Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)
*Artigo de Margarida Santos Lopes, Jornalista
‘Foi no campo de Jabalyia, na Faixa de
Gaza, num quarto sem luz e água potável onde uma dezena de pessoas dormia no
mesmo colchão e comia do mesmo prato as rações alimentares distribuídas pela
ONU, que nasceu, a 3 de Fevereiro de 1955, Izzeldin Abuelaish. E foi em
Jabaliya que, em 2009, duas bombas israelitas mataram três filhas e uma
sobrinha do homem agora conhecido como o ‘médico
de Gaza’.
Depois de uma Nakba (Catástrofe) e um
Naksah (Revés) – como as guerras de 1948 e 1967 são conhecidas em árabe –,
seria de esperar que Izzeldin Abuelaish quisesse vingar-se dos seus inimigos.
Mas nem agora, depois do que classifica como ‘a mais cruel agressão militar’ na Faixa de Gaza, o autor de Não Odiarei (Ed. Planeta) cede à
retórica anti-semita que tem acompanhado as notícias e imagens da Operação
Escudo Protector, lançada a 8 de Julho.
Segundo o Gabinete para a Coordenação
dos Assuntos Humanitários das Nações Unidas (OCHA) foram mortos ‘2104 palestinos, dos quais 495 são crianças’.
O número de desalojados internos ‘ultrapassará
os 200 mil, incluindo 46000 mulheres grávidas’. O Hospital de Shifa, que
não escapou aos ataques, terá registado ‘um
aumento de 15 a 20 % de nascimentos prematuros’. Entre os israelitas
contaram-se 69 mortos, quatro deles civis.
Direito à liberdade
‘O
que vejo ofende-me e deixa-me zangado’, disse à Além-Mar, numa entrevista
por Skype, o obstetra e especialista em fertilidade que ajudou muitos casais
israelitas e palestinos a terem filhos, e que depois da sua tragédia familiar
vive no Canadá, onde continua a exercer medicina e é professor de Saúde Global
na Universidade de Toronto. ‘Fui
testemunha de todas as ofensivas em Gaza, mas esta é pior do que a de 2009. É
impossível pôr fim a este conflito se não for reconhecido aos palestinos o
direito de serem livres. O povo palestino é a única nação que não é livre. Se
os palestinos forem livres, os israelitas serão livres e sentir-se-ão seguros.’
Israel foi dando várias justificações
para o início da operação que, no seu campo, causou mais de 70 mortos :
primeiro, o rapto e homicídio de três jovens israelitas, atribuído ao Hamas,
que governa Gaza (posteriormente, o crime foi atribuído a um bando fora do
controlo do movimento islâmico); depois, o lançamento de rockets contra
localidades no Sul que vitimaram três civis (embora o lançamento destes
projécteis tenha recomeçado só depois de Israel ter assassinado operacionais do
Hamas, violando a trégua em vigor desde 2006; e, finalmente, a descoberta de ‘dezenas de túneis’ que permitiriam à
guerrilha infiltrar-se em Israel).
Embora tenha concorrido, como
independente, contra o Hamas, nas eleições de 2006, e reafirme que condena ‘qualquer tipo de violência’, Abuelaish
desmente que o movimento vencedor absoluto das legislativas ‘use civis como escudos humanos’, segundo
alega Israel. ‘Antes de mais, é preciso
entender o que é a Faixa de Gaza : um território muito, muito pequeno. Um total
de 360 quilómetros quadrados para 1,8 milhões de habitantes. É a área mais
densamente povoada do mundo, onde 50 % são crianças e 20 % são mulheres. Não há
espaço livre para ninguém. As pessoas nem conseguem mexer-se. Israel continua a
culpar-nos por lutarmos, mas nós lutamos porque não aceitamos a ocupação.’
Sobre os túneis, Abuelaish explica : ‘Foram criados depois do castigo colectivo
imposto em 2006 [quando o Hamas ganhou as legislativas]. As fronteiras foram
fechadas e a necessidade é mãe da criatividade. Os túneis foram escavados para
sobrevivência. Os túneis são sintomas de uma doença, que é a ocupação. Depois
dos Acordos de Oslo [de 1993], previa-se um Estado palestino nas fronteiras de
1967, com Jerusalém Leste como capital. Isto deveria acontecer em 1999. Estamos
em 2014 e, a cada dia que passa, mais e mais terras são confiscadas para
expandir colonatos na Cisjordânia. Gaza tornou-se a maior prisão do mundo, mas
nada nos pode afastar dos nossos irmãos na Cisjordânia – somos um só povo.’
‘Em
2006, a Autoridade Palestina opunha-se à realização de eleições e os Estados
Unidos impuseram-nas’, recordou Abuelaish. As eleições foram consideradas
livres – observadores europeus comprovaram. Os palestinos elegeram os seus
representantes, o Hamas, mas a comunidade internacional rejeitou-os. No
entanto, alguém rejeitou o Governo israelita que é composto por dois partidos
de extrema-direita, a Casa Judaica, de Naftali Bennett e Ayelet Shaked, e o
Yisrael Beitenu, de Avigdor Lieberman, que advogam a limpeza étnica dos palestinos?
Porque é que esta liberdade é concedida a Israel e não aos palestinos? Logo
após a vitória do Hamas foram impostas sanções aos palestinos. Isto é
inaceitável. Como disse Martin Luther King, ‘tudo o que é necessário para que o mal triunfe é que os homens nada
façam’.
Amigos israelitas
Abuelaish tem muitos amigos israelitas.
