quinta-feira, 29 de fevereiro de 2024

Bispo Shomali pede o fim dos combates para alimentar população em Gaza

 Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 
Uma família palestina deslocada de Rafah está abrigada em Deir Al Balah, sul da Faixa de Gaza, 16 de fevereiro de 2024. EPA/MOHAMMED SABER

*Artigo de Marie Duhamel


‘‘Parar a guerra é a maneira mais segura de fazer entrar caminhões com mantimentos em Gaza, então isso é o mais importante.’ O combate à fome é a principal prioridade destacada pelo vigário patriarcal latino para Jerusalém e Palestina, dom William Shomali. Atualmente, 2,2 milhões de palestinos, a grande maioria dos habitantes de Gaza, estão ameaçados de ‘fome em massa’ no enclave, segundo as Nações Unidas. No domingo, 25, centenas de civis que ficaram no Norte decidiram ir ao centro e ao sul de Gaza, movidos pela fome. Um pai declarou à AFP que partiu com a filha de um ano e meio, porque ela não consegue digerir o pão preparado com forragem.

Na cidade de Gaza, a situação dos cristãos, tal como dos outros civis que lá permanecem, é crítica. As centenas de pessoas que se refugiam nas paróquias latinas e ortodoxas sobrevivem como podem. ‘Ouvi hoje que um homem de 30/40 anos fica feliz se recebe um quarto de pão por dia’, relata dom Shomali. Mas apesar da ‘extraordinária’ falta de alimentos, do medo do futuro e da perda de trinta dos seus em combates, mas também de morte natural, a comunidade continua determinada a morrer ‘na sua casa, perto do altar’, conforme as palavras da Irmã Nabila Saleh, religiosa da Congregação do Rosário de Jerusalém, que se encontra no interior da Igreja da Sagrada Família, no bairro Zeitoun.

Do ponto de vista da segurança, é mais seguro permanecer na paróquia, pois pelo menos existe uma moradia de referência. A Igreja os escuta. Quando eventualmente podemos enviar algo, nós o fazemos.

Portanto, do ponto de vista da segurança, é melhor ficar no Norte, a menos, claro, que se possa sair de Gaza, via Rafah, para ir para o Egito. Alguns conseguiram. As pessoas obtiveram um visto para a Austrália um ou dois meses depois da guerra, e puderam partir. Outros que também tinham passaporte estrangeiro, os jordanianos, puderam partir. Mas os outros não têm essa possibilidade e não querem ir para o Sul porque no Sul serão anônimos, não terão moradia, não serão acompanhados. Também é muito difícil viver sozinho no Sul. Não há tendas suficientes para abrigar a todos, tem que dormir ao relento. Então é mais seguro ficar na paróquia.

Então, o que a Irmã Nabila disse é verdade e as pessoas insistem. Quantas vezes os israelenses ordenaram a todos, sem exceção, que evacuassem o Norte? A nossa gente dizia : ‘Nós ficamos aqui, preferimos morrer aqui’. E eles não foram embora. Pela nossa parte, tentamos protegê-los tanto quanto possível por meio da mediação, fazendo recomendações a todos os políticos que nos visitam. Pois bem, houve pressão nesse sentido e há poucos dias, quando foram dadas novas ordens de evacuação, fizemos nossos contatos e os soldados disseram : ‘Ainda não, podem ficar’. Foi a primeira vez que ouvimos este ‘eles podem ficar’.

Dom Shomali, eles permanecem, mas em que estado de espírito? A Quaresma começou em 14 de fevereiro. O senhor conseguiu contatá-los desde então?

A Quaresma começou em 14 de fevereiro, Quarta-feira de Cinzas. Recebemos fotos da celebração realizada na paróquia Latina. Vemos que as pessoas têm um rosto de Quarta-Feira de Cinzas, uma cara tensa, triste, pouco otimista. Isso mudou nos últimos cinco meses. Estas já não são as pessoas que conhecíamos, por exemplo, há um ano, e que eram então bastante otimistas, felizes, sorridentes. Lá eles estavam realmente em pânico, com medo do que iria acontecer. Eles passaram por diversas situações e continuam avançando com medo, pânico, mas também com fome.

O senhor fala de fome. Quais são as suas condições de vida hoje? Concretamente, eles podem se alimentar sozinhos?

No início da guerra, as duas paróquias recuperaram muitos alimentos armazenados nos depósitos que ainda estavam abertos. Muito dinheiro foi enviado para eles e eles puderam comprar nesses depósitos localizados no Norte. Compramos muito arroz, açúcar, farinha. Cozinhamos todos os dias. Agora fazemos isso três vezes por semana, às vezes duas vezes… ou, às vezes, apenas uma vez por semana. E as pessoas têm que se arranjar como podem. Às vezes as pessoas vão para suas casas, quando não foram destruídas, para procurar um pouco de arroz, um pouco de farinha que restou. Então, se ‘vive’. Mas a cada dia a situação fica cada vez mais difícil, porque não existem mais depósitos de alimentos, lojas, pequenas lojas, as grandes lojas. No Norte, há literalmente fome. Ouvi hoje que um homem de 30, 40 anos fica feliz se ganha um quarto de pão por dia, o que não dá para o café da manhã. Ele agradece ao Senhor por ter um quarto de pão. Há uma extraordinária falta de comida.

Já há consequências no fato de as pessoas comerem tão pouco, um pedaço de pão ou um pouco de sardinha todos os dias?

Isso não basta para ter força e imunidade contra doenças. Na paróquia ortodoxa, há pessoas que sofrem de hepatite. Pode vir de água não potável, falta de boa alimentação, falta de higiene. Eles não têm água suficiente para se lavar, nem mesmo para beber. Portanto, podemos prever muitas doenças.

Quando se fala de ajuda, sabe-se que esta chega aos poucos, principalmente através da passagem de Rafah. Esses caminhões ou a ajuda que eles transportam estão chegando ao norte?

No Sul tem esses caminhões que às vezes passam e não chegam. Precisamos de mais de 500 camiões por dia, mas o que chega, segundo as estatísticas, são apenas 100 ou 200 camiões para 2 milhões de pessoas com fome. Realmente, isso não é suficiente. Especialmente porque não são só os alimentos que entram na Faixa de Gaza. Também existem tendas, remédios ou coisas inúteis. Faltam muitas coisas, principalmente comida.

E o que chega ao Sul, não chega ao Norte, por vários motivos. A estrada principal que liga o Norte ao Sul foi bombardeada várias vezes, tornando muito perigoso e até impossível veículos ou camiões transitarem para o Norte. Também é proibido ir de Sul para Norte. Os israelenses estão pressionando os habitantes do Norte  a procurarem refúgio no Sul, mas não a regressarem, porque querem ocupar o norte de Gaza. Portanto, não pode acontecer muita coisa no Norte. Usamos animais, porque as estradas não são transitáveis. E tudo o que consegue passar está no mercado negro e é muito caro, dez vezes mais do que antes. Eu dou um exemplo... na eventualidade – hipótese rara – de se encontrar ovos. Uma caixa de ovos que custa 25 siclos em Belém ou Ramallah custaria hoje 140 siclos no norte de Gaza… Quando é que este tipo de coisas pode acontecer? A farinha custa dez vezes mais hoje do que antes.

Falou da ajuda eventual da Igreja aos cristãos em Gaza. Como você se organiza para poder enviar ajuda a eles?

