*Artigo de Dom Alberto Taveira Corrêa,
Arcebispo Metropolitano
de Belém, PA
‘Quanto
mais cresce a sociedade, maior a necessidade de leis e normas que facilitem a
convivência de pessoas diferentes, segundo as classes sociais, as culturas
presentes naquele ambiente, os grupos que reivindicam seu espaço de
participação e seus direitos. O equilíbrio entre as diversas forças tantas
vezes é difícil de ser alcançado, pelo radicalismo das mesmas e a incapacidade
para conviver com os opostos, a serem considerados como complementares e não
inimigos. A presença dos cristãos em nosso tempo é continuamente desafiada,
cabendo-lhes a coerência com o Evangelho de Jesus Cristo, a paixão pela
verdade, a capacidade de ouvir e considerar as razões dos outros, a
misericórdia e um ponto basilar da Doutrina
Social da Igreja, que é a busca do Bem Comum. Sua vida há de ser exemplar,
de forma que os que os veem de longe se aproximem e se sintam atraídos. Não
somos donos do poder no mundo, mas servidores e colaboradores da Verdade.
‘Vede, eu vos ensinei leis e decretos,
conforme o Senhor meu Deus me ordenou para que os pratiqueis na terra em que
ides entrar e da qual tomareis posse. Guardai-os e ponde-os em prática, porque
neles está vossa sabedoria e inteligência diante dos povos. Ao tomarem
conhecimento de todas essas leis, dirão : ‘Sábia e inteligente é, na verdade,
essa grande nação’. Pois qual é a grande nação que tem deuses tão próximos como
o Senhor nosso Deus, sempre que o invocamos? E qual a grande nação que tenha
leis e decretos tão justos quanto toda esta Lei que hoje vos proponho?’ (Dt
4, 5-8) Somos herdeiros do imenso tesouro dado por Deus a seu povo, conscientes
de sermos guardiães de um relacionamento com o Senhor que nos possibilita uma
vida digna, pensada por ele para toda a humanidade, no maravilhoso plano de
amor expresso na Sagrada Escritura, na História Sagrada e na História da
Igreja.
No
entanto, na Antiga Aliança, aos Dez Mandamentos da Lei de Deus foram
acrescentados muitos outros mandamentos, normas e preceitos, que tantas vezes
dificultaram a vida religiosa fiel, especialmente dos mais simples. Tornou-se,
no correr do tempo, muitas vezes insuportável carregar o peso da lei, enquanto
esta deveria ser justamente o caminho para a realização e a felicidade. Jesus se
confrontou com pessoas e grupos que tinham a tarefa de interpretar a Lei de
Deus e as leis dela decorrentes, cuja pretensa competência suscitou discussões
acirradas e perseguições àquele que é a Palavra de Deus feita Carne (Cf. Mc
7,1-23). Também no tempo da Igreja, que é nosso, corremos continuamente o risco
de transformarmos as leis do Senhor em opressão, peso insuportável para as
outras pessoas. O risco oposto também nos cerca, quando podemos relaxar no
cumprimento da lei de Deus.
O
justo equilíbrio é buscado na vida da Igreja com afã no correr dos séculos. A
moral cristã é uma tarefa exigente, atenta à revelação de Deus nas Escrituras e
às exigências da vida das pessoas. Seu ponto de partida não é a norma fria das
leis a serem compridas, mas o encontro com Cristo, que exige muito mais do que
a eventual vigilância ou muitas placas escritas ou não, expostas pelos
cruzamentos da vida. Faz-se necessário escutar o Senhor, alimentar-se de sua
Palavra, orar com frequência e confiança, buscar a necessária orientação de
pessoas que têm a graça e a capacidade de contribuir no discernimento,
alimentar-se dos Sacramentos, especialmente a Penitência e a Eucaristia, a fim
de dar passos seguros, na crescente fidelidade ao Espírito Santo que conduz
nossas almas.
Há
poucos dias recebi o texto da Oração pela Beatificação do Servo de Deus Dom
Helder Câmara, o grande Arcebispo de Olinda e Recife. Anteriormente, numa
viagem a Roma, tive a graça de acompanhar um emissário daquela Arquidiocese
quando foi entregue o processo na Congregação das Causas dos Santos. A oração
diz assim : ‘Nós vos agradecemos pelo dom
de sua vida e vos bendizemos por suas virtudes. Exercendo o seu ministério em
favor da justiça e da paz e dedicando sua vida à causa dos pobres, imitou o Bom
Pastor, que deu a vida por suas ovelhas’. Um homem de imensa liberdade
interior, com vida sóbria em seus hábitos, exigente consigo e pobre, capaz de
edificar a todos com seu olhar ao mesmo tempo perspicaz e carregado de
simplicidade evangélica. Sua vida, assim como de outros homens e mulheres
santos, atrai pela coerência e fidelidade a Deus! Não foram coniventes com a
mentira e a maldade, apontaram seu olhar para o alto, e são exemplos a serem
seguidos. Fazem parte de uma grande nação, cuja herança perpassa os séculos.
Os
legisladores e governantes, quando coerentes com sua própria consciência e
quando honestos em sua busca da verdade, podem constatar que a Lei de Deus
consignada nos Dez Mandamentos é o que existe de melhor para a humanidade de
qualquer tempo. Mais ainda é consistente o que a Nova Lei em Cristo oferece à
humanidade. Em nosso tempo, os cristãos lutam com firmeza pelo respeito à vida,
desde sua concepção até seu ocaso natural, batalham pela fidelidade a projeto
de Deus, que criou o homem e a mulher, são conscientes de que os esforços
contra a corrupção em todos os níveis é dever de todos, unem-se a todos os
esforços pela justiça e pela paz, sonham e trabalham por um mundo de maior
respeito à dignidade de todos.
Estamos
para iniciar, nesta semana, o mês dedicado à Bíblia, com o qual desejamos
voltar continuamente ao Evangelho, num esforço redobrado de fidelidade à
Palavra. Valha para todos nós a recomendação de São Tiago (Tg 1, 21-27), que
nos oferece o caminho de coerência necessário para fermentarmos a sociedade de
uma forma nova : ‘Recebei com mansidão a
Palavra que em vós foi implantada, e que é capaz de salvar-vos. Todavia, sede
praticantes da Palavra, e não meros ouvintes, enganando-vos a vós mesmos. Com
efeito, aquele que ouve a Palavra e não a põe em prática é semelhante a alguém
que observa o seu rosto no espelho : apenas se observou, sai e logo esquece como era a sua aparência.
Aquele, porém, que se debruça sobre a Lei perfeita, que é a da liberdade e nela
persevera, não como um ouvinte distraído, mas praticando o que ela ordena, esse
há de ser feliz naquilo que faz. Se alguém julga ser religioso, mas não refreia
a sua língua, engana-se a si mesmo : a sua religiosidade é vazia. Religião pura
e sem mancha diante do Deus e Pai é esta : assistir os órfãos e as viúvas em
suas dificuldades e guardar-se livre da corrupção do mundo’.’
Fonte :
* Artigo na íntegra http://www.cnbb.org.br/artigos-dos-bispos-1/426-dom-alberto-taveira-correa/17230-a-lei-de-deus-e-as-leis-humanas
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