Foram eles que lhe deram o primeiro emprego fora de Gaza, aos 15 anos, na
Moshav (cooperativa) Hodaia. Durante 40 dias, trabalhou das seis da manhã às
20h00, durante o Verão. A família Madmoony, de origem sefardita, tratava-o ‘com carinho’. Mais tarde, foi operário
da construção civil, na cidade de Ashqelon, mas nunca deixou de estudar. Em
1975, concluído o liceu, seguiu para a Universidade do Cairo, graças a uma
bolsa. Nessa altura era livre o movimento de pessoas e bens entre Gaza e o
Egipto. Em 1983, finalizou o mestrado em Medicina e retornou a Gaza para
exercer a profissão em hospitais locais.
Em 1987, tendo juntado dinheiro em
Jidá, na Arábia Saudita, onde trabalhou numa maternidade, Abuelaish casou-se
com Nadia – no campo de Jabalyia. A primeira filha, Bessan, nasceu em 1988, no
mesmo ano em que ele ingressou no Instituto de Obstetrícia da Universidade de
Londres, para outro mestrado, com bolsa, sobre as causas da infertilidade.
Posteriormente, na sua clínica privada
em Gaza, reparou que os principais livros sobre a sua área eram de professores
israelitas da Universidade de Ben-Gurion, em Beersheba : Bruno Lunenfeld e
Vaclav Insler. Telefonou-lhes e levou até eles pacientes palestinos. Eles
apresentaram-no a Marek Glezerman, na altura presidente do Departamento de
Ginecologia do Hospital de Soroka. A partir daqui, desenvolveu-se a amizade
entre ambos e Abuelaish tornou-se o primeiro médico palestino aceite como
quadro de um grande hospital israelita (de 1997 a 2002). A especialidade foi
sendo aperfeiçoada noutros países, como a Itália e a Bélgica. Completou ainda
um mestrado em Gestão de Saúde na Universidade de Harvard (EUA).
Mataram as filhas
Em 2009, quando a Faixa de Gaza foi
encerrada para mais uma operação militar instigada pelos rockets do Hamas,
Abuelaish serviu de ‘fonte’ para muitos jornalistas. Tornou-se amigo de Shlomo
Eldar, repórter do Canal 10 da TV israelita. Foi a ele que telefonou quando
duas bombas caíram sobre a sua residência, onde viviam 22 pessoas, e mataram as
suas três filhas, Bessan, Mayar e Aya, e a sobrinha Ghaida. Uma quarta filha,
Shatha, perdeu um olho e ficou parcialmente cega. Nesse dia 16 de Janeiro,
quando o viu a chorar, o filho mais novo deu-lhe coragem para se dedicar aos
sobreviventes : ‘Não deves estar triste,
pai; elas vão para junto da mãe.’ Nadia tinha morrido meses antes de
leucemia. Abuelaish ficou com cinco filhos para criar (duas raparigas e três
rapazes).
Eldar estava em estúdio a entrevistar
Tzipi Livni, actual ministra da Justiça, quando notou que Abuelaish estava a
ligar. Não atendeu. No intervalo da emissão, o telemóvel voltou a tocar e
decidiu ouvir, como se pressentisse algo de errado. Abuelaish gritava : ‘O que é que vocês fizeram às minhas filhas?’
O jornalista colocou-o em alta voz, virou o telefone para a câmara e respondeu :
‘Diz-me onde elas estão que envio uma
ambulância à tua casa.’ Do outro lado da linha, o ‘médico de Gaza’ não continha as lágrimas : ‘Elas foram mortas, Shlomi’.
Abuelaish, um muçulmano devoto, recebeu
incontáveis mensagens de apoio de muitos judeus israelitas. Foram os seus
amigos que o fizeram sair de Gaza e o convenceram a mudar-se para o Canadá.
Aqui criou a Fundação Daughters for Life, em homenagem às suas filhas. É uma
instituição que concede bolsas de estudo a jovens do Médio Oriente – incluindo
israelitas –, porque ‘a educação das
mulheres garante o futuro da Humanidade’, como salientou nesta entrevista.
O apoio que recebeu de anónimos
cidadãos israelitas também o faz acreditar ainda em dois Estados, o de Israel e
o da Palestina. ‘Se o Governo de Benjamin
Netanyahu quer esta solução, tem de acabar com a expansão dos colonatos, que
são ilegais e serão sempre ilegais’, declarou.
Infelizmente para Abuelaish, o Governo
federal em Otava, dirigido pelo conservador Stephen Harper, é um aliado
incondicional de Netanyahu e está a inviabilizar uma iniciativa que conta com o
apoio das autoridades provinciais de Ontário, para que 100 crianças palestinas
gravemente feridas sejam tratadas no Canadá.
O ódio é uma doença
Apesar dos obstáculos, Abuelaish
imagina israelitas e palestinos juntos a pressionarem uma mudança de líderes : ‘Acho isso possível, porque não acredito em
impossibilidades. É possível vivermos juntos, com respeito e compreensão mútuos
– e em igualdade. Não há outra via. Israelitas e palestinos são como gémeos
siameses. Não se pode separá-los.’
‘Nunca
deixarei que o veneno do ódio me invada ou se aproxime de mim. Se eu quiser
viver bem, tenho de estar saudável, física e mentalmente. O ódio é uma doença a
que eu resisto’, concluiu. ‘Acredito
no que faço, porque a medicina tem um rosto humano. Não há diferenças entre
israelitas e palestinos quando estão num hospital. Todos são iguais. Sempre
trabalhei no interesse dos meus pacientes. Quando ajudo um casal israelita ou
um casal palestino a terem filhos, fico feliz, porque quando os seus bebés
choram ao nascer não há diferenças entre eles’.’
Fonte :
* Artigo na íntegra
de http://www.alem-mar.org/cgi-bin/quickregister/scripts/redirect.cgi?redirect=EuEkkyEAVVoTMyDNiE
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