*Artigo
de Andrea Semplici
Etiópia : A Pequena Meca sufi
O pequeno túmulo do Xeique Hussein é
o coração do santuário que acolhe milhares de peregrinos e o convertem na
pequena Meca sufi.
‘Xeique Hussein, o
santuário branco. Imaculado de cal. Brilha sob o sol na savana dos grandes
planaltos do Oriente etíope. Esta é terra de fronteira entre Arsi e Bale,
regiões muçulmanas. A qubba, a cúpula, pintada de novo para as grandes festas,
é deslumbrante. Lugar santo do Islão etíope. Lugar dos sufis da África. É a
Pequena Meca. «Para muitos muçulmanos da
Etiópia, Xeique Hussein é a peregrinação – explica Teshome Berhanu Kemal,
estudioso do Islão da África Oriental. Estão convictos de cumprir a obrigação
da viagem a Meca, indo rezar junto do túmulo deste grande homem sábio. Durante
séculos Meca esteve distante, demasiado distante da Etiópia e os fiéis não
podiam ir até lá. Havia guerras nesta terra. E então vinha-se venerar o túmulo
de Xeique Hussein.»
No fundo, também
Maomé esteve aqui : veio visitar o seu discípulo, este xeique lendário que
estava a pregar a nova religião em África, por volta do ano 1000. Conta-se que
o Profeta veio da península arábica percorrendo um longo túnel subterrâneo. O
Xeique Hussein e Maomé rezaram juntos numa gruta eremítica. «É preciso acreditar nisso – diz ainda
Teshome. O Islão é uma fé de sonhos como o Cristianismo. As lendas são mais
reais do que a realidade.»
Xeique Hussein é
uma povoação distante e dispersa. Horas num todo-o-terreno pelas estradas
principais da Etiópia. Não há um único automóvel. Quatro mil habitantes e um
motociclo. Duas vezes por semana, nos dias de mercado, uma camioneta da
carreira parte de madrugada para Jarra, a pequena cidade mais próxima. Não há eletricidade,
só uma casa tem um gerador (e uma parabólica colossal). Cozinha-se com a lenha
das acácias. Não há água corrente. As mulheres vão com os bidões amarelos às
costas à cova da água santa no recinto do santuário do xeique. É preciso tirar
o calçado para chegar ao charco conhecido como Dinkiro e depois remover uma
camada de algas para poder beber e encher os bidões. A água de Xeique Hussein
como a de zamzam de Meca.
Dia de Mawled.
Aniversário de Maomé. É um dos três nos quais, todos os anos, uma multidão de
peregrinos viaja até Xeique Hussein. Três vezes por ano os fiéis reúnem-se
entre as antigas colunas da mesquita de Zuqxum. A mais antiga da povoação. Ao
ler antigas crônicas, vê-se que o seu nome significa ‘Lugar dos estudantes’. Esta povoação alberga escolas alcorânicas,
sabedorias rurais do mundo sufi. Muitos peregrinos empunham um bastão estranho
e delgado, bifurcado e inútil. Tem a forma dos chifres de um bode. É conhecido
como oulle xeique hussein, sinal e símbolo dos homens obcecados pelo culto do
xeique, prova da sua grande fé.
De manhã, pequenos
grupos de homens chegam dos campos. Trazem grandes cestos e recipientes de
madeira. As mulheres não podem entrar na mesquita. Sentam-se em círculo. Ao
lado uns dos outros, costas com costas. Os mais velhos cantam, entoam
lengalengas de transe, recitam, balanceiam. É o dhikz, oração mística. É grande
teatro religioso. Retiram-se as tampas dos cestos e dos frasco s: estão cheios
de sopa de cevada com manteiga clarificada. Metemos as mãos lá dentro, passamos
os alimentos de boca em boca.
Saímos da penumbra
da mesquita. Detemo-nos ao ar livre. À sombra de um grande sicómoro. Árvore
espiritual. Árvore do agradecimento pelos dons de Deus. Os velhos lêem suras,
canta-se, reza-se, erguem-se as mãos para o céu, contam-se histórias do xeique.
Há homens vestidos com roupas festivas e maltrapilhos com calças rotas.
