segunda-feira, 6 de junho de 2016

Restauração

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 
*Artigo de Giuseppe Acconcia,
Jornalista


Cinco anos após as Primaveras Árabes, as desigualdades sociais e as principais causas que provocaram as revoltas de 2011 estão ainda presentes nos países norte-africanos.


‘Passaram cinco anos sobre as revoltas de 2011, as chamadas Primaveras Árabes, que arrastaram com diferente intensidade os países do Norte de África e do Médio Oriente. Mas, depois daqueles dias, as coisas não mudaram muito para as gerações de jovens que saíram à rua a pedir o fim dos métodos arbitrários da polícia, de regimes autoritários de longa duração e justiça social. Não só, narrativas por vezes opostas sobrepuseram-se para relatar os dias de mobilização, a razão do fim dos protestos, as várias sessões eleitorais e depois o novo clima de repressão política ou reforço dos poderes da polícia, que estes países estão a viver.

O Egito e a Praça Tahrir são talvez o símbolo mais consistente dos movimentos de contestação de 2011. Jovens, coptas, mulheres, migrantes, trabalhadores e vendedores ambulantes utilizaram o espaço público de um modo novo. Reivindicaram as suas pequenas conquistas em anos de resistência às políticas de libertação económica do ex-presidente, Hosni Mubarak, e pediram «o fim do regime» e «pão, liberdade e justiça social». Os movimentos sociais e as redes alternativas, construídas na rua, infelizmente não encontraram lugar nas reivindicações do islamismo político, que soube monopolizar o espaço do protesto e decidiu aceitar o desafio da participação eleitoral.

A Irmandade Muçulmana, se por um lado venceu largamente as várias sessões eleitorais entre 2011 e 2013, por outro iniciou políticas conservadoras, sobretudo no campo económico, difundindo a percepção de encarnar a oposição aos impulsos revolucionários, em acordo com a elite militar que empurrava para a restauração dos velhos regimes. A junta militar fez de tudo para apressar a necessidade do regresso à estabilidade : dos processos militares contra civis, às desaparições forçadas, até à provocação de episódios de sectarismo entre cristãos e muçulmanos. De fracasso em fracasso, a detenção do ex-presidente islamita, Mohamed Morsi, a 3 de Julho de 2013, o regresso dos militares em grande estilo arrefeceram os entusiasmos dos mais optimistas que esperavam que o Egito se tornasse um exemplo de democracia para o Médio Oriente.

O regime militar que governa o país, e marginalizou os islamitas moderados, produziu até agora leis antiprotesto, leis especiais e leis antiterrorismo que impuseram a mordaça aos movimentos e difundiram um clima de medo em nome da estabilidade. Esta estratégia favoreceu a ascensão do terrorismo islâmico no Sinai e algumas reivindicações radicais dos jihadistas, juntamente aos restantes dos velhos regimes, como aconteceu no Iraque, Síria e Líbia com a ascensão do intitulado Estado Islâmico. Não só, legitimou uma posição agressiva do regime egípcio nas principais fronteiras regionais, da Líbia à Síria, da Palestina ao Iemen.

Em segundo lugar, a Tunísia inspirou os protestos de rua. As imagens dos protestos na Avenue Bourguiba e os graffiti que enchiam a cidade de Tunes motivaram os jovens de muitos outros países a sair à rua. O sindicato, União Geral do Trabalho Tunisiano (UGTT) mostrou-se particularmente capaz de motivar os protestos. Os islamitas moderados tunisianos mostraram-se mais condescendentes com a Irmandade egípcia a incluir os movimentos de rua no processo difícil e complexo de redação da nova Constituição.

Mas os contragolpes do fracasso egípcio sentiram-se também no país magrebino. E assim os tunisianos tiveram de reduzir muito as suas expectativas, aceitando a ascensão de um homem do antigo regime à presidência da República, Beji Caid Essebsi. Por um lado, os islamitas tunisianos aceitaram reduzir as suas aspirações políticas, por outro, contribuíram para a redação de uma das Constituições mais inclusivas da história do país.

Mas, infelizmente, também neste caso os sindicatos obtiveram muito pouco para operários, trabalhadores e pobres tunisianos, e os homicídios políticos perfeitos – entre os quais o do sindicalista, Chokri Belaid – levaram de novo também à Tunísia um clima de tensão política, culminada nos atentados no Museu do Bardo em 2015. Leis antiterrorismo e leis especiais contribuíram para paralisar os movimentos de rua que todavia voltaram a fazer-se ouvir em Kasserine, cinco anos depois das revoltas de 2011.

Na Líbia, as manifestações de rua foram de longe as menos participadas comparativamente aos outros países do Norte de África. Não só, o fim do coronel Muammar Kadhafi não chegou apenas devido aos protestos, mas deu-se na sequência dos ataques da OTAN em Março de 2011, que, de fato, dilaceraram o país.

A partir daquele momento, a Líbia tornou-se terra de confronto de centenas de milícias armadas, a produção petrolífera diminuiu quatro vezes e os contrabandistas fizeram do negócio das migrações uma arma de chantagem para provocar o pedido de novos ataques.

