*Artigo
de Paulo Vasconcelos Jacobina
‘Lembro-me,
ainda em tenra idade, sentado na mesa da cozinha a fazer as tarefas de casa da
escola enquanto a minha mãe lavava os pratos. Sempre que me acometia aquela
preguiça, aquela dispersão própria dos estudantes, eu me queixava com a minha
mãe : ‘estou com a cabeça cheia, não
quero mais estudar! Não tem mais espaço no meu cérebro!’ E ela, muito sábia
na sua simplicidade, respondia : ‘estude,
menino! Conhecimento não ocupa espaço!’
Esta
é uma lembrança que resgato, às vezes, quando penso em minha própria mente como
um ‘disco rígido’ de computador, que
ela não é. De fato, jamais ouvi falar de um disco rígido com, digamos, dramas
existenciais, tendências suicidas, ou mesmo com angústias religiosas. O mundo
da informática jamais nos dará um único Kierkegaard.
... No
texto anterior a este, eu mencionava a minha conversa com alguns colegas ‘materialistas’ e ‘espiritualistas’ no meu trabalho, e como a nossa falta de noção
sobre dois conceitos básicos do pensamento aristotélico (matéria e forma) torna
difícil e confuso falar sobre noções como alma, espírito, ser vivo, ser humano
e pessoa. E como a conversa tinha sido abruptamente interrompida pelos colegas
com a observação : ‘você complica demais
as coisas!’. Ora, não se trata de complicar, mas de respeitar aquele sábio
conselho aristotélico que constitui a primeira frase do pequeno (e magnífico)
livro de Tomás de Aquino chamado ‘O Ente
e a Essência’ : ‘um erro
insignificante ao início pode tornar-se grande ao final’; e por isto é
sempre necessário voltar ao início, aos princípios, quando se fala de grandes
erros de pensamento. Sim, porque a forma com que encaramos nosso próprio corpo
e nosso próprio ser faz toda a diferença com relação à forma com que vivemos.
Então
vamos simplificar; ou melhor, vamos aprofundar. Tratamos ali da noção de forma
e matéria, como elementos que formam os seres corporais, e como a unidade
essencial dos seres corporais é às vezes confundida com simplicidade. Os seres
corporais são sempre unos, indivisíveis como seres, mas nunca são simples; há,
em todo ser corporal, uma composição intrínseca de forma e matéria que leva à
sua identidade : é assim que da mesma matéria(por exemplo, a porcelana) posso
fazer coisas de diferentes formas (por exemplo, um prato ou um vaso sanitário),
e, se por um lado é a sua matéria que torna estas coisas distintas entre si, é
a sua forma que tornará inteligíveis para mim as diferenças entre essas coisas.
Vimos, também, que a forma dos seres vivos, aquela forma capaz de dar a uma
porção de matéria a sua capacidade de ser a causa dos próprios movimentos
(capacidade que chamamos de vida) faz com que tais formas sejam chamadas de alma.
A mesma matéria, portanto, que um dia esteve diluída no mar, ou mesmo espalhada
como poeira ou lama num campo, pode hoje compor um corpo vivo, sob uma forma
animada. (anima nada mais é que a palavra latina para ‘alma’). Não há nada de esotérico aí, nada que não possa ser
perfeitamente constatado empiricamente.
Há,
porém, nessas formas animadas, diversos graus de animação. Não estou falando,
aqui, de biologia, mas de observação livre da natureza, aquela que faz um
menino curioso num dia de sol. exemplo, há coisas animadas que são capazes
apenas de nutrir-se, crescer e reproduzir-se. Deste tipo de ser dizemos que
apenas vegeta, ou que possui apenas as funções vegetativas. Há um uso
contemporâneo deste termo quando nos referimos, por exemplo, a alguém num
estado de coma profundo como uma pessoa em estado vegetativo.
Este
mesmo menino observaria, no entanto, outros seres que caminham, voam ou
rastejam em torno de si, que ciscam, observam, assustam-se e fogem à sua
aproximação. Ele nota que esses mesmos seres animados desempenham funções mais
elaboradas do que a das plantas que ele contemplou anteriormente. Além de fazer
as mesmas coisas que as plantas fazem, eles são capazes ainda de perceber o
estímulo ambiental, interpretá-lo e mover-se na direção do estímulo, conforme o
estímulo lhes seja agradável, ou para longe dele, conforme lhes seja repulsivo.
Sua forma, sua alma, portanto, concede-lhes uma aguçada capacidade sensorial
aos estímulos que são apresentados aos sentidos, e concede mesmo uma capacidade
de unificar estes estímulos e reagir em conformidade com esta imagem que seus
sentidos lhe fornecem, estimando ademais qual a reação adequada a cada
estímulo, e mesmo guardar memória deles; isto acontece, por exemplo, quando seu
cachorrinho, em casa, busca sua companhia, mas foge de estranhos. A este ser,
capaz de agir assim, dizemos que tem uma alma sensitiva.
