domingo, 30 de julho de 2017

Autoimagem e autoestima

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

A autoimagem é voraz e se alimenta principalmente da nossa autoestima.
*Artigo de Evaldo D´Assumpção,
médico e escritor


‘Hoje fala-se muito em autoimagem e autoestima, contudo nem todas as pessoas tem uma noção mais aprofundada do significado dessas duas palavras, tampouco o quanto são importantes para a nossa qualidade de vida.

Imagem é a impressão que se tem de uma pessoa. Se for de si própria, é o que se chama de autoimagem, se for de outra, é a denominada heteroimagem. Quase sempre as duas são falsas ou incompletas, pois consequências que são das expectativas fantasiosas e dos pré-julgamentos que se costumam fazer e ou cobrar dos outros. Elas vão sendo implantadas e reforçadas ao longo da vida, pelos elogios ou pelas críticas que se ouve. Quando elogios, se moderados e sinceros, contribuem para o crescimento de quem os recebe; se hipócritas ou exagerados, estimulam-se neles a vaidade e a prepotência. Sendo críticas e excessivas, e direcionadas especialmente para crianças e adolescentes – quase sempre pelos pais e mestres – elas os tornam complexados, revoltados, inseguros e infelizes.

A autoimagem é voraz e se alimenta principalmente da nossa autoestima. Exemplo disso é o laboradicto, aquela pessoa que se diz ‘viciada’ em trabalho. Aquela que não gosta de férias, nem pretende se aposentar. Sacrifica sua família, sua saúde, seu bem-estar e sua paz interior, tudo para saciar uma autoimagem de eficiente, produtiva e trabalhadora, criada e ampliada sempre e mais, pela bajulação dos chefes e companheiros de trabalho, que se aproveitam disso para extrair dela mais resultados. Até que um esgotamento psíquico, um derrame, um infarto fulminante, a leve ou a inutilize para sempre.

 Já a autoestima é o legítimo gostar de si próprio. Nada tem a ver com egoísmo, pois o egoísta, o egocêntrico, é alguém que se detesta, e tanto, que está sempre querendo e tomando tudo para si. E faz isso na tentativa – quase sempre frustrada – de conquistar-se a si próprio. Contudo, quanto mais coisas e vantagens toma para si, mais prejudica aos outros, e interiormente se sente mais frustrado e infeliz, pois de alguma forma sabe que está causando danos a alguém. Pode-se dizer que ele vive num permanente círculo vicioso, tentando amar-se, mas aumentando, cada vez mais, sua auto rejeição, o abismo que o separa de si mesmo.

Gostar genuinamente de si próprio é respeitar-se, é aceitar seus próprios limites, é permitir-se ter momentos de lazer e de descanso.

Fazer do trabalho uma parte importante de sua vida, mas nunca a essencial. Ele o tem como meio e nunca como fim, pois seu objetivo maior é ser feliz. Como consequência do gostar de si próprio, gostar também dos outros. Não os inveja, mas os respeita e os aceita exatamente como são. Procura cumprir adequadamente as suas obrigações, mantendo sempre a sua palavra e seus compromissos, pois os assume conscientemente, sem prometer além de suas possibilidades. Está sempre pronto a ajudar a quem precisa, tanto quanto aceita a ajuda dos outros, quando dela necessita. Não se sente humilhado por isso, mas se identifica como parte de um todo, que é a humanidade : uns pelos outros e nunca ‘uns devorando os outros’. Quem tem autoestima é feliz e irradia felicidade em torno de si. Sua paz interior é evidente, gerando sempre a paz entre os que o cercam e contribuindo permanentemente para que todos se sintam bem em sua companhia.

Uma das vantagens da autoestima é possuir alto grau de resiliência, que é a capacidade para superar traumas e estresses. Na física, resiliência é definida como a propriedade de certos materiais para restabelecer a sua forma original, depois de submetidos a uma deformação. Bom exemplo disso é a mola de aço. Submetida a forte pressão, ela se achata e perde sua forma de origem. Cessando a pressão, ela imediatamente retoma ao que era. Na natureza também encontramos vários exemplos de resiliência. Um dos melhores exemplos é o pé de bambu, que açoitado pelo vento curva-se, mas não se quebra. Cessando a ventania, ele volta a sua posição original.

Outras árvores, imponentes e firmes, servem como bom exemplo da total falta de resiliência : quando sopra o vento forte elas se partem ao meio, pois em consequência de sua rigidez, não conseguem vergar. E morrem.

Da mesma maneira, uma pessoa com boa resiliência, ao sofrer uma perda significativa, se vê esmagada, mas não se abate. Com o tempo vai se recompondo até readquirir o equilíbrio anterior. Quanto maior a resiliência, mais rápida, melhor e completa será a sua recomposição. Já as pessoas rígidas, sem autoestima, presas em sua autoimagem de ‘durões’, de inflexíveis, diante de um revés se abatem e dificilmente se recuperam.

A resiliência é uma das principais consequências da autoestima. Consequentemente, trabalhar para se ter uma melhor autoestima é o caminho mais curto para a paz interior, a felicidade pessoal, uma melhor qualidade de vida.’


