quinta-feira, 27 de novembro de 2014

Izzeldin Abuelaish : O médico de Gaza


Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

   *Artigo de Margarida Santos Lopes, Jornalista

‘Foi no campo de Jabalyia, na Faixa de Gaza, num quarto sem luz e água potável onde uma dezena de pessoas dormia no mesmo colchão e comia do mesmo prato as rações alimentares distribuídas pela ONU, que nasceu, a 3 de Fevereiro de 1955, Izzeldin Abuelaish. E foi em Jabaliya que, em 2009, duas bombas israelitas mataram três filhas e uma sobrinha do homem agora conhecido como o ‘médico de Gaza’.

Depois de uma Nakba (Catástrofe) e um Naksah (Revés) – como as guerras de 1948 e 1967 são conhecidas em árabe –, seria de esperar que Izzeldin Abuelaish quisesse vingar-se dos seus inimigos. Mas nem agora, depois do que classifica como ‘a mais cruel agressão militar’ na Faixa de Gaza, o autor de Não Odiarei (Ed. Planeta) cede à retórica anti-semita que tem acompanhado as notícias e imagens da Operação Escudo Protector, lançada a 8 de Julho.

Segundo o Gabinete para a Coordenação dos Assuntos Humanitários das Nações Unidas (OCHA) foram mortos ‘2104 palestinos, dos quais 495 são crianças’. O número de desalojados internos ‘ultrapassará os 200 mil, incluindo 46000 mulheres grávidas’. O Hospital de Shifa, que não escapou aos ataques, terá registado ‘um aumento de 15 a 20 % de nascimentos prematuros’. Entre os israelitas contaram-se 69 mortos, quatro deles civis.


Direito à liberdade

O que vejo ofende-me e deixa-me zangado’, disse à Além-Mar, numa entrevista por Skype, o obstetra e especialista em fertilidade que ajudou muitos casais israelitas e palestinos a terem filhos, e que depois da sua tragédia familiar vive no Canadá, onde continua a exercer medicina e é professor de Saúde Global na Universidade de Toronto. ‘Fui testemunha de todas as ofensivas em Gaza, mas esta é pior do que a de 2009. É impossível pôr fim a este conflito se não for reconhecido aos palestinos o direito de serem livres. O povo palestino é a única nação que não é livre. Se os palestinos forem livres, os israelitas serão livres e sentir-se-ão seguros.’

Israel foi dando várias justificações para o início da operação que, no seu campo, causou mais de 70 mortos : primeiro, o rapto e homicídio de três jovens israelitas, atribuído ao Hamas, que governa Gaza (posteriormente, o crime foi atribuído a um bando fora do controlo do movimento islâmico); depois, o lançamento de rockets contra localidades no Sul que vitimaram três civis (embora o lançamento destes projécteis tenha recomeçado só depois de Israel ter assassinado operacionais do Hamas, violando a trégua em vigor desde 2006; e, finalmente, a descoberta de ‘dezenas de túneis’ que permitiriam à guerrilha infiltrar-se em Israel).

Embora tenha concorrido, como independente, contra o Hamas, nas eleições de 2006, e reafirme que condena ‘qualquer tipo de violência’, Abuelaish desmente que o movimento vencedor absoluto das legislativas ‘use civis como escudos humanos’, segundo alega Israel. ‘Antes de mais, é preciso entender o que é a Faixa de Gaza : um território muito, muito pequeno. Um total de 360 quilómetros quadrados para 1,8 milhões de habitantes. É a área mais densamente povoada do mundo, onde 50 % são crianças e 20 % são mulheres. Não há espaço livre para ninguém. As pessoas nem conseguem mexer-se. Israel continua a culpar-nos por lutarmos, mas nós lutamos porque não aceitamos a ocupação.

Sobre os túneis, Abuelaish explica : ‘Foram criados depois do castigo colectivo imposto em 2006 [quando o Hamas ganhou as legislativas]. As fronteiras foram fechadas e a necessidade é mãe da criatividade. Os túneis foram escavados para sobrevivência. Os túneis são sintomas de uma doença, que é a ocupação. Depois dos Acordos de Oslo [de 1993], previa-se um Estado palestino nas fronteiras de 1967, com Jerusalém Leste como capital. Isto deveria acontecer em 1999. Estamos em 2014 e, a cada dia que passa, mais e mais terras são confiscadas para expandir colonatos na Cisjordânia. Gaza tornou-se a maior prisão do mundo, mas nada nos pode afastar dos nossos irmãos na Cisjordânia – somos um só povo.

Em 2006, a Autoridade Palestina opunha-se à realização de eleições e os Estados Unidos impuseram-nas’, recordou Abuelaish. As eleições foram consideradas livres – observadores europeus comprovaram. Os palestinos elegeram os seus representantes, o Hamas, mas a comunidade internacional rejeitou-os. No entanto, alguém rejeitou o Governo israelita que é composto por dois partidos de extrema-direita, a Casa Judaica, de Naftali Bennett e Ayelet Shaked, e o Yisrael Beitenu, de Avigdor Lieberman, que advogam a limpeza étnica dos palestinos? Porque é que esta liberdade é concedida a Israel e não aos palestinos? Logo após a vitória do Hamas foram impostas sanções aos palestinos. Isto é inaceitável. Como disse Martin Luther King, ‘tudo o que é necessário para que o mal triunfe é que os homens nada façam’.


