segunda-feira, 20 de junho de 2016

Naturalização da miséria

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)


‘O Papa Francisco voltou a ser ‘a voz dos últimos’ nesta semana quando chamou a atenção para o paradoxo da existência de obstáculos, sejam econômicos, sejam políticos nas ajudas para lutar contra a fome, enquanto as armas circulam livremente. A ocasião para esta dura crítica do Pontífice foi a sua primeira visita à sede em Roma do Programa Mundial Alimentar, PMA, organismo das Nações Unidas que se encarrega de distribuir ajudas alimentares.

No seu denso discurso diante dos representantes dos Estados que fazem parte do Conselho Executivo do PMA, Francisco fez notar um fenômeno estranho e paradoxal : ‘enquanto as ajudas e os planos de desenvolvimento se veem obstaculizados por intrincadas e incompreensíveis decisões políticas, por tendenciosas visões ideológicas ou por insuperáveis barreiras alfandegárias, as armas não; não importa a sua origem, circulam com uma liberdade jactanciosa e quase absoluta em muitas partes do mundo. E assim nutrem-se as guerras, não as pessoas. Em alguns casos, usa-se a própria fome como arma de guerra’.

As vítimas se multiplicam – observou o Pontífice – porque ao número de pessoas que morrem de fome e desnutrição se acrescenta a de combatentes que morrem no campo de batalha e de muitos civis que caem nos conflitos e nos atentados. Estamos plenamente conscientes disso, porém deixamos que a nossa consciência se anestesie.

E assim, as populações mais fracas não somente sofrem os conflitos bélicos mas também, por sua vez, sofrem com a falta de ajudas, que são bloqueadas. É urgente, - disse Francisco -, desburocratizar tudo aquilo que impede que os planos de ajuda humanitária cumpram seus objetivos. Nesta desburocratização da fome o Papa citou o papel fundamental do PMA.

Em outra parte do discurso o olhar de Francisco tocou a excessiva informação de hoje. Sim, ‘o excesso de informação de que dispomos gera gradualmente a habituação à miséria; ou seja, pouco a pouco tornamo-nos imunes às tragédias dos outros, considerando-as como qualquer coisa de ‘natural’; em nós gera-se a ‘naturalização’ da miséria’. E uma dura constatação de Francisco : ‘são tantas as imagens que nos invadem onde vemos o sofrimento, mas não o tocamos; ouvimos o pranto, mas não o consolamos; vemos a sede, mas não a saciamos. Assim, muitas vidas entram a fazer parte de uma notícia que, em pouco tempo, acabará substituída por outra. E, enquanto mudam as notícias, o sofrimento, a fome e a sede não mudam, permanecem’.

O Santo Padre voltou a levantar a sua voz para deixar claro que a falta de alimentos ‘não é algo natural, não é um dado óbvio nem evidente’. E destacou que em pleno século XXI, onde muitas pessoas sofrem deste flagelo, tudo se deve a uma egoísta e má distribuição dos recursos, a uma ‘mercantilização’ dos alimentos.

Francisco lamentou como o acesso aos alimentos se ‘transformou em privilégio de uns poucos’ e que o consumismo nos induziu a nos a acostumarmos ao supérfluo e ao desperdício cotidiano de comida. O Santo Padre não perdeu a oportunidade para recordar que o alimento que se desperdiça é como se fosse roubado da mesa do pobre, ‘de quem tem fome’ e exortou a identificar caminhos e modos que, afrontando seriamente tal problemática, sejam veículos de solidariedade e de partilha para com os mais necessitados.

Dirigindo a sua atenção ao PMA Francisco fez um apelo para que os Estados membros incrementem decisivamente sua real vontade de cooperar com essa finalidade para que o PMA, não somente possa responder às urgências, mas também possa realizar projetos sólidos e consistentes.

Aos funcionários do PMA, um pensamento ‘que brotou do coração’. Falando de improviso animou-os a seguirem avante. A não se deixarem vencer pelo cansaço, e a não permitam que a dificuldades os desencorajem. ‘Necessitamos sonhar e necessitamos de sonhadores’, disse Francisco.

Fiel à sua missão, a Igreja Católica quer trabalhar com todas as iniciativas que visam a salvaguarda da dignidade das pessoas. Para se tornar realidade esta prioridade urgente da ‘fome zero’, o Papa assegurou todo o apoio e sustentação.

Fazemos nossas as palavras do Observador da Santa Sé junto à agência humanitária das Nações Unidas, Mons. Fernando Chica Arellano, que através da Rádio Vaticano fez um convite, para que seja lido todo o discurso do Santo Padre, porque se trata de um texto verdadeiramente programático que ajuda todos. O Papa disse que não podemos considerar a fome um problema a mais, não podemos habituar-nos com o fato de existir famintos no mundo. Ou seja, os famintos devem realmente mexer com a nossa consciência e será a única maneira de realmente se fazer alguma coisa, não confiar somente nas palavras, mas começar a agir. ‘A fome deve pertencer aos museus, isto é, ao passado.’.’


Fonte :
* Artigo na íntegra


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