As nossas orações não deram frutos na paz, nem nas tréguas, nem no cessar-fogo, mas foram realizados atos de solidariedade. A verdade deve ser dita, não só pelos cristãos, mas também por vários países : Egito ou Jordânia. A Jordânia enviou um avião militar para levar toneladas de alimentos aos nossos cristãos no norte de Gaza no dia 24 de dezembro. Houve um lançamento aéreo de duas toneladas de alimentos e remédios de um helicóptero jordaniano. Descobri hoje (semana passada, ndr) que o conteúdo foi uma doação de uma família estadunidense. Muitas doações chegam até nós de igrejas, paróquias, comunidades ou indivíduos que ficam tristes ao ver fotos ou vídeos de Gaza na televisão ou na mídia. Há muita solidariedade e estamos gratos por isso.

Em uma palavra, qual seria na sua opinião a prioridade hoje?

Hoje, a prioridade é o fim da guerra, um cessar-fogo, uma trégua, a troca de reféns e detidos. Tudo isso para trazer muita ajuda. Na verdade, a maneira mais segura de fazer entrar um maior número de caminhões com comida é parar a guerra. Então isso é o mais importante.

Os indivíduos podem agir pressionando os seus governos, para que estes, por sua vez, pressionem o governo de Benjamin Netanyahu para parar a guerra. Você sabe, muitos, muitos israelenses, mais do que podemos imaginar, querem que a guerra acabe. Os soldados enviados para Gaza têm pais, famílias. Os pais dos soldados temem pelos seus filhos. Depois, as colónias do Sul não são hoje habitadas por causa da guerra com o Hamas, e o mesmo se aplica ao Norte por causa da guerra com o Hezbollah. Até a economia israelendo está sofrendo. Mais de 100 mil milhões de shekels foram gastos nesta guerra. E até a boa reputação de Israel foi prejudicada por este conflito em todo o mundo. Portanto, parar a guerra é um imperativo, não apenas palestina ou europeia, mas é também uma exigência de metade da sociedade israelita. Deixemos que quem possa ter influência a exerça para acabar com esta guerra e o mais rápido possível. É isso que queremos para permitir a entrada de ajuda humanitária em maiores quantidades em Gaza. Este é o nosso pedido.

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://www.vaticannews.va/pt/igreja/news/2024-02/bispo-shomali-exige-fim-combates-alimentar-habitantes-gaza.html

terça-feira, 27 de fevereiro de 2024

Das trevas à luz: uma história de redenção de Nápoles

 Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 
O bairro Sanità, no coração de Nápoles, incorpora todos os contrastes da cidade

*Artigo de Cecilia Seppia


No número 109 da Via Santa Maria Antesaecula, no bairro ‘Rione Sanità’, nasceu o artista Totò e em frente à sua casa há sempre grande movimentação de fãs e turistas deixando flores e lembranças. Nas entranhas do bairro mais controverso de Nápoles, alguns metros abaixo do nível da rua, há uma enorme cidade subterrânea onde o sagrado encontra o profano e o Oriente encontra o Ocidente, com as Catacumbas de São Genaro e São Gaudioso e as Catacumbas menores de São Severo. Há também as basílicas de São Genaro Extra Moenia e a de Santa Maria da Saúde, que abriga a primeira representação mariana em Nápoles e obras preciosas, entre as quais pinturas de Luca Giordano, Andrea Vaccaro, Francesco Solimena, Pacecco De Rosa e Giovanni Balducci. Encontra-se também lá o ossuário Fontanelle, uma das pedreiras de onde antigamente se extraía o tufo para construir a cidade e, mais tarde, usado para abrigar os restos mortais das vítimas da peste (1656) e das epidemias de cólera (1836). Por fim, o Palácio dello Spagnuolo, com sua escadaria monumental, um dos principais exemplos do barroco napolitano, construído em 1738 com projeto do arquiteto Ferdinando Sanfelice. Apesar desse vasto patrimônio histórico e artístico, concentrado em apenas 2 quilômetros quadrados, quando as pessoas falam sobre o Rione Sanità, pensam imediatamente em degradação, na pobreza de seus 32.000 habitantes, na mão da Camorra (máfia local) por trás dos atos criminosos, no baixo nível de escolarização dos jovens, no desemprego. Isso acontece porque nenhum lugar incorpora as contradições e os contrastes de Nápoles como este Rione, uma periferia existencial em pleno centro da cidade, mas é exatamente nessas trevas que a Cooperativa La Paranza quis trazer luz, com o apoio da Igreja local, da Diocese e também de fundos europeus.

Da degradação à recuperação de um patrimônio imenso e desconhecido

Já no ano 2000, a chegada do novo pároco da Basílica de Santa Maria della Sanità, Padre Antonio Loffredo, marcou o início de um processo lento, mas frutífero, de desenvolvimento e aprimoramento do patrimônio histórico, artístico e humano do bairro. De fato, com a ajuda de fundações, profissionais e associações, foi possível criar oportunidades de recuperação para os jovens, partindo do princípio de Dostoiévski de que ‘a beleza salva o mundo’, e padre Antonio acrescenta : ‘cria empregos e tira os jovens da rua’. Com a criatividade de um moleque típico local e a determinação de um dirigente, com a linguagem teatral de grandes atores napolitanos e a Igreja do Concílio às suas costas, padre Antonio fez renascer um dos bairros mais problemáticos de Nápoles com a intenção evangélica de ‘transformar pedras descartadas em pedras fundamentais’. Nascido em 1959, em seu terceiro ‘mandato’ como pároco de Santa Maria da Saúde, ele conta que, quando chegou ao Rione, as outras dez igrejas, espalhadas pelo território da paróquia, estavam fechadas. Hoje, porém, as luzes estão acesas até tarde da noite. Uma abriga uma oficina de teatro, outra é a sede da orquestra juvenil Sanitansamble, as outras abrigam um ginásio de boxe, um estúdio musical, uma sede para crianças pós-escola, e a igreja menor exibe pinturas napolitanas do século XVII e O Filho Velado do escultor Jago, que tem sua oficina em outra igreja.

Bem-estar generativo que dá esperança

Em um fluxo contínuo entre o dialeto napolitano, citações eruditas e citações evangélicas, o pároco olha para além, mas tem os pés firmes no chão : ‘Para mim, como sacerdote, o problema não é colocar as igrejas em ordem, mas fazer com que essas coisas preciosas gerem, deem frutos’. E a capacidade de gerar são os mais de 60 jovens que trabalham com um contrato, que se autossustentam sem precisar pedir caridade a ninguém, são também as possibilidades de trabalho e a economia circular que chegou com a abertura do bairro. A base de todos os esforços foi a recuperação das catacumbas de São Genaro, a criação de um itinerário pelas entranhas da colina de Capodimonte até o bairro Sanità, na capela que já foi o depósito do hospital São Genaro e agora é um centro de arte e conferências. ‘Nós nos dedicamos muito à catacumba, porque nos apresentamos ao mundo de uma forma inédita coletando dinheiro limpo. Alguns dos jovens da orquestra se inscreveram no conservatório. Os do teatro saem em turnê, o bairro se tornou o cenário de várias produções cinematográficas, surgiram restaurantes e se estabeleceu um fluxo de turistas. Para nós, cristãos, isso deveria ser um dogma : ou o bem-estar é feito assim ou nada. Não precisamos mais daquele emaranhado assistencialismo do século XIX’, conclui Padre Antonio.