Fonte :


sexta-feira, 28 de julho de 2017

A História fecundada por Deus

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

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*Artigo do Padre Geovane Saraiva,
Pároco de Santo Afonso de Fortaleza, CE,
e vice-presidente da Previdência Sacerdotal


‘A Igreja está inserida neste imenso mundo, que é o campo de ação, onde se encontram plantados o trigo e o joio. Na verdade, ela nasce do anúncio do Evangelho, no abraço do projeto divino confiado a Jesus de Nazaré, que precisa, sem medo de errar, estar de acordo com a Parábola da Boa Semente. Sabemos que a Igreja é santa e pecadora, sempre estando necessitada de conversão, além de ser pobre, servidora, despojada e missionária. Segundo o Papa Francisco, ‘a nós cristãos, cabe o discernimento entre o bem e o mal, conjugando decisão e paciência. Nesse sentido, devemos evitar julgar quem está ou não no Reino de Deus, pois todos somos pecadores’. Fica claro o convite de se inserir na realidade das pessoas mais identificadas com os empobrecidos, sendo fermento de uma vida de irmãos, digna e fraterna, sinal definitivo do Reino de Deus.

Esse sinal chega a ser esperança de fecundar a história - esperança sendo a palavra de ordem -, protegendo-nos de todo mal e desânimo, que, de acordo com o apóstolo Paulo, ‘é para nós qual âncora da alma, segura e firme’ (cf. Hb 6, 19), que indica para a humanidade a consciência de filhos de Deus e irmãos uns dos outros, como protagonistas e destinatários do Reino, no sonho solidário de Deus Pai, antecipação da glória futura.

Esperança quer dizer não desanimar, pois o projeto do Reino de Deus deve ser um compromisso de todas as pessoas de boa vontade em semear a boa semente e fermentar o mundo pela mensagem do Evangelho. É necessário, mais do que nunca, perceber que os gestos de Jesus semeiam bondade e justiça, distantes da ilusão do espetáculo do mundo e do seu aparente triunfo. Nossa esperança no projeto do Reino, profundamente humano, que o Filho de Deus instaurou na Galileia foi introduzido no mundo por seu poder divino : o de transformar a história da humanidade.

Nosso bom Deus nos faz o convite de exercer a paciência, a tolerância e a misericórdia, sem nunca perder de vista a beleza e a preciosidade do seu Reino. Como exemplo, temos o Santo Padre totalmente envolvido com o cuidado do campo tão vasto, que é a casa comum todos, na busca de bons resultados, no sonho de um mundo restaurado e reconciliado com Deus : ‘Ensinai-nos a descobrir o valor de cada coisa, a contemplar com encanto, a reconhecer que estamos profundamente unidos com todas as criaturas no nosso caminho para a vossa luz infinita. Obrigado, porque estais conosco todos os dias. Sustentai-nos, por favor, na nossa luta por justiça, amor e paz’. Assim seja!’


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quarta-feira, 26 de julho de 2017

Deus : enigma ou mistério?

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

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*Artigo de Felipe Magalhães Francisco,
teólogo


‘Para muitos, Deus é um enigma : um problema a ser resolvido e esclarecido, desvendado. Mesmo que grande parte das religiões pensem Deus como mistério, muitas pessoas lidam com ele como se comportassem frente a um enigma. Para a mentalidade ocidental é difícil fugir disso : queremos esmiuçar, racionalmente, todas as coisas, destrinchando-as e dissecando-as para nutrir o entendimento intelectual. Com Deus, isso também se dá. Não raro, muitos teólogos tentaram colocar Deus dentro de uma caixinha enfeitada. Mas igualmente caixinha.

Comumente, a palavra mistério está associada à compreensão de enigma. Considera-se o misterioso como o que está oculto. O mistério, ao contrário, é aquilo que se revela. E, aqui, a ambiguidade da palavra revelação é de grande valia : é tirar o véu e, ao mesmo, re-velar, velar de novo. É próprio do mistério o mostrar-se e o esconder-se : é amplo, infinito, profundo. Inesgotável. É como se aproximar, sedento, junto a um manancial de água, saciar-se e perceber que a água permanece a jorrar, abundante.

Compreender Deus como mistério é compreendê-lo como um Ser que não se esgota, que transcende nossa imanência e nossa realidade vista de modo parcial, limitado e contingente. O mistério, antes de tudo, é para ser experimentado : ele é um convite ao mergulho, sempre ilimitado, no infinito que pode nos trazer sentido. A compreensão desse mistério, que ultrapassa a questão racional-intelectual, é a possibilidade de nos humanizarmos com sentido. Essa compreensão como experiência de sentido é o que podemos chamar de espiritualidade.

Essa compreensão de Deus como mistério nos abre à possibilidade de nos compreendermos a nós mesmos. Somos, igualmente, mistério : inesgotáveis, sempre na possibilidade e na iminência de nos conhecermos sempre mais, de modo cada vez mais profundo e transformador. Esse é, também, um caminho espiritual, pois mergulhando no profundo de nós mesmos, encontramos o mistério de Deus que em nós ecoa, e nos transformamos em pessoas mais humanizadas.

Às religiões, fica a interpelação a que sejam propiciadoras de experiências com esse mistério, e não as barreiras que impedem as pessoas de mergulharem em sua profundeza. Esse mistério, no entanto, permanece acessível para além das tradições religiosas, que não são detentoras do caminho, tampouco do acesso a ele. Em cada pessoa, uma abertura fundamental que clama por algo a mais, por uma profunda experiência de sentido e de elevação, que nos faz ser mais : mais para nós mesmos, mais para os outros, mais para o mundo. Ceder a esse mistério que nos interpela, que nos seduz, é ceder ao amor que nos arrebata de nós mesmos, que nos faz buscar viver de modo cada vez mais integral, despretensioso e gratuito. Que tenhamos coragem!’


