Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)
jornalista e mestre em História da Igreja, uma das
poucas brasileiras
credenciadas como vaticanista junto à Sala de Imprensa
da Santa Sé
‘Padre
Agenor Brighenti é um dos membros da comissão teológica do Sínodo da
Sinodalidade, sendo o único brasileiro a integrar a lista. Teólogo de renome,
foi perito teológico das conferências de Santo Domingo (1992) e Aparecida
(2007). Doutor em teologia pela Universidade de Louvain (Bélgica), atua como
professor do Instituto Teológico de Santa Catarina e da Universidade Pontifícia
do México.
No
sínodo, cuja conclusão está marcada para 2023, ele foca sua reflexão teológica
a partir de uma perspectiva pastoral e social. Autor de vários livros sobre a
temática, também lançou, recentemente, um estudo sobre o novo perfil do clero,
fruto de um trabalho de campo que contou com a participação de teólogos e
cientistas sociais. O pesquisador identifica uma tendência, em relação ao clero
brasileiro, de ‘um deslocamento do profético para o terapêutico e do ético
para o estético na esfera da experiência religiosa’, alinhando-se à visão
de ‘clericalismo’, pontuada pelo Papa Francisco.
Durante
o colóquio, concedido gentilmente ao Dom Total, o estudioso explicou a proposta
da atual assembleia e quais avanços ela propõe.
Dom
Total : Por que convocar um sínodo sobre a sinodalidade?
Pe.
Agenor Brighenti : Porque a sinodalidade, embora tenha sido
resgatada pelo Vaticano II, é uma questão pendente. Tivemos nas três décadas
que precederam o atual pontificado um processo de involução eclesial, em
relação à renovação do Vaticano II. O concílio colocou as bases de um exercício
da sinodalidade, num sentido mais profundo, com a eclesiologia do povo de Deus,
mas desenvolveu sobretudo a questão da colegialidade episcopal, Christus
Dominus, etc. Não houve tempo para situar a colegialidade episcopal no seio da
sinodalidade eclesial. E isso ficou uma tarefa pendente na recepção do
concílio. A Igreja na América Latina, a partir de Medellín, deu passos
substanciosos nessa perspectiva. E avançou muito na recepção do Concílio
Vaticano II, sobretudo na concepção da eclesiogênese. A Igreja, que por ser
comunhão e comunidade, precisa alicerçar-se sobre a experiência concreta de
comunidade, das comunidades eclesiais de base. E as comunidades eclesiais de
base Medellín chama de ‘células iniciais de estruturação eclesial’.
Sendo assim, podemos dizer que a definição das CEB’s é a definição de
sinodalidade. As pequenas comunidades são a célula inicial da sinodalidade
eclesial. Se não há exercício concreto da igreja-comunhão/igreja-comunidade,
não há sinodalidade. E é por isso que esse sínodo é celebrado de baixo para
cima, a partir da igreja local e de suas comunidades, para depois ir ascendendo
aos demais âmbitos eclesiais; ou seja : sempre a partir de experiências reais,
porque a fé cristã e eclesial e deve estar alicerçada na interação das pessoas
com Deus e de Deus com as pessoas. Não há igreja se não há exercício concreto
da comunhão no seio das igrejas locais.
Dom
Total : O Papa, quando criou a comissão teológica do sínodo, resolveu contar
com muitos estudiosos latino-americanos, como no caso do senhor, do Rafael
Luciani, entre outros. É um sinal que o pontífice atual reconhece que a igreja
latino-americana tem muito a contribuir com esse processo?
Pe.
Agenor Brighenti : Às vezes, na Europa, se fala de ‘sinodalidade
made in America Latina’. Porque a América Latina tem uma tradição longa de
exercício da sinodalidade eclesial. Primeiro, a partir da sinodalidade entre os
bispos, da colegialidade episcopal. O Concílio Episcopal Latino-Americano,
depois a Conferência do Rio de Janeiro, Medellín, Puebla, Santo Domingo e
Aparecida. Então, é um caminhar de longa data. Começou com a Ação Católica,
inclusive. Os bispos se reuniram no país e no Continente em torno das questões
levantadas pela Ação Católica, as quais desembocaram na renovação do Concílio
Vaticano II. Mas o mais significativo na América Latina tem sido justamente o
caminhar da Igreja a partir do que Puebla conceitua como comunhão e
participação. A partir das experiências concretas e dos processos eclesiais
alicerçados nas comunidades eclesiais inseridas profeticamente na sociedade. É
uma longa tradição, difícil e conflitiva tanto a nível interno quanto externo.