‘La Paranza’ entre cooperativa social e missão

Sua filosofia é clara. Não acredita no absoluto do Estado, que deve alimentar a todos, mas na tríplice colaboração : Estado, privado e sociedade civil, aquele terceiro setor que dá a liberdade de criar respostas, com uma economia real e com o homem no centro. E, nessa abertura de espírito, pode-se ouvir o eco da The Economy of Francesco, da Laudato si', encarnado perfeitamente pelos jovens da Cooperativa La Paranza, fundada em 2006 no ‘Rione Sanità’ que, com a ajuda do Padre Loffredo, decidiu redescobrir e valorizar o patrimônio cultural, artístico e arqueológico dessa parte esquecida de Nápoles. As primeiras atividades realizadas foram a gestão das Catacumbas de São Gaudioso na Basílica de Santa Maria da Saúde e a reforma do antigo convento franciscano anexo à basílica, cujo projeto de restauração da ‘Casa do Monacone’ é do designer napolitano Riccardo Dalisi. Ao mesmo tempo, a cooperativa tem sido ativa na obtenção de financiamentos por meio de fundos privados e licitações. Vencendo a licitação histórico-artística ‘Fondazione Con il Sud’ de 2008 num valor de 500 mil euros, foi desencadeado o processo de recuperação e abertura das Catacumbas de São Genaro ao público. Igualmente importante foi a atividade de arrecadação de fundos no valor de 600 mil euros em conjunto com a associação L'Altra Napoli onlus; financiamento que permitiu a limpeza e a acessibilidade do local, o sistema de iluminação, a restauração de afrescos, a reabertura de espaços inacessíveis, a eliminação de barreiras arquitetônicas e muito mais. Nas catacumbas, além da gestão normal das atividades de visitas guiadas dentro do sítio cultural, os jovens tiveram a intuição de organizar eventos e espetáculos específicos, a fim de dar um maior impulso em termos de comunicação e público-alvo, bem como economicamente. Além disso, eles estão ativamente envolvidos na promoção e na realização do itinerário ‘Il Miglio Sacro’, um percurso de uma milha para descobrir os tesouros do Rione Sanità.

Alguns números

Ano após ano, o número de visitantes tem aumentado cada vez mais : de 5.160 visitantes em 2006 para 160.000 em 2019 e até 200.000 visitantes em 2022, tanto nacionais quanto internacionais, assim como aumentou a conscientização de que é preciso cuidar da Casa Comum, que também é uma arca de tesouros que enriquece os olhos e o coração. O número crescente de visitantes, atividades e volume de negócios também permitiu o aumento de novos recursos humanos na Cooperativa, que passou de 5 jovens em 2006 para 50 funcionários em 2023. De ano para ano, os funcionários são efetivados com contratos por tempo determinado ou como permanentes. Além das atividades relacionadas ao patrimônio histórico e artístico, há projetos de apoio à cultura e suas diversas formas : artes criativas, musicais, teatrais, artesanais, enogastronômicas, etc. A Fundação concentra suas atividades e recursos principalmente para as faixas da população menos protegidas e desfavorecidas, com uma série de atividades que também apoiam projetos de formação e colocação em empregos, de modo a permitir um processo de autodesenvolvimento local.

O testemunho de Vincenzo

Vincenzo Porzio, membro fundador e chefe de comunicações da Cooperativa La Paranza, relatou ao Vatican News e o L'Osservatore Romano com entusiasmo sua experiência, a mudança que viu com seus próprios olhos e o exemplo de compromisso, fortaleza e dedicação que os jovens do Rione demonstraram ao longo dos anos. ‘Primeiro São Francisco de Assis e agora o Papa Francisco’, afirma, ‘nos ensinaram e nos exortam constantemente a cuidar do nosso Planeta e a cuidar das pessoas que o habitam, especialmente as últimas, as frágeis, aquelas que estão esperando por uma mão estendida, e na Laudato si' encontramos muitos aspectos do nosso trabalho que realizamos não apenas com palavras, mas com gestos e compromissos diários. Em particular, cuidamos do que o Papa chama de ‘ecologia da cultura e da vida em comum’, no sentido de comunidade, e assim nos comprometemos, na esteira das exortações contidas nesses textos, a cuidar das ‘pedras descartadas’ para que se tornem ‘pedras fundamentais’ em um sistema de bem-estar que não espera por uma ajuda vinda de cima, do Estado em particular, mas que age para conquistar sua própria dignidade e próprio bem-estar. Em tudo o que fazemos, somos movidos pelo coração, pela paixão, pelo desejo de fazer, de dar a nós mesmos, à nossa terra e às gerações futuras algo ‘limpo’, algo justo. É uma modalidade generativa, que está na base do nosso modo de ver as coisas, porque gera o bem, não visa à rentabilidade dos bens da Igreja, das catacumbas, dos cemitérios, das basílicas que a Igreja nos confiou, dando-nos as chaves desses lugares extraordinários e pouco conhecidos, mas visa à sua capacidade de gerar esperança, o desejo de cuidar, a beleza, e aqui no Rione Sanità de Nápoles precisávamos muito disso!’. Uma valorização que se torna evangelização e que testemunha com suas obras a revolução do Evangelho, que é, antes de tudo, revolução do amor, também para o ambiente em que vivemos. Por meio do extraordinário trabalho de valorização das Catacumbas de Nápoles, a cooperativa de jovens do Rione Sanità criou, ao longo dos anos, um modelo de ‘bem-estar generativo’ capaz de oferecer, a partir da redescoberta do patrimônio cultural local, respostas concretas em termos de desenvolvimento de empregos e inclusão social dirigidas à comunidade local e, especialmente, aos seus jovens que pareciam não ter ideia de um futuro e que, agora, fazem planos, sonham e vivem a normalidade de sua idade em um contexto que é tudo, menos normal. Um modelo que também pode ser definido como um exemplo de promoção da cultura ‘a partir de baixo’, cujos pilares podem ser encontrados na tutela do patrimônio cultural, na cooperação e no desenvolvimento do empreendedorismo social e de uma economia civil, as pedras fundamentais da Laudato si'.’

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://www.vaticannews.va/pt/igreja/news/2024-02/historia-laudato-si-catacumbas-napoles-ecologia-integral.html


domingo, 25 de fevereiro de 2024

Olhar

 Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 
*Artigo do Padre Fernando Domingues,

Missionário Comboniano


‘​O olhar de Jesus deve ter sido fascinante. Dizemos que «os olhos são a janela da alma». Então Jesus, que na alma trazia todo o amor e a força de Deus, certamente olhava para as pessoas com essa mesma força e amor.  O que os evangelhos nos contam sobre o olhar de Jesus é bem diferente do que eu ouvia na catequese antiga, quando a catequista nos mostrava aquela imagem pendurada na parede na sacristia : um olho grande e sempre aberto, dentro de um triângulo, a lembrar que «Deus vê tudo e não há maneira de esconder dele as nossas más acções».

O olhar de Jesus é bem diferente, basta ver alguns exemplos : o seu olhar exprime sempre estima, apreciação. Revela o amor que lhe vai na alma. Como diz o Papa Francisco, comentando o encontro de Jesus com a mulher adúltera (Jo 8,1-11), «Jesus só olha de cima para baixo quando é para dar a mão e ajudar a pessoa a levantar-se».

Muitas vezes o evangelho diz que Jesus «levanta os olhos», como em Jericó, quando passou por baixo da árvore onde Zaqueu se tinha empoleirado para o ver passar : o olhar de Jesus eleva-se com o convite a «descer depressa». Zaqueu deixa de ser um simples espectador que olha de cima para baixo, e desce para fazer da sua casa um lugar de acolhimento e de fraternidade para Jesus e os seus amigos (Lc 19,1-10).

