*Artigo de Tom Catena,
Médico nos Montes Nuba, Sudão (África)
Extractos do diário de um médico voluntário no único
hospital em toda a região dos montes Nuba, no Sudão. Aqui, as populações são
diariamente bombardeadas pela aviação. O testemunho impressionante do dia em
que o hospital foi atacado e todo o caos e pânico que gerou.
‘Como se tornará claro se continuar a
ler, sou médico, não escritor. Exerço medicina familiar nos EUA. Mas a situação
que testemunhei, como médico voluntário há mais de seis anos, nos montes Nuba,
no Sudão, obriga-me a escrever e a contar a história do que está a acontecer
lá. Desde Maio de 2011, os Nubas estão presos no horror de uma guerra civil
entre o Governo do Sudão e o Movimento de Libertação Popular do Sudão-Norte
(SPLM-N na sigla em inglês). Os civis são submetidos a bombardeamentos aéreos
diários e tem-lhes sido negado o acesso à ajuda humanitária. Incapazes de
cultivar a terra por causa dos bombardeamentos, as pessoas estão a morrer de
fome, sobrevivendo com insectos e erva, e com risco de morte se se aventuram
para fora das suas cavernas em busca de comida e água. Desde 2011, o único
hospital em toda a região dos montes Nuba, o Hospital Mother of Mercy, em
Guidel, com uma pequena equipa dedicada de profissionais de saúde e educadores,
tinha sido poupado aos bombardeamentos – até Julho passado. O que se segue é
tirado directamente do meu diário, escrito quando os acontecimentos ainda eram
recentes.
2 de Maio de 2014
Ontem de manhã, tinha acabado de dizer ‘o Land Cruiser precisa de ser outra vez
arranjado. Hoje não há viagens para a clínica’... Estava a caminhar para o
ambulatório para ajudar, quando ouvi um jacto. Não tive medo e olhei, curioso
sobre quão perto estaria. Em poucos segundos, estava em cima de nós, as pessoas
gritavam, corriam, bradavam instruções : ‘Não
corram! Deitem-se no chão!’
Lancei-me para o chão e cobri a cabeça
quando uma forte explosão veio do lado sul, a área de tuberculose/leprosaria.
Vento, areia, poeira. Olhei para cima. Havia pessoas a correr em todas as
direcções, já ninguém gritava – ou eu simplesmente já não conseguia ouvir. Vi a
farmacêutica correr com determinação, de maneira que comecei a caminhar na sua
direcção. Ela tropeçou numa cerca de arame que não vira e caiu numa trincheira
muito cheia de gente. Virei-me e vi outro membro da equipa também a correr.
Corri atrás dela umas centenas de metros até ao portão da residência do médico
e para uma trincheira vazia com cerca de 11 metros de comprimento e quase um
metro de profundidade. Esperámos... não muito e de novo um jacto ruidoso,
rápido, perto, a voar baixo, cobrimos a cabeça. Segundos, momentos depois, uma
explosão ainda mais alta, muito perto, logo atrás das instalações. Esperei, esperei,
esperei – cerca de 10 minutos. Ida e volta. É isso. O jacto partiu. Hora de ir
para o hospital ajudar as vítimas. Pude ver o médico entrar na ala infantil do
lado norte... Não acabou! Num instante, o jacto por cima de nós, espalmado na
trincheira mais próxima corpo contra corpo numa fila, mulheres e crianças, uma
massa de humanidade trémula. Momentos depois, outra explosão, mais uma vez
suficientemente perto para fazer tremer o chão, mas não acertou no hospital.
Ninguém se mexeu, as crianças estão serenas, os nossos corações batem em
uníssono, tenho a cabeça no lenço da mulher atrás de mim, o cotovelo esquerdo
tenho-o debaixo da cabeça da mulher à minha frente, um quebra-cabeças
engendrado pela necessidade. Sabíamos que o jacto estaria a dar a volta para
regressar. Algumas respirações rápidas e uma eternidade depois, lá vem ele,
muito perto, mais perto e mais alto do que antes. Eu morreria num instante, se
dermos nas vistas... ou sobrevivo. Não havia nada mais a fazer. Aceitei a
realidade e senti uma grande calma. O barulho era ensurdecedor... então,
desapareceu rapidamente. Tínhamos sobrevivido.
Refúgio nas rochas e cavernas
O resto do dia de ontem foi gasto a
inspeccionar os danos e a limpar. O segundo míssil rebentou 30 metros atrás do
pequeno bloco de cimento da residência do médico. O chão era um espesso tapete
de folhas arrancadas dos ramos agora nus das árvores mais próximas, a cerca das
traseiras está destruída, a dois metros de distância uma profunda cratera de
meio metro, estilhaços de metal dos mísseis tiveram força para se cravarem 20
centímetros nas pernadas das árvores. Por incrível que pareça, a única perda de
vida foi um bode quando o mesmo jacto atacou a aldeia mais próxima. Nem um
único ferimento físico significativo. Psicologicamente, porém, todos, de uma
maneira ou de outra, estamos abalados. O resto do dia foi tranquilo. A maioria
dos pacientes deixou o hospital. A não ser os paralisados ou em tracção, foram
para as rochas e cavernas. O telhado da minha casa ficou danificado. A porta
traseira foi arrancada das dobradiças e o interior parecia, bem, ‘como se uma
bomba tivesse explodido’.