Também do ponto de vista político houve muitos problemas porque esta sempre foi
uma igreja profética e transformadora. Havia o medo que surgisse uma igreja
popular, sem o magistério, sem autoridade da Igreja, porque estávamos diante de
duas eclesiologias bastante distintas. A Igreja pré-conciliar, concebida como
uma sociedade perfeita, que se confunde somente com a hierarquia, e o Concílio
Vaticano II, que coloca na base da experiência eclesial o batismo. Como diz o
Papa Francisco na Querida Amazônia, na Igreja existe e deve ser implementada,
cada vez mais, uma cultura eclesial fundamentalmente laical. Porque é do
batismo que derivam todos os ministérios, inclusive os ministérios ordenados. E
o mais importante, a meu ver, que tem ocorrido na América Latina, é uma
intensificação desse movimento sinodal. Primeiro pelo Sínodo da Amazônia, que
foi já um sínodo bastante parecido com o atual, porque também foi um sínodo
celebrado debaixo para cima. Com o envolvimento das 120 dioceses da região, a
partir da participação direta de 70 mil pessoas, e da qual participaram não
somente bispos, mas todos os segmentos do povo de Deus, de modo particular o
laicado e as mulheres que foram muito protagonistas desse Sínodo da Amazônia.
Tudo isso resultou na formação da CEAMA (Conferência Eclesial da Amazônia), um
organismo que aglutina toda a igreja da região, e não se trata de um organismo
episcopal, mas eclesial. E isso inspirou o Papa Francisco a não celebrar uma VI
Conferência Episcopal Latino-Americana, mas a fazer em vez disso, a primeira
Assembleia Eclesial, que teve como objetivo central recordar Aparecida, resgatando
o Vaticano II e a tradição eclesial latino-americana. Esses dois acontecimentos
influenciaram o perfil do atual Sínodo dos Bispos, que agora deixou de ser um 'Sínodo
dos bispos’, para se tornar um ‘Sínodo da Igreja’. A Igreja inteira,
desde as igrejas locais, é convocada a fazer da sinodalidade o centro do modo
de ser e de agir da Igreja, seu modus vivendi e seu modus operandi.
Dom
Total : Instaurar uma igreja mais sinodal é o programa de governo do Papa
Francisco. Vemos isso desde a Evangelii Gaudium, o documento que mostrou, já em
2013, que ele caminhava nessa direção…
Pe.
Agenor Brighenti : O Karl Rahner, que foi um dos pilares da
reflexão teológica do Vaticano II, diz que a principal mudança do concílio foi
resgatar a catolicidade da igreja presente em cada igreja local. Em cada
diocese está a igreja toda, ainda que não seja toda a igreja, porque a igreja é
uma comunhão de Igrejas. Isso significa que a igreja de Roma é uma das igrejas
que pertence a essa comunhão de igrejas. Claro, ela não é mais uma porque
preside a comunhão e a unidade entre essa diversidade de igrejas.
Consequentemente, o bispo de Roma é situado dentro do colégio episcopal e é um primus
inter paris, um primeiro entre outros. E isso ficou muito evidente no
Sínodo da Amazônia quando o Papa votou juntamente com a assembleia. No Concílio
Vaticano II, não deixaram o Papa ser membro da assembleia, ele foi uma espécie
de moderador sobre a assembleia. No sínodo agora, da Igreja, o Papa Francisco
tem se situado como um membro da igreja, como bispo de Roma. E é nessa condição
que ele preside a unidade das Igrejas. Com isso, o pontífice está colocando em
prática essa eclesiologia do primeiro milênio da Igreja. Foi no segundo milênio
que perdemos o exercício da sinodalidade. No primeiro milênio, a Igreja foi
regida pelos sínodos diocesanos, os concílios regionais, provinciais e
ecumênicos. Os próprios ministérios da Igreja não eram ministérios monárquicos.