 Em outra ocasião, «uma certa pessoa» – não há nome : cada um de nós pode ver-se ali espelhado – chegou a correr e perguntou a Jesus o que podia fazer para «herdar a vida eterna» (Mc 10, 17-22). Jesus olhou para ele, e, desta vez, o olhar e as palavras de Jesus ofereceram um convite : «Se queres mesmo avançar para a plenitude da vida, vai, vende, dá aos pobres, vem e segue-me.» O olhar de Jesus não te deixa onde estás, aponta caminhos de maior doação e de felicidade.

Com outras duas mulheres, o olhar de Jesus vê os gestos que fazem e ressalta o seu imenso valor. Uma é a viúva pobre que coloca as duas moedinhas no tesouro do templo, em Jerusalém. Onde outros viam só miséria, Jesus levanta os olhos e vê a imensa generosidade : «Ela deu mais do que todos, deu tudo» (Lc 21,1-4). O outro gesto que atrai o olhar de Jesus é o da senhora que lhe «lava os pés com lágrimas, os enxuga com os cabelos e os unge com perfume precioso» (Lc 7,36-50). O fariseu que o tinha convidado olha e vê uma pecadora bem conhecida de todos. Jesus olha e vê a enorme capacidade de carinho de uma pessoa que experimentou o imenso perdão de Deus. Mateus (26, 13) acrescenta que o gesto dela será contado no mundo inteiro, onde quer que se anuncie o Evangelho. Na visão de Jesus, o gesto daquela mulher é o exemplo claro de como o perdão de Deus pode transformar a vida de uma pessoa.

Finalmente, o olhar de Jesus para Pedro, que acabava de o atraiçoar (Lc 22,61). É um olhar de verdade, de perdão, e de força para renovar a vida e o caminho. Leva Pedro a reconhecer a verdade da traição que acaba de fazer ao Mestre; saindo, ele chora amargamente.  Mas é um olhar que transmite também perdão e esperança : Pedro não desespera, arrepende-se, e com a força do perdão que sente no olhar de Jesus, voltará a escutar de novo o chamamento do Mestre que lhe diz «segue-me» e renova o compromisso concreto na missão que lhe tinha sido anunciada : «Farei de vós pescadores de homens.»’

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://www.combonianos.pt/alem-mar/opiniao/4/1140/olhar/ 

sexta-feira, 23 de fevereiro de 2024

As “Madres da Igreja” do século IV

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 
A Catedral Santa Sofia (dedicada à Sabedoria de Deus) na moderna Istambul. As antigas fundações da catedral parecem datar do século IV.

 *Artigo da Irmã Christine Schenk, CSJ

 

‘​O século IV começou com uma dura perseguição contra os cristãos, sobretudo no Oriente. Depois de ter abraçado o Deus cristão e após uma longa luta pelo poder, Constantino tornou-se imperador em 324 D.C.. Nessa época a Igreja ascendeu a níveis de poder e influência terrena sem precedentes, graças ao favor imperial de Constantino, dos seus filhos e da sua mãe, Helena. Os homens da Igreja recebem generosos benefícios de mulheres cristãs aristocráticas, como Olímpia, Melânia a Velha, Melânia a Jovem e Paula. As comunidades cristãs que até então se reuniam em grandes casas passam a encontrar-se em luxuosos locais públicos. Estas mudanças exacerbam as tensões sobre o ministério público das mulheres cristãs.

Como o papel das mulheres na Igreja está mudando

O século IV viu também surgir uma perigosa tendência para assimilar, ainda que simbolicamente, o gênero feminino à heresia, apesar de tanto os homens como as mulheres cristãos estarem envolvidos nas mais diversas interpretações do cristianismo, chegando até a ser definidas como hereges. Mas sobretudo as mulheres correm o risco de serem qualificadas de hereges e suspeitas de impudência quando assumem o papel de mestras. É neste contexto eclesial que as ‘Madres da Igreja’ do século IV vivem e dão testemunho da sua fé. Segue-se uma breve mas significativa cronologia das suas vidas e do modo como elas — e as suas comunidades — exerceram a autoridade eclesial na Igreja primitiva.

Textos escritos por mulheres

A informação literária sobre mulheres do século IV, como Marcela, Paula, Macrina, Melânia a Velha e Olímpia, chega-nos sobretudo através de homens de Igreja eruditos como Jerónimo, Gregório de Nissa, Paládio e João Crisóstomo. Temos dois textos escritos por mulheres : Proba e Egéria. Proba adapta em prosa um centão de Virgílio, muito apreciado em Roma, para contar a história do cristianismo com o objetivo de evangelizar jovens aristocráticas, criando um instrumento culturalmente transversal que influenciará homens e mulheres cristãos durante gerações. Egéria, por seu lado, escreve um diário de viagem para as suas irmãs, ilustrando o seu itinerário pelos lugares santos do Oriente. Durante esta viagem, escreve Egéria, numa certa altura encontra a sua ‘querida amiga, a santa diaconisa Marthana’, que governa um mosteiro duplo perto do santuário de Santa Tecla (na Turquia). Marthana é um exemplo raro de diácono-mulher que exerce autoridade sobre homens e mulheres cristãos.

Embora o nascimento do monaquismo seja frequentemente atribuído a Basílio no Oriente, e a Jeronimo no Ocidente, duas mulheres — Macrina e Marcela — começaram a praticar este estilo de vida cristão muito antes dos homens.

Macrina (327-379) fundou um mosteiro em Anisa, na Ásia Menor, que se tornou o protótipo da regra monástica escrita pelo seu irmão Basílio. Se Basílio é mais tarde chamado o ‘pai do monaquismo’, Macrina é certamente a sua mãe. A sua autoridade como guia espiritual influenciou profundamente os seus irmãos Basílio e Gregório, ambos teólogos, que viriam a elaborar a doutrina da Trindade.

Marcela (325-410) reúne mulheres que estudam as Escrituras e rezam na sua vivenda aristocrática do monte Aventino, 40 anos antes da chegada de Jeronimo a Roma. Quando Jeronimo regressa a Jerusalém, os sacerdotes de Roma consultam Marcela para esclarecer certas passagens dos textos bíblicos. Marcela intervém também nos debates públicos sobre a controvérsia origenista.

Paula Romana (347-404) funda dois mosteiros em Belém : um feminino e outro masculino. Confiou o mosteiro masculino aos monges e foi aí que, graças ao seu apoio, Jeronimo completou a tradução da Bíblia do grego para o latim. Jeronimo diz-nos que os conhecimentos de Paula sobre a língua hebraica excediam os seus.

Melânia a Velha (350-410), consegue que um importante homem da Igreja (Evágrio) retome o seu voto de celibato; ensina e converte muitos homens. É fundamental na resolução de um cisma que envolve 400 monges em Antioquia, ‘conquistando todos os hereges que negam o Espírito Santo’. Financia e cofunda um mosteiro duplo no Monte das Oliveiras, onde as suas comunidades se dedicam ao estudo das Escrituras, à oração e a obras de caridade.

Olímpia (368-408). Ordenada diaconisa em Constantinopla pelo bispo Nectário, Olímpia utilizou a imensa fortuna da sua família para apoiar a Igreja e servir os pobres. Fundou um grande mosteiro perto da Basílica de Santa Sofia, onde três das suas familiares foram também ordenadas diaconisas. Em breve, as mulheres das famílias do Senado romano também se uniram a ela, e o número de monjas aumentou para 250.