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terça-feira, 25 de julho de 2017

Conheça a vida de São Cristóvão, padroeiro dos motoristas

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

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‘A devoção a São Cristóvão é uma das mais antigas e populares da Igreja, tanto do Oriente como do Ocidente. São centenas de igrejas dedicadas a ele em todos os países do mundo. Também não faltam irmandades, patronatos, conventos e instituições que tomaram o seu nome, para homenageá-lo. Ele consta da relação dos ‘quatorze santos auxiliadores’ invocados para interceder pelo povo nos momentos de aflições e dificuldades. Assim, o vigor desta veneração percorreu os tempos com igual intensidade e alcançou os nossos dias da mesma maneira.

Entretanto são poucos os dados precisos sobre sua vida. Só se tem conhecimento comprovado de que Cristóvão era um homem alto e musculoso, extremamente forte. Alguns escritos antigos o descrevem como portador de ‘uma força hercúlea’. Pregou na Lícia e foi martirizado, a mando do imperador Décio, no ano 250. Depois disso, as informações fazem parte da tradição oral cristã, propagada pela fé dos devotos ao longo dos tempos, e que a Igreja respeita.

Ela nos conta que seu nome era Réprobo e que nasceu na Palestina. Como um verdadeiro gigante Golias, não havia quem lhe fizesse frente em termos de força física. Assim, só podia ter a profissão que tinha : guerreiro. Aliás, era um guerreiro indomável e invencível. A sua simples presença era garantia de vitória para o exército do qual participasse.

Conta-se que, estando cansado de servir aos caprichos de um e outro rei, apenas porque fora contratado para lutar em seu favor, foi procurar o maior e mais poderoso de todos, para servir somente a este. Então, ele se decidiu colocar a serviço de satanás, pois não havia quem não se curvasse de medo ao ouvir seu nome.

Mas também se decepcionou. Notou que toda vez que seu chefe tinha de passar diante da cruz, mudava de caminho, evitando o encontro com o símbolo de Jesus. Abandonou o anjo do mal e passou, então, a procurar o Senhor. Um eremita o orientou a praticar a caridade para servir ao Todo Poderoso como desejava, então ele abandonou as armas imediatamente. Integrou-se a uma instituição de caridade e passou a ajudar os viajantes. De dia ou de noite, ficava às margens de um rio onde não havia pontes e onde várias pessoas se afogaram por causa da profundidade, transportando os viajantes de uma margem à outra.

Certo dia, fez o mesmo com um menino. Mas conforme atravessava o rio, a criança ia ficando mais pesada e só com muito custo e sofrimento ele conseguiu depositar com segurança o menino na outra margem. Então perguntou : ‘Como pode ser isso? Parece que carreguei o mundo nas costas’. O menino respondeu : ‘Não carregou o mundo, mas sim seu Criador’. Assim Jesus se revelou a ele e o convidou a ser seu apóstolo.

O gigante mudou seu nome para Cristóvão, que significa algo próximo de ‘carregador de Cristo’, e passou a peregrinar levando a palavra de Cristo. Foi à Síria, onde sua figura espetacular e nada normal chamava a atenção e atraía quem o ouvisse. Ele, então, falava do cristianismo e convertia mais e mais pessoas. Por esse seu apostolado foi denunciado ao imperador Décio, que o mandou prender. Mas não foi nada fácil, não por causa de sua força física, mas pelo poder de sua pregação.

Os primeiros quarenta soldados que tentaram prendê-lo converteram-se e por isso foram todos martirizados. Depois, quando já estava no cárcere, mandaram duas mulheres, Nicete e Aquilina, à sua cela para testar suas virtudes. Elas também abandonaram o pecado e batizaram-se, sendo igualmente mortas. Foi quando o tirano, muito irado, mandou que ele fosse submetido a suplícios e em seguida o matassem. Cristóvão foi, então, flagelado, golpeado com flechas, jogado no fogo e por fim decapitado.

São Cristóvão é popularmente conhecido como o protetor dos viajantes, assim como dos motoristas e dos condutores.’


Fonte :


sexta-feira, 21 de julho de 2017

As mãos de Deus

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

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*Artigo do Padre Fernando Domingues,
Missionário Comboniano


‘Procuramos acelerar o passo, mas acabamos por chegar ao Cenáculo de Jerusalém um par de minutos depois das seis da tarde. Já estava fechado.

No dia seguinte, de manhã, enquanto os do nosso grupo aproveitavam para fazer compras, antes do regresso, eu e um casal amigo decidimos voltar lá : não podíamos partir de Jerusalém sem passar no Cenáculo. Subimos ao primeiro andar, à sala grande; cada um de nós arranjou um canto onde se sentar a saborear aquele lugar extraordinário.

Na minha imaginação desfilaram velozes os acontecimentos que ali se tinham passado. Quem sabe quantas vezes Jesus se tinha encontrado ali com grupos de amigos. Foi ali a última Ceia, e o Pentecostes. Com as portas fechadas com medo dos Judeus, ali estavam naquele dia os onze apóstolos, Maria, a mãe, quase certamente a família amiga de Betânia – Maria, Marta, Lázaro – e outros. O Evangelho de João diz que Jesus «estava» no meio deles, e todos se encheram de alegria ao «ver» o Senhor. Jesus não precisou entrar porque estava já com eles. Sempre presente com os seus, depois da sua ressurreição. Nesse momento, Ele deu-lhes a possibilidade de o verem e de o ouvirem. Reconhecem-no olhando as suas mãos e o seu peito, não se fala do seu rosto! As mãos, na cultura dos Israelitas daquele tempo, significavam a capacidade de agir, a força, as obras de uma pessoa.

