*Artigo de Dom Walmor Oliveira de Azevedo,
Arcebispo
Metropolitano de Belo Horizonte, MG
‘Viver a
solidariedade é indispensável para possibilitar que as práticas políticas recuperem
a sua inteireza. É necessária uma limpeza nos mais variados mecanismos de
funcionamento da política. E de forma urgente. A solidariedade, por ser um
valor capaz de requalificar, permite reconstruir o esgarçado tecido da
cidadania. Por isso, em todos os momentos, em diferentes sociedades, é
indispensável fazer referência, propor iniciativas e refletir sobre a
solidariedade. No coração da prática
solidária está o princípio fundamental e inegociável da consideração para com o
outro. O apóstolo Paulo faz essa recomendação, estabelecendo esse valor como
fundamento da identidade daquele que tem fé. Explica o apóstolo: exemplar é o
gesto de Deus ao oferecer à humanidade o que tem de mais precioso, seu filho
Jesus, o Salvador. Assim, Deus antecipa-se no gesto de reconciliação com o ser
humano, deixando a lição fundamental de que é preciso reconhecer a importância
do outro. Esse ‘outro’ é você, eu,
cada um de nós. Esse princípio tem força de equilíbrio, pois conduz a
civilização na direção humanística que permite superar crises.
Embora muitas
vezes se reconheça o valor da solidariedade, sabe-se que não é tão simples
plantar e fazer florescer essa convicção nos corações. Na política, por
exemplo, em vez de se investir nos gestos solidários, prevalece a crença de que
avanços diversos dependem de conchavos, ideologias partidárias ou simplesmente
das promessas nunca cumpridas. Contenta-se assim com ensaios de lucidez,
insuficientes para atender aos urgentes anseios do povo, principalmente de quem
é mais pobre. Falta, pois, na sociedade brasileira, um tecido solidário de
qualidade.
Quase sempre, o que se verifica no Brasil é um discurso de
autoelogio sobre certas práticas dedicadas aos outros. Em ‘alto e bom som’, há
os que proclamam que a cultura latina e a brasilidade têm na solidariedade um
valor inerente. Fazem referências desdenhosas a outras culturas marcadas pela
objetividade, interpretando essa característica como ‘frieza’. Mas, na prática,
isso serve apenas para aliviar as consciências de pessoas que não se doam ou se
contentam em fazer tímidas doações a projetos sociais.
Ora, isso é bem
diferente do que ensina o princípio apresentado pelo apóstolo Paulo -
considerar a importância do outro. O apóstolo adverte que a liberdade, quando
se torna pretexto para buscar o que satisfaz, mas não convém, provoca
desastres. Incapacita a competência humana e espiritual de amar ao outro como a
si mesmo. O resultado é nefasto, diz o apóstolo : ‘Se vos mordeis e vos devorais uns aos outros, cuidado para não serdes
consumidos uns pelos outros!’. Paulo indica o caminho a seguir : ‘Fazei-vos servos uns dos outros, pelo amor’.
Ao trilhar esse
percurso e reconhecer o valor da solidariedade, colabora-se com a construção de
uma cultura que contemple fortes sentidos de pertencimento, patriotismo e
apurada sensibilidade humana - que se desdobra em gestos e ofertas mais
generosas. Quem se faz servo apura a própria visão da realidade e consegue
ouvir os clamores de quem necessita de ajuda. Por isso mesmo, urgente e
prioritário neste momento em que a sociedade brasileira precisa sair da crise é
reconhecer que a solidariedade é determinante nas dinâmicas sociais. Isso não é uma simples reflexão teórica, mas
indicação de uma exigência moral com força transformadora, pois possibilita o
surgimento de atitudes que estão na contramão das violências que dizimam, das
corrupções que sucateiam e da perda da percepção de que todos são
destinatários, igualmente, de condições dignas.
A solidariedade é,
pois, princípio social e virtude moral. Vivenciá-la é investir na edificação de
um contexto novo e melhor. Sem esse princípio e virtude, não se conquistam os
ordenamentos sociais almejados. As relações pessoais continuarão comprometidas
e em processo crescente de deterioração. E um perverso ciclo é alimentado, pois
as pessoas tornam-se cada vez mais distantes das estruturas dedicadas à
solidariedade. Com isso, por ignorância, são perpetuadas regras e leis que são
inumanas e pesadas.
Para além de um
sentimento qualquer de compaixão vaga e superficial, a solidariedade tem o
valor de despertar e criar o gosto imperecível pelo bem comum. E todo cidadão
para ser eterno aprendiz do valor da solidariedade tem que praticá-la,
diariamente, permanentemente. Esse exercício exige considerar a importância do
outro, abrir os olhos e os ouvidos para nunca ser indiferente com as dores do
mundo, lutar para sair das zonas de conforto e deixar-se incomodar pelos
sofrimentos da humanidade. Uma postura que requer, inclusive, a disposição para
tirar do próprio bolso quantias a serem destinadas a projetos sociais e ações
solidárias. Pois, a sociedade estará na direção de superar seus descompassos e
a cidadania se qualificará quando prevalecer o inestimável valor da
solidariedade.’
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