Estes são apenas alguns exemplos de mulheres do século IV cujas comunidades são precursoras da vida religiosa atual. O seu testemunho e a sua autoridade eclesial influenciaram fortemente as comunidades cristãs do seu tempo, mas também dos tempos que se seguiram. Numa época em que alguns homens da Igreja proibiam as mulheres de falar ou ensinar publicamente e preferiam que elas ficassem em casa, há provas de que, no século IV , algumas mulheres cristãs exerciam autoridade, falavam sobre questões eclesiais importantes, ensinavam mulheres e homens e davam livremente testemunho do Cristo ao qual tinham escolhido unir-se.’

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://www.vaticannews.va/pt/igreja/news/2024-02/sisters-projeto-historia-vida-consagrada-igreja-primitiva.html

quarta-feira, 21 de fevereiro de 2024

Israel e Hamas: a Via Sacra dos cristãos de Gaza

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 
Gaza: Igreja da Sagrada Família 

*Artigo da Agencia SIR


Evacuar imediatamente os bairros de Zaitun e Turkman da Cidade de Gaza para não se encontrar novamente em meio aos combates. Foi isso que o exército israelense ordenou aos civis que ainda vivem nessas duas áreas da cidade. Quem confirmou a notícia ao Sir foi a irmã Nabila Saleh, deslocada com outros 600 fiéis cristãos na paróquia latina, a única católica da Faixa de Gaza, da Sagrada Família, localizada no bairro de Zaitun. ‘Desde ontem, terça-feira, Israel está bombardeando nosso bairro’, conta a religiosa das Irmãs do Rosário, que dirigem uma escola em Gaza com 1.250 alunos, agora destruída pelos ataques aéreos israelenses.

Deslocado da Paróquia de Gaza

‘Estamos novamente sob as bombas e estão chegando mensagens de Israel pedindo que os civis evacuem a área’. Essa não é a primeira vez que o exército israelense ordena que a população da Cidade de Gaza deixe a área, e todas as vezes os cristãos deslocados que vivem no complexo da paróquia decidiram ficar. É impossível, de fato, deslocar os idosos, os doentes e os deficientes alojados na paróquia e cuidados pelas freiras de Madre Teresa sem colocar em risco a segurança deles. Nos contatos anteriores de Sir com Gaza, os fiéis cristãos sempre disseram que queriam ficar na paróquia : ‘Se tivermos que morrer, preferimos fazê-lo o mais próximo possível de Jesus, perto do altar. Daqui não saímos, esta é a nossa casa e aqui permanecemos’. E desta vez também será assim : ‘ficaremos aqui na paróquia e não nos mudaremos’, confirma Ir. Nabila. ‘O que dói mais do que qualquer outra coisa é que ninguém está fazendo nada para acabar com essa guerra, para dizer aos dois contendentes 'basta'. A comunidade internacional não tem coragem. Enquanto isso, aqui, os civis estão morrendo sob as bombas, de fome e de miséria. O que mais eles querem dessas pobres pessoas?’

Via Sacra

O padre Gabriel Romanelli, pároco de Gaza, de Jerusalém, onde está bloqueado desde 7 de outubro, justamente por causa da guerra e sem poder voltar para junto de seus paroquianos, fala à agência Sir da ‘Via Sacra dos cristãos de Gaza e da população civil que vive lá’. Em contato constante com seu vigário, padre Youssef Asaad, o pároco explica que ‘a situação piora a cada dia, a cada hora, a cada minuto que passa, o número de mortos aumenta’. Hoje, o número de mortos desde o início da guerra é de pelo menos 29.195 e 69.170 feridos, de acordo com o Ministério da Saúde do Hamas. Até mesmo na paróquia, as condições de vida estão se tornando mais difíceis : ‘Nos últimos tempos’, diz o padre Romanelli, ‘a cozinha tem funcionado três dias por semana, com os fiéis tentando encontrar os alimentos necessários como podem. Para fazer pão, era usada farinha não refinada, a única disponível na época’. Um clima que pesa muito sobre os ombros dos 600 cristãos deslocados que estão alojados na paróquia há mais de quatro meses : ‘Eles estão cansados, tristes, perturbados. Não veem nenhum futuro diante de seus olhos, mas, apesar disso, fazem o melhor que podem por aqueles que têm menos do que eles, pelas famílias que vivem perto da paróquia e que são muitas’. Na sexta-feira passada, diz o padre Romanelli, eles celebraram a primeira Via Sacra desta Quaresma de guerra. Tentei me conectar com o padre Youssef para rezarmos juntos’.

‘Em todas as estações, rezamos pelas vítimas desta guerra, pela paz, por aqueles que sofrem, por aqueles que perderam tudo e todos. Por todos esses sofrimentos, Deus nos conceda paz, justiça e dignidade’.

‘Nesta Quaresma’, conclui a Irmã Nabila, ‘vamos compartilhar nossa Via Sacra com Jesus, que foi o primeiro a compartilhar o sofrimento humano. Temos essa confiança n’Ele, que tem a história em Suas mãos, e pedimos o dom da paz. Rezem conosco, por nós e por Gaza’.

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://www.vaticannews.va/pt/igreja/news/2024-02/israel-hamas-via-sacra-dos-cristaos-de-gaza.html

segunda-feira, 19 de fevereiro de 2024

A mulher e a autoridade como representadas nos sarcófagos do séc. IV

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 
Sarcófago do século IV 

(Foto do autor no Museu Pio Cristão no Vaticano. Todos os direitos reservados)

*Artigo da Irmã Christine Schenk, CSJ


Uma vez que a maior parte da história se baseia em documentos produzidos por homens, a procura de dados históricos fiáveis sobre as mulheres no cristianismo primitivo pode tornar-se um verdadeiro desafio. O cristianismo baseia—se fortemente na palavra escrita como principal meio de conhecer a sua história. Como afirma a Dra. Janet Tulloch num artigo publicado em 2004, as informações recolhidas a partir de artefatos visuais, como afrescos, pinturas e frisos em sarcófagos, têm sido até agora confiadas quase exclusivamente a historiadores de arte e arqueólogos. Embora houvesse muitas mulheres mecenas que apoiavam financeiramente os homens da Igreja primitiva (Maria de Magdala, Febe, Lídia, Paula, Olímpia), a sua presença é pouco mencionada nas fontes literárias. No entanto, desde há algum tempo, os estudiosos aperceberam-se de que a arqueologia é uma fonte importante no que respeita à presença das mulheres no cristianismo primitivo.

Documentação escrita versus documentação arqueológica

Durante os primeiros quatro séculos da história cristã (e até à atualidade), os eclesiásticos justificaram a limitação da autoridade das mulheres referindo-se à admoestação da primeira carta de Paulo a Timóteo, segundo a qual as mulheres deviam permanecer em silêncio nas assembleias e não deviam ensinar ou ‘impor a lei aos homens’ (2, 12). No entanto, a arte funerária cristã do final do século III e início do século V retrata mulheres na atitude de ensinar e pregar. Aqui será possível apenas uma breve dissertação sobre este tema fascinante.

Tanto para os romanos cristãos como para os pagãos, o sarcófago não era apenas o contentor de um cadáver, mas um monumento carregado de significado. A arte funerária romana tinha como objetivo tornar visível a identidade da pessoa falecida e comemorar os seus valores e virtudes. Só as pessoas ricas podiam pagar um monumento funerário tão caro; o projeto da representação, ou seja, a forma como queriam ser recordados, era também um processo importante. Ser representado com um pergaminho, uma capsa (recipiente de pergaminho) ou um codex (livro) era um indicador imediato da educação, do status e da riqueza da pessoa falecida.