Também a ascensão de Al-Sisi no Egito provocou um abalo político sem precedentes, com a tentativa do ex-general, Khalifa Haftar, de repetir as proezas do seu homólogo egípcio e de conquistar Trípoli. A partir daquele momento o país dividiu-se em três. Há dois governos : um em Tobruk, na Cirenaica, apoiado pelo Egito e pelos milicianos de Zintan; e outro em Trípoli, apoiado pelas milícias de Misurata e do Qatar. No deserto do Fezzan e em muitas zonas do país as etnias locais continuam a ser atores a incluir para a pacificação do país.

A tentativa das Nações Unidas de favorecer o diálogo entre as duas facções em luta pelo poder levou ao nascimento de um governo de unidade nacional. Entretanto, o contínuo aumento dos fluxos migratórios – sobretudo devido a decisões restritivas do Governo egípcio, que levou milhares de sírios e palestinos a deixar o país, depois de terem sido privados dos vistos de permanência – levou a União Europeia a aprovar a missão EuNavflor Med, que inclui a possibilidade de prender os contrabandistas.


A mobilização «social»

O maior resultado das revoltas deve ser encontrado nos movimentos laicos e de esquerda. Os pedidos de justiça social levaram ao nascimento de organizações não-governamentais, sindicatos independentes e partidos numa quantidade e com uma capacidade de mobilização que nunca antes se tinha visto nestes países.

Segundo alguns estudiosos, entre os quais Donatella Della Porta e Joel Beinin, as revoltas de 2011 foram «revoluções proletárias» mais do que os movimentos que em 1989 levaram ao fim dos regimes da Europa do Leste. A prova disso está nas mudanças que o Egito sofreu em momentos cruciais da sua história recente. O fim da presidência de Mubarak, a prisão de Morsi e o fim do governo interino de Ibrahim Mahleb coincidiram precisamente com um número sem precedentes de greves e protestos operários.

A elite militar mostrou-se a maior força anti-revolucionária em campo. Agiu sempre para defender os seus interesses economicos e limitar as reivindicações operárias em nome dos interesses dos proprietários das fábricas, que controlam há décadas. Esta alma social dos movimentos era profundamente preocupante para o regime de Al-Sisi.

Logo depois das revoltas de 2011 os primeiros a saberem-se organizar foram precisamente os sindicatos independentes. As exigências sociais da rua foram travadas com o recurso a um populismo pseudoneonasserista [o Nasserismo é uma ideologia política de carácter nacionalista e pan-arabista baseada nos pensamentos do antigo militar e presidente egípcio Gamal Abdel Nasser, que esteve no poder entre 1954 e 1970, ndr]. Esta foi a estratégia que o Exército egípcio escolheu para prevalecer sobre a popularidade do islamismo político que tinha ganhado o desafio das urnas. O objetivo era neutralizar o potencial revolucionário dos movimentos de esquerda, operários e das oposições e de anular a mobilização de rua.


O processo contra-revolucionário

Passados cinco anos, pareceria que a contra-revolução venceu. Mas os processos revolucionários são longos e complexos e devem ser julgados no tempo. Certamente, as desigualdades sociais e as principais causas que provocaram as revoltas de 2011 estão ainda presentes nos referidos países mesmo nesta fase de nova repressão de qualquer movimento de protesto. Isto faz esperar na possibilidade de que as coisas no tempo mudem e as reivindicações de rua voltem a estar no centro da agenda política e a levar a uma mais concreta distribuição da riqueza, a maiores direitos e liberdades individuais e também a uma abertura democrática. Se isto acontecer, contam muito as dinâmicas geopolíticas.

Os Estados Unidos viram com muito entusiasmo os movimentos de rua de 2011 depois do discurso do presidente Barack Obama na Universidade do Cairo, em 2009. E todavia nunca defenderam efetivamente os resultados eleitorais, por exemplo, no Cairo, ameaçando, isso sim, o corte nas ajudas financeiras depois do golpe de 2013, embora sem nunca o pôr em prática de maneira incisiva.

A Rússia de Vladimir Putin decidiu, pelo contrário, apoiar o regresso do autoritarismo ao Egito com a ascensão de Abdel Fattah al-Sisi, na Líbia com as tentativas de tomada do poder de Khalifa Haftar e ainda mais na Síria com o apoio concedido a Bashar al-Assad. A isto tem de se acrescentar as relações transnacionais entre ativistas do Norte de África e do Médio Oriente, os protestos dos Occupy e outros movimentos sociais europeus que combateram a crise da representação democrática e as desigualdades na Europa.

As revoltas de 2011 talvez não fossem necessariamente inspiradas pela necessidade de democracia nos países onde rebentaram, mas pelas reivindicações do fim dos regimes securitários e injustos. Com o tempo acabaram por encarnar um processo irreprimível que está a redesenhar as fronteiras geográficas e políticas de toda a região com repercussões significativas também do outro lado do Mediterrâneo.’


Fonte :
* Artigo na íntegra


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