sexta-feira, 14 de julho de 2017

Crer em tempo de modernidade líquida

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

Essa pintura de Caravaggio, entre tantas interpretações, apresenta uma das questões centrais do Barroco italiano: o questionamento do pensamento religioso.
*Artigo do Padre César Thiago do Carmo Alves,
da Congregação Religiosa dos Filhos de Maria Imaculada (Pavonianos)


‘A incredulidade de Tomé é uma das mais célebres obras do Barroco italiano. O Barroco italiano (do séc. XVII até os primeiros decênios do séc. XVIII) é configurado como a arte da Contrarreforma, uma vez que seu surgimento advém do resultado do encorajamento por parte da Igreja Católica à arte sacra como resposta à iconoclastia Protestante. Essa pintura foi feita por Michelangelo Merisi da Caravaggio (1571-1610), inspirando-se em Jo 20,24-29. Vale ressaltar que o texto bíblico não informa se Tomé colocou o dedo no lado de Jesus. A incredulidade de Tomé (óleo sobre tela, 107x 146 cm) se encontra atualmente no Novo Palácio de Potsdam (Alemanha). O quadro faz parte do inventário de Vincenzo Giustiniani, em 1638. No centro está um dedo que toca uma ferida aparentemente funda.  No eixo central da tela se encontra a cabeça do incrédulo Tomé e de outro homem, de identidade desconhecida. Junto aos dois está também outra personagem que seria provavelmente outro apóstolo. O trio dos observadores está à direita enquanto Jesus se encontra à esquerda. As tonalidades das cores marcam a distinção. São fortes na direita as tonalidades de vermelho. Já na esquerda se sobressai o branco. O rosto de Jesus está na sombra enquanto a iluminação repousa sobre o lençol com o qual está envolto o seu peito, a testa de Tomé e o homem que está acima dele. O movimento do quadro parece ser circular. Começa na ferida, sobe até o rosto de Jesus, continua rumo aos três discípulos, desce pelo braço e o dedo de Tomé, voltando assim à sua origem.

Essa pintura de Caravaggio, entre tantas interpretações, apresenta uma das questões centrais do Barroco italiano : o questionamento do pensamento religioso. A dúvida de Tomé representa, metaforicamente, a dúvida que pairava nas pessoas renascentistas. A junção antropocêntrica e teocêntrica baliza o pensamento na arte do período do Renascimento. Mas afinal, o que essa pintura tem a ver com o crer em tempo de modernidade líquida?

Em tempo de modernidade líquida, expressão cunhada pelo sociólogo polonês Zygmunt Bauman (1925-2017) para se referir ao tempo atual, a reflexão sobre Deus ocupa um determinado lugar no pensamento de pessoas crentes ou ateias. Ainda se busca colocar o dedo, como no caso de Tomé. Na procura da certeza de Deus o homem e a mulher da modernidade líquida quer sentir o lado da divindade para poder atestar que ela existe. Em tempo líquido, a divindade corre o risco de também ser fluida. Cria-se um deus conforme a nossa imagem e semelhança. Partindo daí se professa a fé nesse deus. No entanto, o que se comete nada mais é do que idolatria. Na fluidez do crer, deus pode ser nada mais que um fetiche.

Na modernidade líquida, a fé também entra na dinâmica da liquidez. O ato de crer pode até existir, mas com o perigo de ser desvinculado dos conteúdos explicitados por uma comunidade eclesial. De algum modo, o quadro de Caravaggio está muito em conexão com a profissão de fé hoje. O seu contexto se insere no questionamento das questões religiosas. O homem e a mulher do tempo moderno líquido, diante das ciências que se descortina cada vez mais trazendo respostas para tantas perguntas, como a dor e o sofrimento, põem, de certo modo em xeque esse aspecto religioso.

Em algumas questões as ciências ainda não deram conta, e o ser humano lança mão de Deus. A explicação do mal está nesse contexto, por exemplo. Ainda não se achou uma resposta satisfatória sobre esse problema. Não obstante os intelectuais, como Agostinho (354-430), bispo de Hipona, ter se debruçado sobre essa questão, as respostas relativas a essa problemática ainda permanece no campo do provisório. Talvez, o mal seja um verdadeiro problema teológico que coloca em xeque a crença de muitas pessoas, direta ou indiretamente. Com questões elementares, do tipo, se Deus existe, qual é o motivo de tanto sofrimento no mundo? Ou ainda, por que ele permitiu que inúmeros judeus, filhos da promessa, morressem de forma massiva nos campos de concentração da Alemanha nazista? Indubitavelmente, são perguntas pertinentes. Por mais que inúmeras repostas já foram dadas, seja pela teologia como pela filosofia, a questão ainda se mantém posta e em aberto. Isso denota a insatisfação delas.

No cenário latino-americano, diante de tantas injustiças e da pobreza, como acreditar num Deus que permite que os mais vulneráveis continuem a sofrer de forma escalonal? Contudo, desde de um ponto de vista teológico, pode-se dizer que Deus oferece sua reposta por meio da vida de cristãos e cristãs comprometidos com o seu reinado sobre essa terra, lutando por justiça. Diante desse Deus que se preocupa com os mais fragilizados, dando resposta na própria história, se torna possível professar a fé nele. Nesse sentido, o testemunho do crente constitui num elemento chave para dizer de Deus.

Por outro lado, vê-se muito a busca um tanto quanto desenfreada por Deus. Basta ligar a televisão e logo se encontra inúmeros canais com programações religiosas. Todas elas prometendo em nome de Deus, resolver a vida das pessoas, de modo particular em três campos : amor, saúde e financeiro. No mercado religioso, existem infinitas possibilidades para o crer. Contudo, tem que se perguntar qual é a imagem de Deus oferecida e se essa imagem escraviza ou liberta as pessoas.

Colocar o dedo em tempo de modernidade líquida ainda é um referencial para se acreditar. Se por um lado esse gesto pode revelar uma incerteza, por outro ajuda a evitar a cair numa idolatria, pois se verificará que o Crucificado é o Ressuscitado. Do ponto de vista cristão, ajuda a não cair no risco da esquizofrenia da fé. O movimento circular do quadro de Caravaggio, da ferida a ferida, traduz de alguma forma o itinerário que o homem e a mulher da modernidade líquida tentam percorrer em busca de Deus. Uns pelo campo tão-somente do emocional, outros pelo caminho da intelecção da fé, fazendo valer a máxima de Santo Anselmo de Cantuária (1033-1109) ‘fides quaerens intellectum’ (a fé que busca a intelecção).

Crer em tempo de modernidade líquida é um desafio que se descortina no horizonte de toda pessoa crente. ‘Põe o teu dedo aqui e vê minhas mãos! estende tua mão e põe no meu lado e não sejas incrédulo, mas crê!’ (Jo 20,27).’


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