Tanto os homens como as mulheres cristãs eram recordados e idealizados como pessoas de um certo status, com uma certa autoridade, erudição e devoção religiosa. Se a pessoa falecida era representada com um pergaminho ou capsa e imersa em cenas bíblicas, isso indicava a sua erudição nas Escrituras hebraicas e cristãs.

Durante três anos, analisei 2.119 imagens e descritores de sarcófagos e fragmentos datados do século III até ao início do século V, incluindo todas as imagens disponíveis de sarcófagos cristãos. Uma investigação aprofundada dos motivos iconográficos selecionados revelou que muitas mulheres do cristianismo primitivo eram recordadas como pessoas de um certo status social, influentes e com autoridade nas suas comunidades. Uma descoberta verdadeiramente significativa é o fato de existirem, em comparação com os retratos funerários de homens cristãos, pelo menos três vezes mais retratos de mulheres cristãs, e a probabilidade de estas descobertas se deverem apenas ao acaso é inferior a 1 em 1.000.

Muitos dos relevos dos sarcófagos representam mulheres no meio de cenas bíblicas, no gesto do orador ou segurando pergaminhos ou códices nas mãos. Este é um testemunho efetivo do facto de as mulheres do século IV não aderirem à disposição de permanecerem em silêncio. A sua difusão sugere a emergência de uma nova identidade feminina de erudição bíblica e de autoridade pedagógica. Outra verificação interessante é o fato de os retratos femininos terem o dobro da probabilidade de estarem ladeados por figuras de apóstolos (frequentemente Pedro e Paulo), provavelmente para validar a sua autoridade religiosa.

O que nos diz a arqueologia

A iconografia do cristianismo primitivo diz-nos que as mulheres cristãs eram cultas, piedosas e abastadas. A julgar pelo número de sarcófagos que representam apenas mulheres, isso indica que eram também mulheres solteiras ou viúvas, o que faz lembrar as primeiras comunidades de viúvas ou virgens de que falámos no primeiro artigo desta série. Tendo em conta que muitas delas são representadas com rolos de pergaminho e em atitude de pregação numa cena bíblica, podemos deduzir que eram eruditas nas Escrituras e queriam ser representadas como mulheres que confiavam no poder salvador de Deus e eram especialistas na vida de Jesus e nos seus milagres de cura. As suas comunidades idealizaram-nas como figuras eruditas com autoridade, no mínimo, para proclamar e ensinar as Escrituras.

É plausível que as posteriores ‘madres da Igreja’, como Marcela, Paula, Melânia, a Anciã, e Proba, tenham admirado estes modelos femininos primitivos que as inspiraram a amar e a estudar as Escrituras. As fontes literárias sobre as ‘madres da Igreja’ coincidem com os achados arqueológicos, confirmando o que os estudiosos contemporâneos — incluindo o Papa Bento XVI — já tinham teorizado, nomeadamente que as mulheres tiveram uma influência muito maior no cristianismo primitivo de quanto é geralmente reconhecido. Enquanto na documentação literária são as figuras masculinas que predominam, os retratos funerários no campo da arqueologia mostram, pelo contrário, que as mulheres cristãs são predominantemente recordadas por terem exercido substancialmente a autoridade eclesial nas suas comunidades. E, como veremos, as mulheres que se reuniam em torno das nossas ‘madres da igreja’ evoluíram mais tarde para algumas das nossas primeiras comunidades — intencionais — de religiosas.

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://www.vaticannews.va/pt/igreja/news/2024-02/sisters-project-historia-vida-consagrada-segunda-parte-igreja.html

sábado, 17 de fevereiro de 2024

O Evangelho de Marcos

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 
*Artigo do Padre Antonio Ferreira,CMF


Visando ao conhecimento e ao aprofundamento da Palavra de Deus, o tempo litúrgico foi formado em anos : ‘A’, ‘B’ e ‘C’. No ano ‘A’ é lido o Evangelho de Mateus; no ano ‘B’, o de Marcos; no ano ‘C’, o de Lucas. O Evangelho de João é lido nas solenidades maiores. 

O Evangelho de Marcos é o mais sucinto. Ele trata do discipulado e busca responder à pergunta ‘Quem é Jesus?’. Anuncia a chegada do Reino de Deus. 

Em Marcos 1,14-20, depois do início do Evangelho com João Batista, a vinda do Espírito sobre Jesus no rio Jordão e as tentações no deserto, Marcos conta, em síntese, o início da atividade pública de Jesus. Ele percorreu a região da Galileia pregando a Boa-Nova, que o Reino de Deus começara e a necessária conversão para aceitá-lo na fé e comprometer-se com ele. 

Nas aldeias da Galileia estavam as pessoas mais pobres e deserdadas, privadas do seu direito de usufruir da terra que lhes fora dada por Deus. Aí, como em nenhum outro lugar, Jesus encontrou o Israel mais doente, oprimido e maltratado pelos poderosos. Nas cidades, por outro lado, viviam os detentores do poder com seus vários colaboradores : governantes, grandes proprietários de terras, cobradores de impostos. Não eram eles os representantes do povo de Deus, mas seus opressores, os causadores da miséria e da fome dessas famílias. O Reino de Deus deve começar onde o povo é mais humilhado. Esses pobres, famintos e aflitos eram as ‘ovelhas perdidas’ que melhor representavam todos os oprimidos de Israel. Jesus era muito claro ao afirmar que o Reino de Deus só podia ser anunciado pelo contato direto e próximo com as pessoas mais necessitadas de alívio e de libertação; nelas a semente do Reino encontra ‘terra boa’.

Jesus foi de cidade em cidade e de aldeia em aldeia proclamando e anunciando a Boa-Nova do Reino de Deus. A causa a que Jesus dedicou daí em diante seu tempo, suas forças e toda sua vida é o que Ele chamava de o ‘Reino de Deus’. Foi, sem dúvida, o centro da sua pregação, o que animava toda a sua atividade. Tudo o que Ele disse e fez está ao serviço do Reino de Deus, que é a chave para compreender o sentido que Jesus deu à sua vida e para entender o projeto que Ele quis ver realizado na Galileia, no povo de Israel e, em última análise, em todos os povos. Na Galileia, Jesus não ensinou uma doutrina religiosa para que seus ouvintes a aprendessem bem, mas anunciou um acontecimento para que essas pessoas o recebessem com alegria e fé. O povo encontrou um profeta apaixonado por uma vida mais digna para todos, que procurava com todas as suas forças que Deus fosse amado e que o seu Reino de vida, de justiça, de paz e de misericórdia se difundisse com alegria.

Após a morte de João, Jesus começou a falar uma nova linguagem : o ‘Reino de Deus está próximo’. Não devemos esperar mais, temos de acolhê-lo e, em breve, ele espalhará a sua força salvadora. Essa Boa-Nova deve ser anunciada a todos. O povo deve converter-se, contudo, a conversão não consistirá em preparar-se para um julgamento, mas em ‘entrar no Reino de Deus’ e aceitar o seu perdão salvador. A ideia de julgamento não desaparece em Jesus, mas sua visão muda completamente : Deus vem para todos como salvador, não como juiz. Deus não obriga ninguém, Ele convida. Seu convite pode ser aceito ou rejeitado. 

Cada um decide seu destino. Alguns ouvem o convite, aceitam o Reino de Deus, acolhem-no e deixam-se transformar; outros não ouvem a Boa-Nova, rejeitam o Reino, não entram na dinâmica de Deus e fecham-se à salvação.

