*Artigo
de Fabrício Veliq,
protestante,
é mestre e doutorando em
teologia
pela Faculdade Jesuíta de Belo Horizonte (FAJE),
doutorando
em teologia na Katholieke Universiteit Leuven - Bélgica,
formado
em matemática e graduando em filosofia pela UFMG
‘As misericórdias do Senhor se renovam todas as manhãs. É comum
aos cristãos tanto falar esse versículo quanto também ouvi-lo nos diversos
sermões que se escutam aos domingos, bem como nos diversos eventos que celebram
os rituais da vida, tais como o nascimento de uma criança ou o funeral de um
ente querido. O fato de saber isso se torna, então, motivo de conforto e
alegria para aqueles/as que creem.
Ainda que muito falada, muitas vezes não se reflete a respeito
do significado que essa expressão tem. O termo central é a misericórdia. Essa,
etimologicamente, é formada pela junção de duas palavras do latim, a
saber, miseratio (compaixão) + cordis (coração),
de tal forma que é possível entender misericórdia como significando um ‘coração compadecido’. Com isso em mente,
não é difícil entender que o fato das misericórdias do Senhor se renovarem
todos os dias tem a ver com sua bondade em olhar com compaixão em nossa
direção.
Para o Cristianismo, a partir da vida de Jesus, a misericórdia
do Senhor é entendida de uma maneira totalmente encarnada. Por meio da fé, a
compaixão do Pai para com seus filhos chega ao seu ponto máximo ao se revelar
como ser humano na pessoa do Cristo.
Dessa forma, a misericórdia não é vista somente como algo
externo e transcendente, como uma espécie de mágica que vem do céu para a
humanidade, mas é vista e experimentada na concretude da vida e na realidade do
mundo.
Por sua vez, entender a pessoa de Cristo como a manifestação da
misericórdia de Deus e, ao mesmo tempo se dizer seguidor/a desse Cristo,
implica em tratar a misericórdia também como algo que tem a ver com a
concretude da vida, ou seja, como algo que precisa ser demonstrado no dia a dia
para com todos/as que vivem nas diversas misérias do mundo.
A misericórdia, então, nas atitudes humanas, é uma virtude que
deve ser desenvolvida. Contudo, muito comumente, aquilo que se chama
misericórdia não tem a ver com o coração que se identifica e compadece, muito
mais com o coração que se acha melhor que os miseráveis e que, por isso, sente
que deve ajudá-los a sair da sua miséria. A ajuda e a atitude compassiva, nesse
sentido, são demonstrações das relações de poder daquele/a que se considera
superior na relação com outro. Com isso, essa ‘misericórdia’ não é virtuosa, antes, pseudomisericórdia e, por isso
mesmo, vício a ser combatido.
À luz das narrativas evangélicas, a misericórdia passa pela
identificação com o outro. Somente é possível ser compassivo com aquele/a com
o/a qual nos identificamos e com o/a qual nos colocamos no lugar. Dessa forma, a
misericórdia só é possível com empatia e somente pode ser virtuosa quando, ao
olhar a miséria alheia seja possível pensar : ‘Poderia ser eu esse que passa fome, que pede moeda na rua, que está
preso injustamente, que é vítima de violência etc’.
Com isso, a miséria do outro se coloca como aquela que nos
interpela e demanda de nós uma resposta, não somente teórica frente às
estruturas sociais, políticas e econômicas que causam as diversas misérias
nessa terra, mas também de ordem prática, que atenda efetivamente a necessidade
daquele/a que chega a nós com suas necessidades.
Compreender a categoria de misericórdia na perspectiva cristã
implica em comprometimento com as questões da sociedade e encarnação na
realidade do mundo. Essa misericórdia nunca deve ser vista como somente algo
transcendente, que nada tem a ver com a realidade e afastada das condições
miseráveis a que os poderosos dessa terra submetem humanos e natureza.
Misericórdia para com o outro nunca deve ser vista como uma
atitude passiva ou de comodismo. Ao contrário, como fruto de um coração
compadecido, demanda de nós uma atitude de luta em favor dos miseráveis, dos
desumanizados e da natureza, assumindo suas questões como nossas questões.
Fazer isso é trazer para os dias atuais a mensagem de que as
misericórdias do Senhor se renovam todas as manhãs e, por esse motivo, as lutas
por uma sociedade melhor e mais digna também se renovam com ela diariamente.’
Fonte :
* Artigo na íntegra https://domtotal.com/noticia/1211671/2017/11/misericordia-e-comprometimento-duas-faces-da-mesma-moeda/