A Igreja, durante séculos, teve uma equipe de bispos à frente das igrejas
locais, bem como uma equipe de presbíteros e diáconos, dos diversos ministérios
que surgiram na Igreja. Então, esse exercício sinodal no primeiro milênio se
perdeu no segundo. E o Concílio Vaticano II, num retorno às suas fontes
bíblicas e patrísticas, resgata esse perfil da Igreja que nunca deveria ter
saído de cena. Ainda sofremos muito as consequências de um milênio de uma
igreja hierárquica, com relações verticais, instituições rígidas e
centralizadoras, com uma concentração do poder na Cúria Romana, a partir do século
XVI. E o Papa Francisco, desmontando aquela figura imperial do papa, e também
já resgatou a função da Cúria romana, que não é um organismo de controle, nem
uma estrutura intermediária entre o papa e as conferências episcopais, mas uma
instância de apoio, de serviço às conferências episcopais nacionais. Portanto,
estamos colocando em prática um poder na Igreja que é um poder de serviço, não
um poder centralizador, potestas, que gera dependência, mas um poder que
gera autonomia. Se não há autonomia, não há responsabilidade. E na Igreja somos
todos corresponsáveis pelo batismo E o sínodo quer implementar essa
eclesiologia da primeira hora da igreja. Não é invenção do Vaticano II, mas um
retorno às fontes bíblicas e patrísticas.
Dom
Total : Sabemos que, em âmbito oriental, o sínodo é um organismo de governo.
Diferente do catolicismo ocidental, onde ele é um órgão consultivo. Será que há
a possibilidade que, um dia, também em âmbito ocidental, o sínodo se torne um
espaço de decisão como acontece no cristianismo oriental?
Pe.
Agenor Brighenti : O Sínodo dos bispos nasceu com essa
vocação, com essa finalidade. Inclusive o Papa João 23 acreditava piamente que,
com o Concílio Vaticano II, chegar-se-ia à plena unidade com a igreja oriental.
Porque tudo o que a igreja oriental pede, na verdade, é um exercício diferente
do primado. Na Igreja Primitiva, que foi regida pelos cinco patriarcados, o
Bispo de Roma era um dos patriarcas, uma das instâncias que evocavam a unidade
das igrejas, Então, um sínodo universal - ou um concílio universal - é
expressão dessa unidade das igrejas. E no caso do Oriente, o sínodo tem uma
função de gerenciamento, de administração das igrejas, uma instância não só
consultiva, mas deliberativa, decisória. E o Sínodo dos bispos nasceu com essa
vocação. Não está proposta do sínodo, que nasceu no Vaticano II, que ele
deveria ser consultivo. Tanto que o cardeal Aloísio Lorscheider, num dos
últimos sínodos que ele participou, disse, à imprensa, de maneira muito
contundente, que ‘o sínodo dos bispos nasceu para ser deliberativo, passou a
funcionar como consultivo, e não passava de decorativo’. E o Papa Francisco
está caminhando para fazer do sínodo uma instância deliberativa. No Sínodo da
Amazônia, por exemplo, houve votação de todas as matérias e, pela primeira vez,
foi produzido um documento final votado pela assembleia. Ele é um documento
oficial do Sínodo da Amazônia. Tanto que se está trabalhando, depois do sínodo,
em diversas comissões, implementando as decisões do sínodo da Amazônia, e
muitas delas vêm do documento final. Então se assumiu o documento final como um
documento oficial do sínodo. Isso, de alguma maneira, é já torná-lo
deliberativo. Segmentos da Cúria Romana tiveram dificuldade de acolher essa
novidade. [...] Nesse sentido, esse atual sínodo certamente vai promover um
aperfeiçoamento desse organismo para que ele possa cada vez mais ser expressão
de uma instância não simplesmente consultiva, mas deliberativa, de modo que
essa seja a extensão do primado, do governo da unidade das igrejas que o papa
exerce por meio de seu ministério petrino.
Dom
Total : A respeito dessa mudança de ‘Sínodo dos bispos’ para ‘Sínodo da Igreja’.
O que a gente pode esperar? Mais leigos convocados para os sínodos? Como ficam
os padres sinodais nessa história? Teremos, dessa forma, ‘leigos sinodais’ com
poder de voto? É essa a expectativa?
Pe.