Apenas uma vítima
À frente de uma cerveja russa morna,
durante o jantar, indo e vindo do hospital, todos contavam e recontavam a sua
própria experiência, aplaudindo, encorajando-se uns aos outros de que não
voltaria a acontecer... Até hoje, 10h00, durante as rondas na ala masculina,
ouvimos o ruído baixo e distante de um bombardeiro Antonov a grande altitude. O
meu colega disse : ‘Demasiado longe para
me preocupar agora.’ Então, rapidamente, quando pudemos perceber e
compreender, não, de facto está cada vez mais perto. ‘Leve toda a gente lá para fora!’, depois, ‘Não há tempo! Deitem-se no chão!!!’ De barriga para baixo, olhos
fechados, mãos cruzadas atrás da cabeça, as orelhas cobertas pela parte
superior do braço – BUM, BUM! O chão tremeu, a poeira voou, muito alto. Meio
minuto depois, levantei-me e corri para fora, com detritos ainda a caírem do
outro lado do leito seco de um rio a um quilómetro de distância. Reuni a
maioria dos homens de idade e uma enfermeira, Anna, que estava a chorar e
queria ir para casa com o seu bebé – levámo-la para uma trincheira porque
sabíamos que o avião iria fazer um círculo e voltar antes que ela pudesse ir
para casa. Ajudei a descer um paciente para a trincheira, paciente que estava
de muletas por já ter perdido uma perna quando um Antonov bombardeou a sua
aldeia. Mantivemos a cabeça no chão. BUM, BUM! O novo regresso falhou por 500
metros. Esperámos – deu a volta de regresso mais duas vezes – mais quatro
bombas – oito no total. Apenas uma vítima. Um homem que procurou abrigo dentro
do tronco oco de um embondeiro foi atingido no pé por estilhaços que penetraram
15 centímetros no tronco da árvore.
O segundo dia, uma e outra vez, deixou
vítimas psicológicas. ‘Isto é um padrão?’
‘Será que vão voltar todas as manhãs?’
‘Será que vêm à noite?’ Não há
esforço suficiente para evitar ter estes pensamentos, mas eles voltam. Estou
surpreendentemente calmo. Não tenho orgulho nem vergonha, porque não fiz nada
para estar calmo. Só o estou agora. Agora, na verdade, tenho apenas muito sono
– mesmo se tudo é sorte. Vou desfrutar de uma boa noite de sono e ver o que o
dia de amanhã traz.
Passem a mensagem
Não penso em mim como um homem corajoso.
Sinto-me ousado ao escrever esta história e espero que aqueles que a lêem
tenham a coragem de dizer aos outros, contactem com os representantes do
governo, assinem uma petição ou, pelo menos, falem com um amigo no café sobre o
que está a acontecer no Sudão. Perspectivando esta situação de forma positiva,
a humanidade tem uma oportunidade incrível neste pequeno lugar para aprender
como acabar com a guerra. Os montes Nuba são aproximadamente metade de
Portugal. Nós, os seis mil milhões de pessoas na Terra que vivemos com mais de
um dólar por dia, podemos fazer isso! Temos de descobrir uma maneira de
proteger as pessoas inocentes que só querem as mesmas coisas que todos nós
queremos : liberdade para procurar a felicidade. Os Nubas são, por natureza, um
povo alegre. Tive a sorte de observar a sua rica cultura : cantam e dançam em
cada ocasião. Também testemunhei o heróico estoicismo dos pacientes sorrindo
nas camas dos hospitais, apesar de terem perdido membros, permanecendo durante
semanas em tracção, com membros da família perdidos e tudo o que tinham. O seu
espírito é forte e acabará por superar o sofrimento que lhes está a ser trazido
pela guerra.
Participar na mudança
Restaurar a paz nesta área não vai ser
fácil. Os montes Nuba estão mesmo a norte da nova fronteira entre o Sudão do
Sul e o Sudão, onde o petróleo alimenta ambas as economias. Situa-se entre o
maior deserto do mundo e o maior pântano do mundo, onde afloramentos de rocha e
solo arável pouco fundo permitem que uma escassa população subsista com cabras
e sorgo. A maioria da população vive em cabanas de pedras e canas. Mesmo antes
do conflito actual, a taxa de mortalidade das mulheres durante o parto e as taxas
de mortalidade infantil estavam entre as mais altas do mundo. Malária,
hanseníase e doenças exóticas que os países desenvolvidos erradicaram décadas
atrás são tão comuns como a constipação comum. Há ainda algumas pequenas partes
do mundo que precisam de grandes mudanças. É tão gratificante participar nessa
mudança. Essa alegria é o que me vai levar de volta para os montes Nuba. Sou
médico, não líder mundial. Poucos de nós são líderes comunitários, activistas
políticos ou podem considerar-se com o poder de mudar o resultado de situações
tão complexas e geralmente terríveis como a dos montes Nuba. Se não fizermos
nada, podemos ter a certeza de que não estaremos a ajudar. Na verdade,
estaremos a ferir com a nossa complacência. Se pelo menos tentarmos, então há
uma oportunidade de que a boa vontade cresça.’
Fonte :
* Artigo na íntegra
de http://www.alem-mar.org/cgi-bin/quickregister/scripts/redirect.cgi?redirect=EuEVpklpyyPclgInua
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