Ao fim daquele encontro Jesus sopra o seu Espírito Santo sobre eles. O verbo que São João usa para o «soprar» de Jesus é o mesmo que o livro do Gênesis usa para o «soprar» do Criador, quando pega no Adão de barro e lhe sopra nas narinas para ele começar a viver.

O sopro de Jesus ressuscitado é o mesmo sopro criador de Deus como as suas mãos são as mãos de Deus. Disse alguém que Jesus veio ao mundo para nos revelar as mãos de Deus : o que Deus gosta de fazer na vida das pessoas, o seu trabalho criador na natureza, o toque dos seus dedos que abre os ouvidos dos surdos e que faz ver aos cegos as maravilhas do nosso mundo, o toque da sua mão que faz que outras mãos se encontrem e se unam para caminhar juntos na vida. Podíamos entender quase todo o Evangelho seguindo os gestos das suas mãos. Mãos que, ao fim, aceitam ser trespassadas para dizer que o Amor de Deus não desiste diante das nossas maldades, mesmo as mais cruéis. Mãos que agora, ali no Cenáculo, dizem que o amor de quem se dá aos outros sem limites tem por diante uma vida que é eterna.

Não só conseguiram «ver» Jesus. Também o ouviram : «Como o Pai me enviou, agora eu vos envio...» É como se dissesse : o Pai confiou-me as Suas mãos; agora confio-vos as minhas, e sopro dentro de cada um de vós o meu Espírito Santo, para que as minhas mãos continuem a viver e a agir nas mãos de cada um de vós. Sereis capazes de oferecer o perdão de Deus, e todos os outros dons que recebestes de mim. Sou eu quem vos envia! E soprou.

E depois daquele sopro, as portas daquela sala abriram-se, os discípulos partiram, as mãos de Jesus nas mãos deles, e a viagem que ali começaram naquele dia continua ainda hoje pelos caminhos do mundo inteiro.

Saí daquele primeiro andar, à beira das muralhas antigas da cidade de Jerusalém, com o coração cheio de emoções. E algumas horas depois estava a caminho do aeroporto de Telaviv para a viagem de regresso à minha «Galileia».’


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quarta-feira, 19 de julho de 2017

China : Exército de terracota de Xian

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)
  
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‘Em 1974, um grupo de agricultores começou a escavar um poço à procura de água em Xian, no distrito de Lintong, da província de Shaanxi, a 1200 quilômetros de Pequim, na China. Depararam, então, com uma imensidão de esculturas de terracota que formavam um exército em coluna nas proximidades do mausoléu do primeiro imperador da China, Qin Shi Huang.

As escavações que se seguiram, e que ainda decorrem, desenterraram, até ao presente, 8.099 guerreiros, 670 cavalos, 130 carruagens e armas. As figuras formam filas em três trincheiras. Os soldados variam em altura de acordo com as suas funções, de 1,72 a 2 metros, sendo os generais os mais altos. Todos são retratados em poses naturais e portam armas correspondentes, como lanças, arcos ou espadas de bronze. As armas são reais. Acredita-se que tenham sido feitas antes de 228 a. C. e usadas na guerra. As carruagens são recriadas com grande precisão.

Outras esculturas de terracota não militares foram encontradas noutras valas e representam funcionários, acrobatas e músicos.


Às ordens do imperador

O imperador Qin Shi Huang (260 a. C.-210 a. C.) foi o unificador dos reinos chineses e iniciador da primeira dinastia imperial da China, no ano 221 antes de Cristo. Caracterizou-se por um reinado despótico e sobreviveu a três tentativas de homicídio.

No seu governo, mandou publicar um código penal severo, ordenou obras grandiosas, como o reforço de uma parte da Grande Muralha, a abertura de novas estradas, a construção de palácios e a criação de sistemas de irrigação, e unificou pesos, medidas e moedas (foi ele que mandou cunhar a famosa moedinha chinesa com um buraco no centro).

No ano 246 antes de Cristo, logo depois de chegar ao trono, com apenas 13 anos, Qin chamou artesãos de todos os reinos para construir o seu mausoléu e recriar os seus exércitos em figuras de terracota em tamanho real. Esta arte funerária era expressão na sua crença de que o protegeriam no seu túmulo quando falecesse e o defenderiam dos seus inimigos no Além. Pensa-se que trabalharam nesta obra setecentos mil operários e artesãos.

O mausoléu constava de uma pirâmide de terra com 47 metros de altura e 2180 metros quadrados de área. Este complexo serviu também como palácio e corte imperial. Estava dividido em vários ambientes, salas e estruturas de apoio, e cercado por uma muralha com diversos portões. Toda a obra ficou pronta antes da morte do imperador, em 210 a. C. No decorrer das cerimônias fúnebres, as figuras do exército de terracota foram enterradas nas proximidades do mausoléu, ocupando um imenso retângulo de 62 metros de largura por 230 de comprimento. Estão viradas para leste, de onde se presumia que surgissem os ataques.

Segundo o historiador Sima Qian (145 a. C.-86 a. C.), na obra Registos do Historiador, o imperador Qin foi enterrado em 210 a. C. com grandes tesouros e objectos artísticos, bem como com uma réplica do mundo, em que pedras preciosas representavam os astros, pérolas simbolizavam os planetas e lagos de mercúrio figuravam os mares.

