quinta-feira, 30 de novembro de 2017

Misericórdia e comprometimento : duas faces da mesma moeda

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

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*Artigo de Fabrício Veliq,
protestante, é mestre e doutorando em
teologia pela Faculdade Jesuíta de Belo Horizonte (FAJE),
doutorando em teologia na Katholieke Universiteit Leuven - Bélgica,
formado em matemática e graduando em filosofia pela UFMG


‘As misericórdias do Senhor se renovam todas as manhãs. É comum aos cristãos tanto falar esse versículo quanto também ouvi-lo nos diversos sermões que se escutam aos domingos, bem como nos diversos eventos que celebram os rituais da vida, tais como o nascimento de uma criança ou o funeral de um ente querido. O fato de saber isso se torna, então, motivo de conforto e alegria para aqueles/as que creem.
Ainda que muito falada, muitas vezes não se reflete a respeito do significado que essa expressão tem. O termo central é a misericórdia. Essa, etimologicamente, é formada pela junção de duas palavras do latim, a saber, miseratio (compaixão) + cordis (coração), de tal forma que é possível entender misericórdia como significando um ‘coração compadecido’. Com isso em mente, não é difícil entender que o fato das misericórdias do Senhor se renovarem todos os dias tem a ver com sua bondade em olhar com compaixão em nossa direção.
Para o Cristianismo, a partir da vida de Jesus, a misericórdia do Senhor é entendida de uma maneira totalmente encarnada. Por meio da fé, a compaixão do Pai para com seus filhos chega ao seu ponto máximo ao se revelar como ser humano na pessoa do Cristo.
Dessa forma, a misericórdia não é vista somente como algo externo e transcendente, como uma espécie de mágica que vem do céu para a humanidade, mas é vista e experimentada na concretude da vida e na realidade do mundo.
Por sua vez, entender a pessoa de Cristo como a manifestação da misericórdia de Deus e, ao mesmo tempo se dizer seguidor/a desse Cristo, implica em tratar a misericórdia também como algo que tem a ver com a concretude da vida, ou seja, como algo que precisa ser demonstrado no dia a dia para com todos/as que vivem nas diversas misérias do mundo.
A misericórdia, então, nas atitudes humanas, é uma virtude que deve ser desenvolvida. Contudo, muito comumente, aquilo que se chama misericórdia não tem a ver com o coração que se identifica e compadece, muito mais com o coração que se acha melhor que os miseráveis e que, por isso, sente que deve ajudá-los a sair da sua miséria. A ajuda e a atitude compassiva, nesse sentido, são demonstrações das relações de poder daquele/a que se considera superior na relação com outro. Com isso, essa ‘misericórdia’ não é virtuosa, antes, pseudomisericórdia e, por isso mesmo, vício a ser combatido.
À luz das narrativas evangélicas, a misericórdia passa pela identificação com o outro. Somente é possível ser compassivo com aquele/a com o/a qual nos identificamos e com o/a qual nos colocamos no lugar. Dessa forma, a misericórdia só é possível com empatia e somente pode ser virtuosa quando, ao olhar a miséria alheia seja possível pensar : ‘Poderia ser eu esse que passa fome, que pede moeda na rua, que está preso injustamente, que é vítima de violência etc’.
Com isso, a miséria do outro se coloca como aquela que nos interpela e demanda de nós uma resposta, não somente teórica frente às estruturas sociais, políticas e econômicas que causam as diversas misérias nessa terra, mas também de ordem prática, que atenda efetivamente a necessidade daquele/a que chega a nós com suas necessidades.
Compreender a categoria de misericórdia na perspectiva cristã implica em comprometimento com as questões da sociedade e encarnação na realidade do mundo. Essa misericórdia nunca deve ser vista como somente algo transcendente, que nada tem a ver com a realidade e afastada das condições miseráveis a que os poderosos dessa terra submetem humanos e natureza.
Misericórdia para com o outro nunca deve ser vista como uma atitude passiva ou de comodismo. Ao contrário, como fruto de um coração compadecido, demanda de nós uma atitude de luta em favor dos miseráveis, dos desumanizados e da natureza, assumindo suas questões como nossas questões.
Fazer isso é trazer para os dias atuais a mensagem de que as misericórdias do Senhor se renovam todas as manhãs e, por esse motivo, as lutas por uma sociedade melhor e mais digna também se renovam com ela diariamente.’

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