Este
menino, no entanto, se ainda não estiver contaminado por nenhuma dessas ‘filosofias’ monistas ou panteístas que
discutimos no texto anterior, poderá contemplar-se e descobrir que ele é o
único ser ali capaz de elaborar todos estes raciocínios, todas estas
classificações, de perguntar-se mesmo pela estrutura da realidade que se está
apresentando a ele. Ele é capaz de perguntar não somente o que é esta realidade
que ele está conhecendo, mas, principalmente de perguntar quem é ele mesmo,
quem é o autor de tantas perguntas que assomam em sua mente. Como dizia um
querido amigo mineirinho que tenho, ele é o único ser ali que pode perguntar : ‘quemcossô, poncovô, donqueuvim e oncotô’
(se não entender estas palavras, procure um amigo de Minas Gerais para
explicar).
Este
exato ato de contemplar-se, de refletir, tem necessariamente que ser destituído
de materialidade. Todos nós sabemos, das nossas aulas básicas de ciência, que
dois corpos materiais não podem ocupar o mesmo lugar no espaço. É por isso que
um ser corporal com olhos jamais é capaz de olhar dentro dos próprios olhos : a
matéria não pode curvar-se sobre si mesma de modo a interpenetrar-se. Para
olhar os próprios olhos, um ser corporal precisa sempre de um outro objeto
material que reflita sua imagem de volta para si mesmo, como um espelho. Mas
aquele nosso menino é capaz de perceber-se pensando, e de refletir sobre seus
próprios pensamentos, sobre sua própria imaginação e memória, e mesmo de
observar-se a imaginar, a pensar e a lembrar. Sem nenhuma ajuda de um objeto
material externo, como um espelho. É capaz mesmo de observar mentalmente a si
mesmo enquanto reflete. Numa palavra, ele percebe que é inteligente! E que a
sua inteligência, conquanto lide com dados sensoriais, dobra-se sobre estes
dados de uma maneira que nenhuma dimensão material do seu corpo é capaz de
fazer. A inteligência tem uma qualidade, portanto, que, se por um lado está
entranhada em sua materialidade, por outro a supera, já que pode dobrar-se
sobre si mesmo de um modo tal que nenhum corpo material pode fazê-lo.
E
mais : é capaz de perceber em si as inclinações, os instintos, os desejos e
escolher entre eles, não somente cedendo ao mais apetitoso, mas eventualmente
ao que contraria aos seus apetites sensoriais. Ele colhe uma pequena fruta daquela
árvore, bela, madura e suculenta, e não a come, apesar de desejá-la
profundamente, a ponto de estimular sua salivação : reserva-a para levar, mais
tarde, à sua vovó amada que se encontra doente num quartinho dos fundos. Ou
mesmo de um pobre mendigo que senta-se na calçada de sua casa. É assim que ele
descobre que ele tem uma vontade, capaz de escolher entre os diversos desejos
que se lhe apresentam aos sentidos. E, uma vez que esta vontade lhe conduz além
dos desejos sensoriais, percebendo que são os corpos externos a si que
estimulam seus sentidos, ele poderia intuir também que esta vontade capaz de
reconhecer os apetites sensoriais e escolher não satisfazê-los deve, de algum
modo, ser capaz de superar a materialidade dos seus desejos, instintos, inclinações
e estímulos, uma vez que pode escolher uma conduta que, embora reconhecendo-os,
ignore-os todos e se dirija a um fim que é deles independente. A esta alma,
capaz das mesmas funções que a alma simplesmente vegetativa, capaz ainda das
mesmas funções da alma sensitiva, e ainda capaz de reflexão e escolha, chamamos
de alma espiritual ou espírito – por envolver dimensões reflexivas que de algum
modo superam a matéria. E aos seres capazes de reflexão chamamos de pessoas, e
dessa capacidade de reflexão vem a sua dignidade. Um ser humano, por ser
pessoa, tem o direito de ser mais do que vegetativo. Tem o direito de ser mais
que simplesmente sensitivo e instintivo. Tem o direito de ser reflexivo no
pensar e livre no escolher. Cada vez que uma pessoa está reduzida apenas aos
aspectos vegetativos e sensitivos de sua alma, ele está sendo ofendido em sua
dignidade humana, que se plenifica no direito de desenvolver plenamente a sua
capacidade de reflexão e livre escolha – no desenvolvimento pleno da sua
capacidade espiritual. Uma planta realiza-se plenamente por ser planta. Um
animal tem sua dignidade, que consiste em ser mais que uma planta, e poder
exercer livremente seus potenciais sensitivos. Uma pessoa humana não pode
reduzir a si mesmo, ou mesmo reduzir o outro, a viver como um animal
irracional, ou mesmo como uma planta, sem perder, exatamente aí, e exatamente
por isso, a sua dignidade de pessoa. Mas para isso, para discutir ética,
precisaríamos aprofundar a noção de ato e potência, o que somente poderá ser feito
em outra ocasião...’
Fonte :
* Artigo na íntegra de http://www.zenit.org/pt/articles/sobre-corpos-e-almas-2
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