Xian permanecerá, por mais de mil anos, como capital do império unificado e será a sede de onze dinastias chinesas. A cidade adquirirá importância estratégica por estar situada numa importante encruzilhada da Rota da Seda, entre o Sul da Ásia e a Europa e a África, que muitas caravanas percorrerão a partir do ano 200 a. C., e receberá gente de todas as direções.

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Os guerreiros de terracota

Os soldados de terracota permaneceram enterrados cerca de 2.200 anos. As escavações estão em curso, quarenta anos após a sua descoberta. É um trabalho delicado, devido à fragilidade natural do material e à sua difícil preservação. A terracota é argila cozida em fornos com temperatura relativamente baixa, em torno dos 900 ºC.

Os artesãos que esculpiram o exército de guerreiros de terracota de Xian, depois de cozer cada figura, cobriam-na com uma camada de resina, para aumentar a durabilidade. E coloriam-nas com tinta à base de minerais e fixadores, tais como sangue animal ou clara de ovo, para dar realismo às figuras, às suas roupas e equipamentos.

A disposição das três trincheiras revela intencionalidade. A trincheira maior, com mais de 6.000 figuras de soldados, cavalos e carruagens, representa a armada principal do imperador Qin. A segunda trincheira continha cerca de 1.400 soldados da cavalaria e infantaria, também com cavalos e carros de guerra, que retratavam a guarda militar. Na terceira figurava a unidade de comando, com oficiais de alto nível, oficiais intermediários e um carro de guerra puxado por quatro cavalos, ao todo 68 figuras.

Foi ainda encontrada uma quarta trincheira vazia.

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A arte que produziu este exército

As figuras de terracota não foram esculpidas como uma peça só, mas em partes, que foram unidas depois da cozedura. Eram, depois, colocadas no seu respectivo lugar, em formação militar, de acordo com a sua patente e posto.

O conjunto dos pormenores da obra revelam não só a qualidade dos artesãos, mas, sobretudo, o poder do imperador, que tinha autoridade para ordenar a construção de uma empreitada tão monumental. Cada soldado não só varia em peso, vestuário e armas, de acordo com a patente, mas o pormenor vai até ao penteado e à expressão facial individualizada : alguns sorriem, outros estão sisudos. Uns têm barba, outros bigode. Os cavalos parecem estar vivos e as suas bocas abertas sugerem relinchos.


Patrimônio da Humanidade

Os guerreiros de Xian são hoje um sítio arqueológico patrimônio mundial da Unesco desde 1987. São um ícone do passado distante da China. O seu primeiro imperador, Qin Shi Huang, mandou edificar um túmulo que entrou para a História, pois é tão importante quanto as Pirâmides de Gizé, no Egito, ou o Taj Mahal, na Índia.

Portugal acolhe pela segunda vez 150 réplicas em tamanho real das mais de oito mil figuras do exército de terracota de Xian (China). Depois de passarem pelo Porto, em 2015, estão em exposição na Cordoaria Nacional, em Lisboa, até setembro próximo.

Os guerreiros que podem ser vistos foram criados a partir dos originais, encontrados no mausoléu do primeiro imperador da China, que mandou formar aquele exército para o protegerem na tumba e dos inimigos do Além. Mais informações podem ser obtidas na página da exposição : www.guerreirosdexian.com.’

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terça-feira, 18 de julho de 2017

Religiosas socorrem migrantes em sua tragédia

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)



‘Os jovens italianos lideram uma missa dominical bem animada na Igreja Católica São Pio X, em Caltanisetta, cidade siciliana do sul, com a ajuda de um migrante africano que segue o ritmo brincalhão de um tambor.

Integrar os migrantes em uma vida normal é um dos objetivos do Projeto Migrante/Sicília, projeto da União Internacional dos Superiores Gerais. As freiras de diferentes congregações em todo o mundo atenderam o apelo urgente do Papa Francisco em 2015 para ajudar os migrantes a fugir dos conflitos e da pobreza.

Chamamo-nos de migrantes entre migrantes’, disse a irmã Janet Cashman, membro das Irmãs da Caridade de Leavenworth, no Kansas. Ela serviu como assistente de saúde nos EUA, no Peru e no Sudão do Sul antes de assumir esse último chamado com o Projeto Migrante/Sicília.

Religiosas estão dando ajuda prática e apoio emocional a dezenas de migrantes que chegam às margens da Sicília. A Organização Internacional das Migrações das Nações Unidas disse que, desde o dia 3 de julho, mais de 85 mil migrantes – dos mais de 100 mil que atravessavam o Mediterrâneo – desembarcaram na Itália este ano.

Quando você olha para o mar, você vê sua beleza, mas o que eu sei é que muitas pessoas estão perdidas lá’, disse a Irmã do Sagrado Coração, Maria Gaczol, ao Serviço Católico de Notícias (CNS). A ONU estima que mais de 2.200 pessoas morreram no mar nos primeiros seis meses deste ano. ‘É também um cemitério, um deserto’.

Antes dos africanos chegarem à Líbia na travessia para a Europa, muitos devem atravessar o deserto do Saara.

Não é um ou dois, mas quase todos falam sobre o inferno que passaram para vir aqui’, conta ao CNS a irmã congolesa Vicky Victoria, das Irmãs Missionárias de Nossa Senhora da África, sobre a perigosa jornada. ‘A maioria deles são traficados, tendo recebido promessas de um bom trabalho na Líbia ou ainda melhor na Europa’.

