, em Belouizdad : Irmã Angèle-Marie Littlejohn, nascida em 22 de novembro de 1933 em Túnis, religiosa francesa das Irmãs Missionárias de Nossa Senhora dos Apóstolos, e a Irmã Bibiane Leclercq, nascida em 08 de janeiro de 1930 em Gazeran, religiosa francesas das Irmãs Missionárias de Nossa Senhora dos Apóstolos.

10 de novembro de 1995 em Argel : Irmã Odette Prévost,  nascida em 17 de julho de 1932 em Oger, religiosa francesa das Pequenas Irmãs do Sagrado Coração.

Em 21 de maio de 1996, próximo a Medéia, sete monges de Tibhirine (dois outros irmãos escaparam do sequestro).

Irmão Christian de Chergé : nascido em 18 de janeiro de 1937 em Colmar, padre cisterciense francês, prior da comunidade desde 1984, monge desde 1969, na Argélia desde 1971.

Irmão Luc Dochier : nascido em 31 de janeiro de 1914 em Bourg-de-Péage, monge cisterciense francês desde 1941, na Argélia desde agosto de 1946. Médico, viveu cinquenta anos em Tibhirine.  Tratou todos de forma gratuita, sem distinção de religião.

Irmão Christophe Lebreton : nascido em 11 de outubro de 1950 em Blois, sacerdote cisterciense francês, monge desde 1974, na Argélia desde 1987.

Irmão Michel Fleury : nascido em 21 de maio de 1944 em Sainte-Anne-sur-Brivet, monge cisterciense francês desde 1981, na Argélia desde 1985. Membro do Instituto de Prado, era o cozinheiro da comunidade.

Irmão Bruno Lemarchand : nascido em 1º de março de 1930 em Saint-Maixent l'École, sacerdote cisterciense francês, monge desde 1981, na Argélia e no Marrocos desde 1989.

Irmão Célestin Ringeard : nascido em 27 de março de 1933 em Touvois, sacerdote cisterciense francês, monge desde 1983, na Argélia desde 1987.

Irmão Paul Favre-Miville : nascido em 17 de abril de 1939 em Vinzier, religioso cisterciense francês desde 1984, na Argélia desde 1989. Era responsável pelo sistema de irrigação do jardim do mosteiro.

1º de agosto de 1996 : Dom Pierre Claverie, nascido em 8 de maio de 1938 em Argel, padre dominicano, bispo de Oran desde 1981.


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