Queima-se incenso. Chegam, alegres, os rapazes das escolas alcorânicas. Têm
folhetos escritos em árabe e um megafone. Recitam, gritam os louvores do Xeique
Hussein. É quase uma competição. Um velho convida ao aplauso. Recolhe-se e
distribui-se dinheiro. Chegam contentores cheios de mel. É festa tranquila,
abençoada, feliz.
Surpreendente
Islão da Etiópia. Lendo o recenseamento de 2007, os muçulmanos são pelo menos
25 milhões, 34 por cento da população. Dados falsos, segundo algumas
autoridades islâmicas : ‘Somos pelo menos
metade da população’, protestam. São muçulmanos os somalis, os afares, os
argobbas, os hararis, grande parte dos oromos. Certamente sub-representados no
Governo. Mas o Islão já escalou as altitudes do planalto etíope, terra cristã.
O homem mais rico da Etiópia, Mohammed Hussein al-Amoudi (não só : é o quinto
homem mais rico do mundo árabe, entre os vinte homens mais poderosos da África,
o homem de pele negra com mais dinheiro, o 64.º entre os multimilionários da
Terra), é muçulmano, o seu pai era saudita e a sua mãe etíope, tem o título de
xeique e mandou construir uma mesquita ao lado do seu Sheraton de Adis-Abeba.
Vi muçulmanos e
cristãos rezar juntos nos mesmos lugares. Vi muçulmanos deslocar-se a igrejas
cristãs e peregrinos cristãos ir aos santuários islâmicos. O Islão da Etiópia é
uma fé de convivência. Mas é preciso ter atenção e preocupação pelos riscos, os
rumores, os falsos sinais : da península arábica chegam dinheiro e pregadores
de um Islão conservador. Nascem mesquitas wahabitas. Que mal suportam as
heresias dos sufis de Xeique Hussein e, em tempos recentes, procuraram impedir
com as armas a peregrinação ao santuário. Há dois anos, o Governo etíope
prendeu líderes islâmicos que considerava radicais e proibiu as ONG islâmicas.
Como parecem distantes estas tensões, enquanto mergulho os meus dedos no mel.
O Xeique Hussein,
porventura, viveu há mil anos. Talvez tenha vindo da península arábica como
pregador. Ou, segundo outras crônicas, nasceu nestas terras e, depois dos
estudos religiosos, voltou para a Etiópia para dar a conhecer a nova fé. O seu
túmulo está no coração do santuário, protegido por uma grande cúpula. A arquitetura
destas construções está modelada pela passagem de milhões de homens e mulheres :
mãos e pés poliram a pedra e deram lustro às colunas. É preciso contorcer-se
para entrar no túmulo. Os fiéis giram à volta da grande pedra, roçam o corpo
nas colunas, caminham às escuras, ajoelham no chão. Todos passam a mão por
entre os ladrilhos do pavimento. Esta terra é sagrada, é jawara, é argila. Roça
o corpo do xeique. Os fiéis lambem a palma empoeirada da mão, sabor ácido na
boca. Depois esfregam a cara: sinais húmidos e escuros na testa, no nariz, nas
bochechas. Como numa Quarta-Feira das Cinzas. Cumpriram o rito da purificação.
Terra queimada que
se torna cinza, água benta, árvores espirituais. O Islão do Xeique Hussein,
filho da conversão das populações oromos, é sincrético. Não esquece a Natureza,
os lugares secretos, as grutas, os antigos espíritos, as divindades dos
bosques, das montanhas, das solidões. Se este santuário é a réplica de Meca, a
cidade santa de Lalibela, planalto da Etiópia, é Jerusalém Negra, a Jerusalém da
África. Aqui, como em Xeique Hussein, milhões de peregrinos chegam caminhando,
roçam as pedras, rezam com as mãos erguidas para o céu e a cabeça no chão. Os
cristãos como os muçulmanos bebem água santa, descansam e rezam debaixo de
árvores espirituais, esfregam o rosto e a testa com cinzas, lambem e comem
terra santa. Islão e Cristianismo encontram o seu caminho comum na ritualidade
dos gestos, dos movimentos, na matéria.
À noite, durante
horas sem fim, nos dias santos, em Xeique Hussein e em Lalibela, soam,
obsessivos, os tambores. A oração torna-se sonolência. As mãos não se cansam. A
voz é um ritmo que conduz ao sonho e abre as portas dos céus. Entre as
basílicas de pedra dos cristãos como na cal branca dos santuários muçulmanos.’
Fonte :
* Artigo na íntegra
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