Mas o primeiro grande desafio é atravessar o Saara vivos. Muitos imigrantes disseram a Victoria que os motoristas que os levam na travessia do Níger só tiram proveito da situação. Muitas vezes dizem aos migrantes que sua caminhonete quebrou no meio do deserto.

Eles dizem : ‘Eu vou repará-lo e vou voltar para levá-los’. ‘Mas eles nunca voltam’, disse ela.

Se os imigrantes abandonados tiverem sorte, algum motorista de caminhão amável retornará para recolhê-los depois de deixar seus passageiros. Contudo, muitas vezes, os migrantes são ‘deixados para andar sem comida nem água’. ‘Eles simplesmente cavam na areia com as mãos e colocam os corpos mortos abaixo’, disse Victoria.

Muitos contam que o que mostra o caminho quando estão perdidos são os ossos, os esqueletos daqueles que morreram ao longo da travessia no deserto’, disse ela.

A tragédia continua : para as mulheres, alcançar a Líbia pode significar ser colocada à força na prostituição, enquanto outras são vendidas como escravas, alguns para trabalhar em fazendas sem nenhum tipo de experiência.

‘Algumas pessoas são muito qualificadas, como médicos, economistas, enfermeiras, professores. Eles são espancados como bestas. Suas costas são apenas cicatrizes’, disse Victoria. ‘Assim é a escravidão hoje, e ninguém fala sobre isso’.

Outros são sequestrados e forçados a telefonar para suas famílias, com seus captores exigindo resgate pelas suas vidas.

Tudo isso, antes de fazer a viagem mortal no Mediterrâneo, muitas vezes em navios não aptos para a navegação. Uma viagem que pode custar até 5.700 dólares.

Muitos já viram seus colegas afundarem em diferentes barcos. Alguns deles estão dentro do barco. Outros ficam sentados na beirada do barco e são engolidos pelo mar’, disse Victoria. ‘Alguns chegam, totalmente fora de si por causa do trauma que viveram’.

A Irmã indiana Veera Bara disse ao CNS : ‘Além de orar com eles, integramos cada um em nossas orações. Suas histórias de vida também resultam difíceis para nós quando as escutamos’.

Um migrante me telefonou dizendo : ‘Irmã, eu não consigo dormir mesmo que me dê um remédio forte. Todos os dias vejo minha família que foi morta vindo a mim como um trauma’, disse ela.

As religiosas oferecem apoio emocional, ensinam italiano e traduzem para os migrantes os processos legais com funcionários italianos e em hospitais. Elas também fornecem refeições e roupas quentes para aqueles que precisam, bem como conduzem aulas de catecismo e mantêm os grupos infantis.

Um dos migrantes ajudados pelas religiosas, Godfrey Wadelwasee, de 35 anos, compartilhou sua própria história da travessia.

O barco estava superlotado, com algumas pessoas desmaiando dentro. Muitas ondas fortes batiam. Eu via calças e bonés daqueles que morreram na superfície das águas. Nosso barco começou a afundar. Nós oramos. Logo, os socorristas vieram e nos apanharam’, disse o nigeriano.

Eu acreditava em Deus, sabia que não morreria. Quando chegamos à Sicília, eles escreveram nossos nomes. Eu encontrei-me em Caltanisetta’, disse Wadelwasee, que está alojado em um acampamento de centenas. Ele, como outros migrantes, espera obter papéis para a residência e o trabalho. Mas as freiras disseram que talvez apenas 10% dos migrantes serão aceitos. Itália ameaçou fechar suas portas, já que só este ano entraram no país 83 mil migrantes, e a Itália está recebendo pouca ajuda de outros países europeus. Mais de 2.000 migrantes já morreram este ano tentando atravessar o Mediterrâneo. ‘É uma tragédia e o mundo deve agir, se tivermos ainda um pouco de humanidade’, disse Victoria. ‘Pelo contrário, as leis foram apertadas e até mesmo os menores que deveriam ser protegidos, não estão sendo mais amparados’.

Enquanto isso, o migrante paquistanês Gishon Payan, de 23 anos, diz que não tem escolha senão tentar trabalhar na Europa para apoiar sua mãe viúva e oito irmãos. Ele tomou um empréstimo de mais de 10.000 dólares para fazer a viagem de dois meses de ônibus e caminhada para a Itália e, se ele não pagar o dinheiro, a vida de sua família está em perigo. ‘A vida está cheia de tensão. Sinto a pressão para obter meus papéis e reembolsar o empréstimo’, disse Payan ao CNS. ‘Não consigo dormir nem comer’.’


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domingo, 16 de julho de 2017

Vandalismo

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

O vandalismo não tem limites. É praga daninha que contamina tudo em redor.
 *Artigo de Evaldo D´Assumpção,
médico e escritor
  
‘Os Vândalos eram uma tribo de origem germânica, que durante o século V invadiu o Império Romano e instalou-se em Cartago, no norte da África. No ano 455 atacaram e saquearam Roma, ali destruindo importantíssimas obras de arte que se perderam para sempre. Inspirado nesse brutal acontecimento, surgiu o nome ‘vandalismo’ para definir as ações irracionais de depredação de bens públicos ou privados, pelo simples prazer de destruir. Esse termo foi usado pela primeira vez em 1794, pelo bispo Henri Grégoire da comuna francesa de Blois, às margens do rio Loire, para denunciar a destruição de monumentos, pinturas e livros durante a Revolução Francesa. E firmou-se na história pelo envolvimento do pintor Coubert (1871), liderando a destruição da Coluna Vendôme, em Paris, que considerava símbolo da detestada autoridade napoleônica. Foi possível reconstruí-la posteriormente, sendo hoje um dos marcos da capital francesa.