Amigos israelitas

Abuelaish tem muitos amigos israelitas. Foram eles que lhe deram o primeiro emprego fora de Gaza, aos 15 anos, na Moshav (cooperativa) Hodaia. Durante 40 dias, trabalhou das seis da manhã às 20h00, durante o Verão. A família Madmoony, de origem sefardita, tratava-o ‘com carinho’. Mais tarde, foi operário da construção civil, na cidade de Ashqelon, mas nunca deixou de estudar. Em 1975, concluído o liceu, seguiu para a Universidade do Cairo, graças a uma bolsa. Nessa altura era livre o movimento de pessoas e bens entre Gaza e o Egipto. Em 1983, finalizou o mestrado em Medicina e retornou a Gaza para exercer a profissão em hospitais locais.

Em 1987, tendo juntado dinheiro em Jidá, na Arábia Saudita, onde trabalhou numa maternidade, Abuelaish casou-se com Nadia – no campo de Jabalyia. A primeira filha, Bessan, nasceu em 1988, no mesmo ano em que ele ingressou no Instituto de Obstetrícia da Universidade de Londres, para outro mestrado, com bolsa, sobre as causas da infertilidade.

Posteriormente, na sua clínica privada em Gaza, reparou que os principais livros sobre a sua área eram de professores israelitas da Universidade de Ben-Gurion, em Beersheba : Bruno Lunenfeld e Vaclav Insler. Telefonou-lhes e levou até eles pacientes palestinos. Eles apresentaram-no a Marek Glezerman, na altura presidente do Departamento de Ginecologia do Hospital de Soroka. A partir daqui, desenvolveu-se a amizade entre ambos e Abuelaish tornou-se o primeiro médico palestino aceite como quadro de um grande hospital israelita (de 1997 a 2002). A especialidade foi sendo aperfeiçoada noutros países, como a Itália e a Bélgica. Completou ainda um mestrado em Gestão de Saúde na Universidade de Harvard (EUA).


Mataram as filhas

Em 2009, quando a Faixa de Gaza foi encerrada para mais uma operação militar instigada pelos rockets do Hamas, Abuelaish serviu de ‘fonte’ para muitos jornalistas. Tornou-se amigo de Shlomo Eldar, repórter do Canal 10 da TV israelita. Foi a ele que telefonou quando duas bombas caíram sobre a sua residência, onde viviam 22 pessoas, e mataram as suas três filhas, Bessan, Mayar e Aya, e a sobrinha Ghaida. Uma quarta filha, Shatha, perdeu um olho e ficou parcialmente cega. Nesse dia 16 de Janeiro, quando o viu a chorar, o filho mais novo deu-lhe coragem para se dedicar aos sobreviventes : ‘Não deves estar triste, pai; elas vão para junto da mãe.’ Nadia tinha morrido meses antes de leucemia. Abuelaish ficou com cinco filhos para criar (duas raparigas e três rapazes).

Eldar estava em estúdio a entrevistar Tzipi Livni, actual ministra da Justiça, quando notou que Abuelaish estava a ligar. Não atendeu. No intervalo da emissão, o telemóvel voltou a tocar e decidiu ouvir, como se pressentisse algo de errado. Abuelaish gritava : ‘O que é que vocês fizeram às minhas filhas?’ O jornalista colocou-o em alta voz, virou o telefone para a câmara e respondeu : ‘Diz-me onde elas estão que envio uma ambulância à tua casa.’ Do outro lado da linha, o ‘médico de Gaza’ não continha as lágrimas : ‘Elas foram mortas, Shlomi’.

Abuelaish, um muçulmano devoto, recebeu incontáveis mensagens de apoio de muitos judeus israelitas. Foram os seus amigos que o fizeram sair de Gaza e o convenceram a mudar-se para o Canadá. Aqui criou a Fundação Daughters for Life, em homenagem às suas filhas. É uma instituição que concede bolsas de estudo a jovens do Médio Oriente – incluindo israelitas –, porque ‘a educação das mulheres garante o futuro da Humanidade’, como salientou nesta entrevista.

O apoio que recebeu de anónimos cidadãos israelitas também o faz acreditar ainda em dois Estados, o de Israel e o da Palestina. ‘Se o Governo de Benjamin Netanyahu quer esta solução, tem de acabar com a expansão dos colonatos, que são ilegais e serão sempre ilegais’, declarou.

Infelizmente para Abuelaish, o Governo federal em Otava, dirigido pelo conservador Stephen Harper, é um aliado incondicional de Netanyahu e está a inviabilizar uma iniciativa que conta com o apoio das autoridades provinciais de Ontário, para que 100 crianças palestinas gravemente feridas sejam tratadas no Canadá.


O ódio é uma doença

Apesar dos obstáculos, Abuelaish imagina israelitas e palestinos juntos a pressionarem uma mudança de líderes : ‘Acho isso possível, porque não acredito em impossibilidades. É possível vivermos juntos, com respeito e compreensão mútuos – e em igualdade. Não há outra via. Israelitas e palestinos são como gémeos siameses. Não se pode separá-los.

Nunca deixarei que o veneno do ódio me invada ou se aproxime de mim. Se eu quiser viver bem, tenho de estar saudável, física e mentalmente. O ódio é uma doença a que eu resisto’, concluiu. ‘Acredito no que faço, porque a medicina tem um rosto humano. Não há diferenças entre israelitas e palestinos quando estão num hospital. Todos são iguais. Sempre trabalhei no interesse dos meus pacientes. Quando ajudo um casal israelita ou um casal palestino a terem filhos, fico feliz, porque quando os seus bebés choram ao nascer não há diferenças entre eles’.’


Fonte :
* Artigo na íntegra de http://www.alem-mar.org/cgi-bin/quickregister/scripts/redirect.cgi?redirect=EuEkkyEAVVoTMyDNiE


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