terça-feira, 25 de novembro de 2014

Numa trincheira do Sudão

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)
 
 *Artigo de Tom Catena,
Médico nos Montes Nuba, Sudão (África)

Extractos do diário de um médico voluntário no único hospital em toda a região dos montes Nuba, no Sudão. Aqui, as populações são diariamente bombardeadas pela aviação. O testemunho impressionante do dia em que o hospital foi atacado e todo o caos e pânico que gerou.

‘Como se tornará claro se continuar a ler, sou médico, não escritor. Exerço medicina familiar nos EUA. Mas a situação que testemunhei, como médico voluntário há mais de seis anos, nos montes Nuba, no Sudão, obriga-me a escrever e a contar a história do que está a acontecer lá. Desde Maio de 2011, os Nubas estão presos no horror de uma guerra civil entre o Governo do Sudão e o Movimento de Libertação Popular do Sudão-Norte (SPLM-N na sigla em inglês). Os civis são submetidos a bombardeamentos aéreos diários e tem-lhes sido negado o acesso à ajuda humanitária. Incapazes de cultivar a terra por causa dos bombardeamentos, as pessoas estão a morrer de fome, sobrevivendo com insectos e erva, e com risco de morte se se aventuram para fora das suas cavernas em busca de comida e água. Desde 2011, o único hospital em toda a região dos montes Nuba, o Hospital Mother of Mercy, em Guidel, com uma pequena equipa dedicada de profissionais de saúde e educadores, tinha sido poupado aos bombardeamentos – até Julho passado. O que se segue é tirado directamente do meu diário, escrito quando os acontecimentos ainda eram recentes.


2 de Maio de 2014

Ontem de manhã, tinha acabado de dizer ‘o Land Cruiser precisa de ser outra vez arranjado. Hoje não há viagens para a clínica’... Estava a caminhar para o ambulatório para ajudar, quando ouvi um jacto. Não tive medo e olhei, curioso sobre quão perto estaria. Em poucos segundos, estava em cima de nós, as pessoas gritavam, corriam, bradavam instruções : ‘Não corram! Deitem-se no chão!

Lancei-me para o chão e cobri a cabeça quando uma forte explosão veio do lado sul, a área de tuberculose/leprosaria. Vento, areia, poeira. Olhei para cima. Havia pessoas a correr em todas as direcções, já ninguém gritava – ou eu simplesmente já não conseguia ouvir. Vi a farmacêutica correr com determinação, de maneira que comecei a caminhar na sua direcção. Ela tropeçou numa cerca de arame que não vira e caiu numa trincheira muito cheia de gente. Virei-me e vi outro membro da equipa também a correr. Corri atrás dela umas centenas de metros até ao portão da residência do médico e para uma trincheira vazia com cerca de 11 metros de comprimento e quase um metro de profundidade. Esperámos... não muito e de novo um jacto ruidoso, rápido, perto, a voar baixo, cobrimos a cabeça. Segundos, momentos depois, uma explosão ainda mais alta, muito perto, logo atrás das instalações. Esperei, esperei, esperei – cerca de 10 minutos. Ida e volta. É isso. O jacto partiu. Hora de ir para o hospital ajudar as vítimas. Pude ver o médico entrar na ala infantil do lado norte... Não acabou! Num instante, o jacto por cima de nós, espalmado na trincheira mais próxima corpo contra corpo numa fila, mulheres e crianças, uma massa de humanidade trémula. Momentos depois, outra explosão, mais uma vez suficientemente perto para fazer tremer o chão, mas não acertou no hospital. Ninguém se mexeu, as crianças estão serenas, os nossos corações batem em uníssono, tenho a cabeça no lenço da mulher atrás de mim, o cotovelo esquerdo tenho-o debaixo da cabeça da mulher à minha frente, um quebra-cabeças engendrado pela necessidade. Sabíamos que o jacto estaria a dar a volta para regressar. Algumas respirações rápidas e uma eternidade depois, lá vem ele, muito perto, mais perto e mais alto do que antes. Eu morreria num instante, se dermos nas vistas... ou sobrevivo. Não havia nada mais a fazer. Aceitei a realidade e senti uma grande calma. O barulho era ensurdecedor... então, desapareceu rapidamente. Tínhamos sobrevivido.


Refúgio nas rochas e cavernas

O resto do dia de ontem foi gasto a inspeccionar os danos e a limpar. O segundo míssil rebentou 30 metros atrás do pequeno bloco de cimento da residência do médico. O chão era um espesso tapete de folhas arrancadas dos ramos agora nus das árvores mais próximas, a cerca das traseiras está destruída, a dois metros de distância uma profunda cratera de meio metro, estilhaços de metal dos mísseis tiveram força para se cravarem 20 centímetros nas pernadas das árvores. Por incrível que pareça, a única perda de vida foi um bode quando o mesmo jacto atacou a aldeia mais próxima. Nem um único ferimento físico significativo. Psicologicamente, porém, todos, de uma maneira ou de outra, estamos abalados. O resto do dia foi tranquilo. A maioria dos pacientes deixou o hospital. A não ser os paralisados ou em tracção, foram para as rochas e cavernas. O telhado da minha casa ficou danificado. A porta traseira foi arrancada das dobradiças e o interior parecia, bem, ‘como se uma bomba tivesse explodido’.