A conversão e a fé devem realizar-se no seguimento de Jesus. A vocação dos primeiros discípulos é um exemplo concreto de conversão e de fé e também um ato que mostra o seguimento de Jesus. No tempo de Jesus eram os discípulos que escolhiam o mestre. No caso, porém, é Jesus que chama os pescadores para o seguirem. Além disso, Jesus não os chama para aprender uma doutrina, mas para uni-los à sua pessoa e à sua missão. A iniciativa de Jesus, que chama e cria a decisão de segui-lo, recorda a iniciativa e a autoridade com que o Deus de Israel chamou os seus profetas para desempenharem uma missão especial a favor do povo (cf. 1Rs 19,19-21; 2Rs 2,12-15), missão que nesse caso é a de serem ‘pescadores de homens’, isto é, de reunirem os membros dispersos do povo de Deus. Esse primeiro chamado divino, exemplo de conversão e de fé, pretende ser ao mesmo tempo o modelo de toda vocação cristã. 

Três traços fundamentais caracterizam essa vocação : a) é uma resposta a um chamado anterior; b) não pode haver dúvida a esse respeito; c) a resposta da pessoa implica desprendimento e renúncia, traduzindo-se, sobretudo, num ‘seguimento’. Discípulo, portanto, não é aquele que abandona algo; é aquele que, respondendo decididamente a um chamamento, encontrou alguém e o segue.

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://revistaavemaria.com.br/o-evangelho-de-marcos.html


sexta-feira, 16 de fevereiro de 2024

Um ao lado do outro

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 
*Artigo d0 Padre Manuel Augusto Lopes Ferreira,

missionário comboniano


Há quem, entre nós, fique confundido com algumas expressões com que o Papa Francisco fala da missão cristã hoje. Exemplifico um destes aparentes contrastes. Por um lado, Francisco fala de Igreja em saída, de abrirmos portas e tomarmos iniciativas para testemunharmos com alegria o Evangelho; fala de renovarmos o zelo apostólico, a paixão de evangelizar (a este tema dedicou toda uma série de reflexões, durante as audiências gerais de 2023). Mas, logo a seguir parece pôr água na fervura e põe-nos de sobreaviso : diz-nos que não devemos ter a preocupação de fazer discípulos (prosélitos), que a Igreja e a missão não crescem por proselitismo, mas por atração.

Naturalmente, o papa usa de algum contraste no seu vocabulário para nos ajudar a refletir e ver onde nos encontramos, a verificar o nosso vocabulário e sobretudo as nossas atitudes. Ele pretende ajudar-nos a perceber que estamos não só numa época de mudanças sérias, mas numa vertiginosa mudança de época. O mundo globalizado e as culturas a chocar entre si, estão secularizados e não podemos ter como seguro o interesse pelo Evangelho ou pretender configurá-los a partir da Verdade que testemunhamos. Por isso, ele insiste na alegria e na humildade desinteressadas, na presença e no diálogo, na fraternidade e na amizade social, nas atitudes de respeito para com as pessoas e as suas culturas, para com a Natureza e o cosmos, a casa que habitamos em comum.

Neste aspecto e por isso, estamos todos à procura do modelo de missão mais a condizer com o tempo que vivemos, na fidelidade, cada vez mais genuína, ao mistério e à natureza da Igreja e da missão, que nos superam. Num passado, ainda recente, falámos de uma missão ad gentes, ou seja, às gentes (por vezes com tons de conquista de povos e culturas); depois, passámos a falar de uma missão inter gentes, isto é, entre as gentes, os povos e as suas culturas, acentuando as atitudes de inculturação e de respeito para com os mesmos.

Os termos que o Papa Francisco tem vindo a usar extremam esta evolução de vocabulário e atitudes que definem a missão e levam alguns pensadores a falar de missão «um ao lado do outro». Jesus, efetivamente, deixou aos seus discípulos o mandato missionário de ir pelo mundo inteiro e anunciar o Evangelho fazendo discípulos; mas também lhes disse «vós sois o sal da terra ... vós sois a luz do mundo», como que a indicar uma missão de dar sabor à vida e iluminar de sentido a realidade humana, e não de configurar um reino humano pelo uso de um qualquer poder. Trata-se sempre de ser uma Igreja minoritária que vive o mistério transformante de ser sal e luz.

O despertar para esta situação leva-nos a pensar, a viver e a falar de uma missão exposta à debilidade e à força do Espírito de Cristo, em que os cristãos e os missionários saibam ser «fortes, sem ser poderosos, verdadeiros sem ser fanáticos»; saibam «cultivar o sentido de beleza sem ser esteticistas, afirmar a retidão sem ser moralistas»; em que todos saibamos «ser nós próprios mas não sem os outros ou contra os outros» (citações de uma entrevista do beneditino P.e Elmar Salmann ao L’ Osservatore Romano). Não podemos ser nós próprios sem os outros, pela simples e misteriosa razão que Deus (também) os ama em Cristo, como não se cansa de nos recordar o Papa Francisco.’

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://www.combonianos.pt/alem-mar/opiniao/4/1134/um-ao-lado-do-outro/

terça-feira, 13 de fevereiro de 2024

Teologia e Espiritualidade da Quaresma

 Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB) 

Para bem compreender o sentido espiritual e teológico da Quaresma é sempre necessário partir do grande mistério pascal

*Artigo publicado pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia


Com efeito, a Quaresma é o início da celebração do ‘Grande Sacramento Pascal’. Foi o Papa Leão Magno quem o indicou sugestivamente como Magnum Paschale Sacramentum, ele que foi definido como o grande doutor do Mistério Pascal. Por seu significado e eficácia espiritual, a Santa Páscoa é a solenidade que ultrapassa todas as outras do ano litúrgico. Seu objetivo, de fato, não diz respeito apenas a um aspecto ou momento limitado do grande plano da salvação divina, mas o abrange em sua plenitude. Por isso, na grande vigília do Sábado Santo, a liturgia escolheu, entre as páginas da Bíblia, as leituras que recordam e celebram : a criação do mundo; a eleição e as promessas a Abraão; a criação do povo de Israel; as profecias; os ritos do sacerdócio judaico. Esses elementos e fatos constituíram a preparação remota e imediata do grande acontecimento da nossa salvação, que se deu com : a encarnação, o nascimento, a paixão, a morte e a ressurreição do Filho de Deus, Jesus Cristo.

 A preparação para a Páscoa

A Páscoa expressa a plenitude de toda a ação salvífica. É por isso que a cada ano se realiza uma renovação que santifica e purifica a Igreja mais do que todas as outras celebrações do ano cristão. Por isso, a Páscoa exige uma preparação espiritual e ascética especial, maior do que a que se dedica a qualquer outra festa ou solenidade. Por sua vez, a celebração espiritual da Quaresma visa preparar, nos fiéis e em toda a comunidade eclesial, a atitude que lhes permita celebrar e receber, em toda a sua plenitude, a graça do sacramento pascal (Paschale sacramentum).

Além do Papa Leão Magno, também Santo Agostinho, em seu comentário ao Salmo 148, contempla em termos muito profundos o mistério da Páscoa e a preparação espiritual para ela (Quaresma). A Quaresma descreve a história da nossa vocação cristã em duas fases. A primeira fase diz respeito sobretudo ao presente, isto é, à nossa vida terrena, sujeita a todas as dificuldades, tentações e tribulações. A segunda fase diz respeito sobretudo a nossa vida futura que passaremos na eternidade, na casa do Pai, em seu reino de glória e felicidade que nunca terá fim. A Igreja, na sua fé, estabeleceu dois tempos para poder celebrar a Páscoa, um antes e um depois.