Agenor Brighenti : Já para esse sínodo de agora, sobre a
sinodalidade, vai participar por ofício uma mulher, que está ligada a um
dicastério da Cúria Romana, numa função que, historicamente dá a ela poder de
voto (Irmã Nathalie Becquart). E não haverá nenhum empecilho para que ela, de
fato, exerça sua função e tenha direito de voto, agora, no sínodo da
sinodalidade. É a porta aberta para que haja uma efetiva participação dos leigos
e leigas, religiosos e religiosas, não somente dos ordenados. Uma efetiva
participação no processo de escuta, discernimento e de tomada de decisão. Não
há exercício da sinodalidade, em sentido pleno na Igreja, no sensus fidelium,
se os leigos e leigas não tiverem a prerrogativa de poder votar, porque isso é
um reconhecimento àquilo que diz o Concílio Vaticano II, de que há uma radical
igualdade e dignidade em todos os ministérios. E os ministros ordenados se
assentam sobre o batismo, que é a base laical da igreja. Então, certamente, a
Episcopalis Communio, essa constituição que já reformou o sínodo dos bispos, e
certamente haverá um outro texto mais sintonizado com a reforma da Cúria
Romana, que também vai repensar a figura do sínodo talvez a partir da prática
atual, sendo celebrado sempre de baixo para cima. Começando pelas igrejas
locais, depois indo para o âmbito nacional, continental e universal. Dessa
forma a perspectiva é que não somente os ditos ‘padres sinodais’ votem,
mas também os membros das assembleias nos mais diversos âmbitos eclesiais, de
modo que possam ser escutados, discernir e decidir de acordo com aquilo que
aconteceu no primeiro milênio da Igreja. Havia aquela máxima, nos primórdios : ‘O
que concerne a todos deve ser discernido e decidido por todos’. E o
documento preparatório do atual sínodo retoma esse princípio. Certamente, a
tendência é fazer disso uma prerrogativa jurídica, porque se essas práticas não
se tornam decisões jurídicas, se não se tornam reforma das estruturas da
Igreja, aí não muda nada. Existe mudança, realmente, quando muda a estrutura.
E, nesse particular, há uma distância que precisa ser corrigida e adaptada à
nova teologia que está agora sendo implementada, que é a teologia da Igreja, a
teologia da primeira hora do cristianismo.
Dom
Total : Inclusive muitos historiadores atribuem as várias crises que ocorreram
no segundo milênio da história da igreja à crise da própria sinodalidade.
Então, a gente demonstrou, olhando para a História da Igreja, que quanto menos
sinodalidade, mais clericalismo. É isso?
Pe.
Agenor Brighenti : Sem dúvida, porque, no segundo milênio,
a eclesiologia que vai se estabelecer é aquilo que o Padre Yves Congar diz como
é uma ‘hierarquiologia’, reduzindo a Igreja à hierarquia. Tanto que a
eclesiologia pré-conciliar dizia com todas as letras (Mystici Corporis Christi)
: o clero é o polo ativo, fonte de toda a iniciativa e de todo o poder,
enquanto que os leigos são o polo passivo : a quem cabe obedecer docilmente ao
clero. A Igreja, então, de acordo com essa visão, é composta por dois gêneros
de cristãos : clero e leigos. E o concílio tem outra eclesiologia, resgatando
as fontes, ou seja, há um único gênero de cristãos, que são os batizados.
Portanto, não é o binômio ‘clero e leigos’ : isso não é a Igreja de Jesus
Cristo. O binômio é comunidade e ministérios. Uma comunidade toda ela
ministerial. Isso é o cristianismo. Então, evidente que historicamente essa
eclesiologia do corpo místico de Cristo, vista como comunidade perfeita, perdeu
de vista essa característica de todo o primeiro milênio e por circunstâncias
diversas. E isso muito mais por influência de poderes temporais, por ligação a
certas instâncias político-econômico-sociais, que por fruto de discernimentos e
decisões do ponto de vista teológico. Então foram, às vezes, influência de um
poder temporal que é copiado, e entra na igreja de maneira desavisada, para
depois receber um sentido teológico. Quando, na realidade, é muito daquilo que
o Papa Francisco fala : mundanismo. Esse mundanismo, com critérios pouco
evangélicos, que pautam estruturas e realidades da Igreja. Por isso, é
necessária uma conversão pastoral da Igreja, e que tudo esteja pautado como a
constituição de reforma da Cúria Romana coloca : que tudo seja pautado pela
evangelização. Esse é o objetivo, para isso que a Igreja existe. Tudo deve
estar em função disso : as iniciativas, as estruturas, para que de fato
sobressaia uma igreja povo de Deus, composta por todos os batizados e orientada
pelo sensus fidelium.’
Fonte : *Artigo na íntegra