*Artigo
de Evaldo D´Assumpção,
médico
e escritor
‘Depois de três dias chuvosos, a manhã permitiu que o sol
brilhasse preguiçoso, entre nuvens. Em minha caminhada matinal, alguém comentou
comigo : ‘Parece que hoje teremos um dia
normal’. Sua frase ficou martelando em minha cabeça : o que seria um
dia normal? Por acaso, a chuva, assim como o sol brilhante, não seriam coisas
normais em um dia? E a normalidade do dia, não seria o conjunto de fatos ‘normais’ a compô-lo?
A partir desse questionamento interior, comecei a percorrer um
tortuoso caminho de reflexões. A todo momento ouvimos alguém afirmar; ‘Fulano não é normal!’ Ou então : ‘Isso que está acontecendo não é normal!’
E me veio então a pergunta fundamental : e o que é normal? Que parâmetros
usamos para fazer tais avaliações tão sérias? Afinal, se digo que algo ou
alguém não é normal, estou afirmando que aquilo, ou ele, é anormal. Será justo
esse julgamento?
Resolvi procurar uma definição de normal, e entre tantas
encontrei estas : ‘Normal é um adjetivo
que qualifica algo como comum, regular e usual, significando que
não foge aos padrões ou a norma’; e : ‘Normal
vem de norma que significa regra. Na maioria dos casos, ser normal quer dizer
estar dentro da média’. E por aí vai. Contudo, chamou-me a atenção uma
coisa comum em quase todas as definições que encontrei : normal é seguir as
regras. E então surgiu outra dúvida : e que são as regras? Quem as define, se
considerarmos que somos uma multidão de indivíduos, miríades de crenças,
milhares de ideologias? Nessas situações, a estatística passa a ser o recurso
mais comumente utilizado : verifica-se o que é padrão na maior parte do grupo
em estudo, e o que ganhar torna-se a regra, e consequentemente o parâmetro para
se definir a normalidade. Com isso verificamos que não será possível
definir uma normalidade universal. Hábitos milenares no oriente, são absurdos
totais no ocidente. Como definir então quem é normal, eles ou nós? A saída será
dizer que eles são normais lá, não aqui. Com isso estabelecemos uma indesejável
postura agressiva, belicosa. Afinal, não aceitamos que nos considerem anormais,
se para nós os anormais são eles. Muitas guerras tiveram início, e desastrosos
fins, por essa razão.
Criei esta barafunda mental, propositadamente, para abordar a
situação hoje vivida no mundo inteiro : o conflito entre normais, chegando as
raias da agressão e até do ódio homicida. Cada pessoa se acredita normal e
pretende condenar o outro que tem aparência física, comportamento, etnia, ou
gostos e opções diferentes. A intolerância para com o diferente está atingindo
níveis assustadores em nosso tempo. Quanto mais civilizados nos acreditamos,
mais bestiais e ferozes nos tornamos.
Não vou me deter em nenhuma condição particular onde isso
acontece, mesmo porque a lista seria vasta, e portanto maçante. Por outro lado,
a simples menção à alguma condição de diferença já provocaria, nos dois lados,
uma forte animosidade, inclusive contra esse escriba. Afinal, por mais normal
que cada um se julgue, ele sempre será taxado de anormal por algum outro com
pensamentos diversos dos seus, o que certamente provocará reações
imprevisíveis.
Contudo, permito-me fazer algumas observações, sem a menor
intenção de atingir quem quer que seja. A primeira, é a importância de
suspendermos nossos julgamentos sempre que vier à nossa mente que aquilo, ou
aquele, é anormal. A normalidade é uma utopia, algo inalcançável. Uso uma
citação de Freud : ‘Um ego normal é como
a normalidade geral, uma ficção ideal’. Portanto, classificar alguém de
anormal é a suprema pretensão de se julgar normal. Afinal, eu me estarei usando
como padrão para julgar o outro. O que já será uma anormalidade
deplorável.
A segunda, é não se julgar no direito de ter comportamentos
bizarros, considerando não o conceito de normalidade, mas de habitualidade do
meio em que se vive, ou em que se encontra. Na grande maioria das vezes, esses
comportamentos são apenas uma manifestação de agressividade contra os outros,
estatisticamente considerados normais. Agindo em público, de modo escandaloso,
fora dos padrões majoritariamente seguidos por aquela comunidade, quase sempre
isso será feito de modo totalmente artificial, e portanto com o intuito
precípuo de provocar reações alheias. Imagine a saída de torcidas de um
estádio, e um torcedor do time A, vestindo seu uniforme e portando bandeiras ou
assemelhados do seu clube, ostensivamente entrando no meio da torcida do time
B, e ainda gritando loas ao time A. Será um comportamento bizarro, agressivo e
provocativo aos demais, o que certamente lhe trará consequências drásticas. Não
caberá aqui qualquer classificação de normal ou anormal, mas simplesmente de
uma tremenda e estúpida provocação. O pior é quando, para justificar tal
procedimento, as pessoas recorrem ao artigo 5º alínea XV da Constituição
brasileira, que fala do direito da livre locomoção, ou seja, o desgastado
direito de ir e vir, esquecendo-se de que todo direito é bilateral, e sempre
traz deveres consigo. Muitas das agressões, divergências, e até homicídios a
toda hora ocupando espaços da mídia, têm raiz nessa luta pela conquista do
direito de ser e agir como ‘normal’.
Normalidade que realmente não existe, como já vimos, e que só se justifica
recorrer a ela, quando se está respeitando o direito do outro, de também querer
ser ‘normal’.’
Fonte :
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