Séculos se passaram, a humanidade progride admiravelmente em alguns aspectos, mas frequentemente comporta-se como os Vândalos do século V. Na segunda guerra mundial, obras históricas de arte forma roubadas ou destruídas pelos nazistas de museus europeus. Já em pleno século XXI, assistiu-se a destruição das estátuas de Buda do século IV, pelos talibãs, em 2001, e a destruição da parte antiga de Palmira, cidade síria fundada no período Neolítico, e violentada em 2015 pelos bárbaros do Exército Islâmico.

Mas os novos vândalos continuam em atividade, também em território brasileiro. Basta caminhar pelas capitais e cidades do interior, para encontrarmos monumentos e construções históricas vandalizadas por grafiteiros, parcialmente destruídas por arruaceiros, tudo sob o olhar complacente de nossas autoridades que falam muito, mas agem pouco, e com tal brandura que cada ação destrutiva realizada impunimente se torna um incentivo aos novos bárbaros, que numa prática imbecil de emulação, suja mais, destrói mais, para superar os bandos rivais, em busca de sórdidas vanglórias.

Nem as propriedades privadas ficam livres desses depredadores. Carros são arranhados, suas peças externas são arrancadas, casas são mutiladas, lugar algum está a salvo desses bandidos. O mais deplorável é verificar que nem sempre se trata de gente ignorante, de baixo nível cultural ou econômico, sendo, com frequência identificadas como pessoas cujo estado social e cultural fazia supor que jamais fossem capazes de tais barbáries. Basta entrar em campus universitários para descobrir, em suas diversas instalações, a ação nefasta desses indivíduos. Banheiros imundos, instalações hidráulicas quebradas, paredes rabiscadas, equipamentos roubados, nos levando a questionar que profissionais estão sendo formados em nossas universidades.

Com os desmandos políticos que arrasam o país de ponta a ponta, surgem os mais do que justos movimentos populares de protesto, que reúnem milhares de pessoas nas ruas e praças denunciando, em alta voz, a corrupção instalada nos diferentes poderes da nação. Os que legitimamente participam desses movimentos, os conduzem com objetividade, seriedade e respeito aos direitos alheios. Contudo, a eles se misturam os vândalos, que na covardia que os caracteriza, escondem-se sob máscaras para ocultá-los com suas intenções malévolas.

Aproveitando-se das multidões, partem para as depredações, quebram vitrines, arrombam lojas, saqueiam-nas, tal e qual fizeram os Vândalos da história, nas ruas de Roma. Instrumentalizados e manipulados por grupos políticos que pouco se importam com a crise econômica e administrativa que assola o Brasil, tentam ampliar o caos e dele tirar proveito pessoal, roubando a varejo, enquanto seus mentores disfarçam seus roubos no atacado.

O vandalismo não tem limites. É praga daninha que contamina tudo em redor. Os estádios de futebol, lugar de diversão para a grande maioria dos brasileiros, hoje são campos de batalha onde só os temerários ou os apaixonados pelos seus clubes, se arriscam ir. Os bárbaros se infiltram entre eles, disfarçados em torcidas organizadas, e aproveitam as circunstâncias para extravasar sua imbecilidade sanguinária. O resultado se vê na mídia do dia seguinte, com os graves prejuízos para os clubes, torcedores gravemente feridos e até mortos, e como em todas as demais situações, muita revolta, muito pranto, mas nenhuma justiça, nenhuma punição exemplar. Afinal, vivemos hoje os tempos aziagos do ‘é proibido proibir’, da cômoda presunção da inocência de todos, dos defensores de porta de distrito, sempre ágeis em tirar proveito pecuniário do vandalismo que nada nem a ninguém respeita.

Tudo isso me faz lembrar do colégio Loyola, que me ensinou, e a meus colegas, respeito aos pais, aos professores, às outras pessoas, e à coisa pública, mas também o latim, com o protesto de Cícero contra Catilina, no senado romano (séc. I aC) : ‘Quousque tandem, Catilina, abutere patientia nostra?’ (Até quando, Catilina, abusarás da nossa paciência?).’


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sexta-feira, 14 de julho de 2017

Crer em tempo de modernidade líquida

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

Essa pintura de Caravaggio, entre tantas interpretações, apresenta uma das questões centrais do Barroco italiano: o questionamento do pensamento religioso.
*Artigo do Padre César Thiago do Carmo Alves,
da Congregação Religiosa dos Filhos de Maria Imaculada (Pavonianos)


‘A incredulidade de Tomé é uma das mais célebres obras do Barroco italiano. O Barroco italiano (do séc. XVII até os primeiros decênios do séc. XVIII) é configurado como a arte da Contrarreforma, uma vez que seu surgimento advém do resultado do encorajamento por parte da Igreja Católica à arte sacra como resposta à iconoclastia Protestante. Essa pintura foi feita por Michelangelo Merisi da Caravaggio (1571-1610), inspirando-se em Jo 20,24-29. Vale ressaltar que o texto bíblico não informa se Tomé colocou o dedo no lado de Jesus. A incredulidade de Tomé (óleo sobre tela, 107x 146 cm) se encontra atualmente no Novo Palácio de Potsdam (Alemanha). O quadro faz parte do inventário de Vincenzo Giustiniani, em 1638. No centro está um dedo que toca uma ferida aparentemente funda.  No eixo central da tela se encontra a cabeça do incrédulo Tomé e de outro homem, de identidade desconhecida. Junto aos dois está também outra personagem que seria provavelmente outro apóstolo. O trio dos observadores está à direita enquanto Jesus se encontra à esquerda. As tonalidades das cores marcam a distinção. São fortes na direita as tonalidades de vermelho. Já na esquerda se sobressai o branco. O rosto de Jesus está na sombra enquanto a iluminação repousa sobre o lençol com o qual está envolto o seu peito, a testa de Tomé e o homem que está acima dele. O movimento do quadro parece ser circular. Começa na ferida, sobe até o rosto de Jesus, continua rumo aos três discípulos, desce pelo braço e o dedo de Tomé, voltando assim à sua origem.