Apenas uma vítima

À frente de uma cerveja russa morna, durante o jantar, indo e vindo do hospital, todos contavam e recontavam a sua própria experiência, aplaudindo, encorajando-se uns aos outros de que não voltaria a acontecer... Até hoje, 10h00, durante as rondas na ala masculina, ouvimos o ruído baixo e distante de um bombardeiro Antonov a grande altitude. O meu colega disse : ‘Demasiado longe para me preocupar agora.’ Então, rapidamente, quando pudemos perceber e compreender, não, de facto está cada vez mais perto. ‘Leve toda a gente lá para fora!’, depois, ‘Não há tempo! Deitem-se no chão!!!’ De barriga para baixo, olhos fechados, mãos cruzadas atrás da cabeça, as orelhas cobertas pela parte superior do braço – BUM, BUM! O chão tremeu, a poeira voou, muito alto. Meio minuto depois, levantei-me e corri para fora, com detritos ainda a caírem do outro lado do leito seco de um rio a um quilómetro de distância. Reuni a maioria dos homens de idade e uma enfermeira, Anna, que estava a chorar e queria ir para casa com o seu bebé – levámo-la para uma trincheira porque sabíamos que o avião iria fazer um círculo e voltar antes que ela pudesse ir para casa. Ajudei a descer um paciente para a trincheira, paciente que estava de muletas por já ter perdido uma perna quando um Antonov bombardeou a sua aldeia. Mantivemos a cabeça no chão. BUM, BUM! O novo regresso falhou por 500 metros. Esperámos – deu a volta de regresso mais duas vezes – mais quatro bombas – oito no total. Apenas uma vítima. Um homem que procurou abrigo dentro do tronco oco de um embondeiro foi atingido no pé por estilhaços que penetraram 15 centímetros no tronco da árvore.

O segundo dia, uma e outra vez, deixou vítimas psicológicas. ‘Isto é um padrão?’ ‘Será que vão voltar todas as manhãs?’ ‘Será que vêm à noite?’ Não há esforço suficiente para evitar ter estes pensamentos, mas eles voltam. Estou surpreendentemente calmo. Não tenho orgulho nem vergonha, porque não fiz nada para estar calmo. Só o estou agora. Agora, na verdade, tenho apenas muito sono – mesmo se tudo é sorte. Vou desfrutar de uma boa noite de sono e ver o que o dia de amanhã traz.


Passem a mensagem

Não penso em mim como um homem corajoso. Sinto-me ousado ao escrever esta história e espero que aqueles que a lêem tenham a coragem de dizer aos outros, contactem com os representantes do governo, assinem uma petição ou, pelo menos, falem com um amigo no café sobre o que está a acontecer no Sudão. Perspectivando esta situação de forma positiva, a humanidade tem uma oportunidade incrível neste pequeno lugar para aprender como acabar com a guerra. Os montes Nuba são aproximadamente metade de Portugal. Nós, os seis mil milhões de pessoas na Terra que vivemos com mais de um dólar por dia, podemos fazer isso! Temos de descobrir uma maneira de proteger as pessoas inocentes que só querem as mesmas coisas que todos nós queremos : liberdade para procurar a felicidade. Os Nubas são, por natureza, um povo alegre. Tive a sorte de observar a sua rica cultura : cantam e dançam em cada ocasião. Também testemunhei o heróico estoicismo dos pacientes sorrindo nas camas dos hospitais, apesar de terem perdido membros, permanecendo durante semanas em tracção, com membros da família perdidos e tudo o que tinham. O seu espírito é forte e acabará por superar o sofrimento que lhes está a ser trazido pela guerra.


Participar na mudança

Restaurar a paz nesta área não vai ser fácil. Os montes Nuba estão mesmo a norte da nova fronteira entre o Sudão do Sul e o Sudão, onde o petróleo alimenta ambas as economias. Situa-se entre o maior deserto do mundo e o maior pântano do mundo, onde afloramentos de rocha e solo arável pouco fundo permitem que uma escassa população subsista com cabras e sorgo. A maioria da população vive em cabanas de pedras e canas. Mesmo antes do conflito actual, a taxa de mortalidade das mulheres durante o parto e as taxas de mortalidade infantil estavam entre as mais altas do mundo. Malária, hanseníase e doenças exóticas que os países desenvolvidos erradicaram décadas atrás são tão comuns como a constipação comum. Há ainda algumas pequenas partes do mundo que precisam de grandes mudanças. É tão gratificante participar nessa mudança. Essa alegria é o que me vai levar de volta para os montes Nuba. Sou médico, não líder mundial. Poucos de nós são líderes comunitários, activistas políticos ou podem considerar-se com o poder de mudar o resultado de situações tão complexas e geralmente terríveis como a dos montes Nuba. Se não fizermos nada, podemos ter a certeza de que não estaremos a ajudar. Na verdade, estaremos a ferir com a nossa complacência. Se pelo menos tentarmos, então há uma oportunidade de que a boa vontade cresça.’


Fonte :
* Artigo na íntegra de http://www.alem-mar.org/cgi-bin/quickregister/scripts/redirect.cgi?redirect=EuEVpklpyyPclgInua

  

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