O tempo que antecede a Páscoa é a Quaresma, que representa o caminho de nossa vida terrena, com suas sombras cotidianas, os riscos, os perigos, as adversidades, os esforços, os fracassos e os sacrifícios. É um tempo de conversão, arrependimento, luta contra o mal e esperança do bem maior. Nele pedimos o perdão por meio de esmolajejum e oração. O tempo após a Páscoa nos presenteia com o que agora possuímos apenas em parte e na fé, mas que viveremos plenamente no final das provações e tribulações da vida presente.

Então, iremos bendizer e glorificar para sempre, com louvor, agradecimento, exultação e aleluia o Senhor Vitorioso e Ressuscitado. A paixão e a morte de Cristo representam nossa vida presente. Sua gloriosa e luminosa Ressurreição representa aquela vida que já possuímos parcialmente e que será para sempre plenitude de bem-aventurança, luz, paz e glória divina.

Quaresma é o ‘sinal sacramental’ da conversão contínua a que todo cristão é chamado para que alcance o ‘estado de adultos, à estatura do Cristo em sua plenitude’ (Ef 4,13).

Uma vez convertidos, devemos nos converter novamente. A conversão se expressa desde o início com uma fé total e radical que não coloca limites nem obstáculos ao dom de Deus. Ao mesmo tempo, porém, determina um processo dinâmico e permanente que dura toda a vida, exigindo uma passagem contínua da vida segundo a carne e da vida segundo o Espírito.

Devemos estar cientes da precariedade da vida nova em nós, sempre necessitada de uma ajuda especial de Deus. Esta humilde consciência constitui o fundamento permanente do nosso caminho : o primeiro passo é a humildade; o segundo passo ainda é humildade; o terceiro permanece a humildade; e quanto mais que você peça, darei sempre a mesma resposta : a humildade. Devemos ainda nos considerar longe da meta e progredir em direção a ela. ‘Enfim, irmãos, alegrai-vos, procurai a perfeição, encorajai-vos, tende um mesmo pensar, viver em paz’ (2Cor 13,11). A caridade quer crescer. Quem renuncia deliberadamente ao progresso não tem caridade; ainda é escravo do pecado. O progresso consiste então em tentar evitar todo o pecado e em fazer o bem com motivações cada vez mais puras.

Na antiga Quaresma, a Igreja vivia e acompanhava dois caminhos paralelos :

  • O caminho de iniciação para os catecúmenos, com suas etapas de escrutínios, exorcismos, entrega do Credo e do Pai Nosso. Tinha como meta litúrgica a noite pascal, com a celebração dos três sacramentos da iniciação cristã : BATISMO, CONFIRMAÇÃO, EUCARISTIA. Com a reforma litúrgica, desejada pelo Vaticano II, todos nós revivemos este caminho, no ano litúrgico A, com os trechos do Evangelho que apresentam os relatos da Samaritana, do cego de nascença e da ressurreição de Lázaro;
  • O caminho de conversão para os penitentes, que tinha início na quarta-feira ‘capite quadrigesimae’, com a imposição das cinzas e do cilício, tinha como meta litúrgica a Quinta-feira Santa, com o rito da RECONCILIAÇÃO presidido pelo Bispo. Em algumas comunidades se fazia o ‘lava-pés’, segundo a leitura de Jo 13,10 : ‘Quem tomou banho (batismo), não precisa lavar senão os pés (reconciliação), pois está limpo’. Revivemos este caminho liturgicamente no ano C, com as passagens do Evangelho do Filho Pródigo e da mulher adúltera.

Depois, há o caminho da Cruz, que diz respeito a todos os discípulos e tem como mata litúrgica a Sexta-Feira Santa. É explorado por nós no ano litúrgico B com os símbolos da serpente de bronze e do grão de trigo que morre.

No caminho quaresmal dos CATECÚMENOS e dos PENITENTES (anos A e C), está envolvida toda a IGREJA, mãe que gera ou regenera seus filhos ‘não sem dor’ (ano B).

 As leituras da Quaresma

Três itinerários podem ser vislumbrados :

  • uma Quaresma batismal (ano A);
  • uma Quaresma Cristocêntrica (ano B);
  • uma Quaresma penitencial (ano C).

O ciclo A (aquele com o caráter batismal mais forte) pode ser seguido todos os anos de acordo com as necessidades pastorais de cada comunidade.

Obras quaresmais :

  • Oração, para uma adequada relação com DEUS.
  • Esmola, para uma justa relação com o PRÓXIMO.
  • Jejum, para uma correta relação COSIGO MESMO. Jejuamos para dar esmolas e assim tornar a oração aceitável e eficaz.

A experiência em outras tradições

O Islã adquiriu uma realidade semelhante à nossa Quaresma : é o mês de RAMADAN, com jejum diurno, como um rito coletivo da comunidade muçulmana. Neste mês, as orações são duplicadas. Lembrando que só o Senhor é o Provedor, participamos da fome e da sede dos pobres.

O Judaísmo conhece um período particular de purificação : são os 10 dias que vão do Ano Novo Judaico ao Dia da Expiação (Kippur).

Simbolismo Bíblico da Quaresma

40 dias (que na verdade são 46, dos quais 6 domingos são retirados como pascoas semanais) de dilúvio (Gn 7,4); de Moisés no Sinai, após o pecado do Povo, (Ex 34,28); de Elias no deserto (1 Reis 19,8); de Jonas em Nínive, (Gn 3,4); de Jesus no deserto das tentações, (Mt 4,1-11). Este período refere-se aos 40 anos do Êxodo, no DESERTO.

‘A Igreja se une, a cada ano, durante os quarenta dias da grande Quaresma, ao mistério de Jesus no deserto’ (CIC 540).

Por isso, o cristão é chamado a participar da escolha fundamental de Jesus. Com as promessas batismais, se compromete a rejeitar as mesmas tentações de bem-estar, sucesso e do poder (cf. Mt 4,1-11). A Igreja o recorda todos os anos com a celebração da Quaresma. É um caminho de essencialidade, em que a adesão a Deus nasce das opções de sacrifício.

A Quaresma deve ser para o cristão o que foi para o seu Senhor : um DESERTO em que ressoa a PALAVRA que purifica e motiva a ascese, que nos ilumina e nos abre à mística.

O Espírito Santo, que conduziu Jesus ao deserto (Lc 4,1), guia a Igreja neste período litúrgico, para que todos os seus filhos, com a Páscoa de Cristo, celebrem também o seu renascimento e a sua plena assimilação ao Ressuscitado.

Esta ação purificadora do Espírito é sinergia que supõe nosso envolvimento ativo na ASCESE, em todos os seus vários aspectos de :

  • abnegação, que é renúncia aos nossos egoísmos;
  • mortificação, como nossa participação na morte de Cristo, fazendo morrer em nós o que pertence ao velho;
  • jejum de tudo o que é supérfluo e nos condiciona;
  • silêncio interior e exterior, para dar lugar à Palavra;
  • humildade, que é a verdade do nosso ser : somos feitos de barro (húmus).

Colaborando assim com o Espírito Santo, criaremos em nós aquele DESERTO em que Deus poderá falar aos nossos corações (Os 2,16-25), para educar-nos ao Absoluto, despojando-nos dos nossos ídolos (Dt 32,10-12).

Assim, o ‘deserto’ de lugar de tentação se tornará o lugar de nosso compromisso com Deus (Jr 2, 2). Se quisermos, nossa cidade também pode ser o ‘deserto’ onde Deus nos encontra (Deus habita na cidade). ‘Magna civitas, magna solitudo’ já dizia Bacon.’

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https ://faculdadejesuita.edu.br/teologia-e-espiritualidade-da-quaresma/