Essa pintura de Caravaggio, entre tantas interpretações, apresenta uma das questões centrais do Barroco italiano : o questionamento do pensamento religioso. A dúvida de Tomé representa, metaforicamente, a dúvida que pairava nas pessoas renascentistas. A junção antropocêntrica e teocêntrica baliza o pensamento na arte do período do Renascimento. Mas afinal, o que essa pintura tem a ver com o crer em tempo de modernidade líquida?

Em tempo de modernidade líquida, expressão cunhada pelo sociólogo polonês Zygmunt Bauman (1925-2017) para se referir ao tempo atual, a reflexão sobre Deus ocupa um determinado lugar no pensamento de pessoas crentes ou ateias. Ainda se busca colocar o dedo, como no caso de Tomé. Na procura da certeza de Deus o homem e a mulher da modernidade líquida quer sentir o lado da divindade para poder atestar que ela existe. Em tempo líquido, a divindade corre o risco de também ser fluida. Cria-se um deus conforme a nossa imagem e semelhança. Partindo daí se professa a fé nesse deus. No entanto, o que se comete nada mais é do que idolatria. Na fluidez do crer, deus pode ser nada mais que um fetiche.

Na modernidade líquida, a fé também entra na dinâmica da liquidez. O ato de crer pode até existir, mas com o perigo de ser desvinculado dos conteúdos explicitados por uma comunidade eclesial. De algum modo, o quadro de Caravaggio está muito em conexão com a profissão de fé hoje. O seu contexto se insere no questionamento das questões religiosas. O homem e a mulher do tempo moderno líquido, diante das ciências que se descortina cada vez mais trazendo respostas para tantas perguntas, como a dor e o sofrimento, põem, de certo modo em xeque esse aspecto religioso.

Em algumas questões as ciências ainda não deram conta, e o ser humano lança mão de Deus. A explicação do mal está nesse contexto, por exemplo. Ainda não se achou uma resposta satisfatória sobre esse problema. Não obstante os intelectuais, como Agostinho (354-430), bispo de Hipona, ter se debruçado sobre essa questão, as respostas relativas a essa problemática ainda permanece no campo do provisório. Talvez, o mal seja um verdadeiro problema teológico que coloca em xeque a crença de muitas pessoas, direta ou indiretamente. Com questões elementares, do tipo, se Deus existe, qual é o motivo de tanto sofrimento no mundo? Ou ainda, por que ele permitiu que inúmeros judeus, filhos da promessa, morressem de forma massiva nos campos de concentração da Alemanha nazista? Indubitavelmente, são perguntas pertinentes. Por mais que inúmeras repostas já foram dadas, seja pela teologia como pela filosofia, a questão ainda se mantém posta e em aberto. Isso denota a insatisfação delas.

No cenário latino-americano, diante de tantas injustiças e da pobreza, como acreditar num Deus que permite que os mais vulneráveis continuem a sofrer de forma escalonal? Contudo, desde de um ponto de vista teológico, pode-se dizer que Deus oferece sua reposta por meio da vida de cristãos e cristãs comprometidos com o seu reinado sobre essa terra, lutando por justiça. Diante desse Deus que se preocupa com os mais fragilizados, dando resposta na própria história, se torna possível professar a fé nele. Nesse sentido, o testemunho do crente constitui num elemento chave para dizer de Deus.

Por outro lado, vê-se muito a busca um tanto quanto desenfreada por Deus. Basta ligar a televisão e logo se encontra inúmeros canais com programações religiosas. Todas elas prometendo em nome de Deus, resolver a vida das pessoas, de modo particular em três campos : amor, saúde e financeiro. No mercado religioso, existem infinitas possibilidades para o crer. Contudo, tem que se perguntar qual é a imagem de Deus oferecida e se essa imagem escraviza ou liberta as pessoas.

Colocar o dedo em tempo de modernidade líquida ainda é um referencial para se acreditar. Se por um lado esse gesto pode revelar uma incerteza, por outro ajuda a evitar a cair numa idolatria, pois se verificará que o Crucificado é o Ressuscitado. Do ponto de vista cristão, ajuda a não cair no risco da esquizofrenia da fé. O movimento circular do quadro de Caravaggio, da ferida a ferida, traduz de alguma forma o itinerário que o homem e a mulher da modernidade líquida tentam percorrer em busca de Deus. Uns pelo campo tão-somente do emocional, outros pelo caminho da intelecção da fé, fazendo valer a máxima de Santo Anselmo de Cantuária (1033-1109) ‘fides quaerens intellectum’ (a fé que busca a intelecção).

Crer em tempo de modernidade líquida é um desafio que se descortina no horizonte de toda pessoa crente. ‘Põe o teu dedo aqui e vê minhas mãos! estende tua mão e põe no meu lado e não sejas incrédulo, mas crê!’ (Jo 20,27).’


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