quarta-feira, 29 de junho de 2022

'O sínodo pode se tornar um órgão deliberativo', diz teólogo

 Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 

Padre Agenor Brighenti é membro da comissão teológica do Sínodo sobre a sinodalidade


*Artigo de Mirticeli Medeiros,

jornalista e mestre em História da Igreja, uma das poucas brasileiras

credenciadas como vaticanista junto à Sala de Imprensa da Santa Sé


‘Padre Agenor Brighenti é um dos membros da comissão teológica do Sínodo da Sinodalidade, sendo o único brasileiro a integrar a lista. Teólogo de renome, foi perito teológico das conferências de Santo Domingo (1992) e Aparecida (2007). Doutor em teologia pela Universidade de Louvain (Bélgica), atua como professor do Instituto Teológico de Santa Catarina e da Universidade Pontifícia do México.

No sínodo, cuja conclusão está marcada para 2023, ele foca sua reflexão teológica a partir de uma perspectiva pastoral e social. Autor de vários livros sobre a temática, também lançou, recentemente, um estudo sobre o novo perfil do clero, fruto de um trabalho de campo que contou com a participação de teólogos e cientistas sociais. O pesquisador identifica uma tendência, em relação ao clero brasileiro, de ‘um deslocamento do profético para o terapêutico e do ético para o estético na esfera da experiência religiosa’, alinhando-se à visão de ‘clericalismo’, pontuada pelo Papa Francisco.

Durante o colóquio, concedido gentilmente ao Dom Total, o estudioso explicou a proposta da atual assembleia e quais avanços ela propõe.

Dom Total : Por que convocar um sínodo sobre a sinodalidade?

Pe. Agenor Brighenti : Porque a sinodalidade, embora tenha sido resgatada pelo Vaticano II, é uma questão pendente. Tivemos nas três décadas que precederam o atual pontificado um processo de involução eclesial, em relação à renovação do Vaticano II. O concílio colocou as bases de um exercício da sinodalidade, num sentido mais profundo, com a eclesiologia do povo de Deus, mas desenvolveu sobretudo a questão da colegialidade episcopal, Christus Dominus, etc. Não houve tempo para situar a colegialidade episcopal no seio da sinodalidade eclesial. E isso ficou uma tarefa pendente na recepção do concílio. A Igreja na América Latina, a partir de Medellín, deu passos substanciosos nessa perspectiva. E avançou muito na recepção do Concílio Vaticano II, sobretudo na concepção da eclesiogênese. A Igreja, que por ser comunhão e comunidade, precisa alicerçar-se sobre a experiência concreta de comunidade, das comunidades eclesiais de base. E as comunidades eclesiais de base Medellín chama de ‘células iniciais de estruturação eclesial’. Sendo assim, podemos dizer que a definição das CEB’s é a definição de sinodalidade. As pequenas comunidades são a célula inicial da sinodalidade eclesial. Se não há exercício concreto da igreja-comunhão/igreja-comunidade, não há sinodalidade. E é por isso que esse sínodo é celebrado de baixo para cima, a partir da igreja local e de suas comunidades, para depois ir ascendendo aos demais âmbitos eclesiais; ou seja : sempre a partir de experiências reais, porque a fé cristã e eclesial e deve estar alicerçada na interação das pessoas com Deus e de Deus com as pessoas. Não há igreja se não há exercício concreto da comunhão no seio das igrejas locais.

Dom Total : O Papa, quando criou a comissão teológica do sínodo, resolveu contar com muitos estudiosos latino-americanos, como no caso do senhor, do Rafael Luciani, entre outros. É um sinal que o pontífice atual reconhece que a igreja latino-americana tem muito a contribuir com esse processo?

Pe. Agenor Brighenti : Às vezes, na Europa, se fala de ‘sinodalidade made in America Latina’. Porque a América Latina tem uma tradição longa de exercício da sinodalidade eclesial. Primeiro, a partir da sinodalidade entre os bispos, da colegialidade episcopal. O Concílio Episcopal Latino-Americano, depois a Conferência do Rio de Janeiro, Medellín, Puebla, Santo Domingo e Aparecida. Então, é um caminhar de longa data. Começou com a Ação Católica, inclusive. Os bispos se reuniram no país e no Continente em torno das questões levantadas pela Ação Católica, as quais desembocaram na renovação do Concílio Vaticano II. Mas o mais significativo na América Latina tem sido justamente o caminhar da Igreja a partir do que Puebla conceitua como comunhão e participação. A partir das experiências concretas e dos processos eclesiais alicerçados nas comunidades eclesiais inseridas profeticamente na sociedade. É uma longa tradição, difícil e conflitiva tanto a nível interno quanto externo. Também do ponto de vista político houve muitos problemas porque esta sempre foi uma igreja profética e transformadora. Havia o medo que surgisse uma igreja popular, sem o magistério, sem autoridade da Igreja, porque estávamos diante de duas eclesiologias bastante distintas. A Igreja pré-conciliar, concebida como uma sociedade perfeita, que se confunde somente com a hierarquia, e o Concílio Vaticano II, que coloca na base da experiência eclesial o batismo. Como diz o Papa Francisco na Querida Amazônia, na Igreja existe e deve ser implementada, cada vez mais, uma cultura eclesial fundamentalmente laical. Porque é do batismo que derivam todos os ministérios, inclusive os ministérios ordenados. E o mais importante, a meu ver, que tem ocorrido na América Latina, é uma intensificação desse movimento sinodal. Primeiro pelo Sínodo da Amazônia, que foi já um sínodo bastante parecido com o atual, porque também foi um sínodo celebrado debaixo para cima. Com o envolvimento das 120 dioceses da região, a partir da participação direta de 70 mil pessoas, e da qual participaram não somente bispos, mas todos os segmentos do povo de Deus, de modo particular o laicado e as mulheres que foram muito protagonistas desse Sínodo da Amazônia. Tudo isso resultou na formação da CEAMA (Conferência Eclesial da Amazônia), um organismo que aglutina toda a igreja da região, e não se trata de um organismo episcopal, mas eclesial. E isso inspirou o Papa Francisco a não celebrar uma VI Conferência Episcopal Latino-Americana, mas a fazer em vez disso, a primeira Assembleia Eclesial, que teve como objetivo central recordar Aparecida, resgatando o Vaticano II e a tradição eclesial latino-americana. Esses dois acontecimentos influenciaram o perfil do atual Sínodo dos Bispos, que agora deixou de ser um 'Sínodo dos bispos’, para se tornar um ‘Sínodo da Igreja’. A Igreja inteira, desde as igrejas locais, é convocada a fazer da sinodalidade o centro do modo de ser e de agir da Igreja, seu modus vivendi e seu modus operandi.

Dom Total : Instaurar uma igreja mais sinodal é o programa de governo do Papa Francisco. Vemos isso desde a Evangelii Gaudium, o documento que mostrou, já em 2013, que ele caminhava nessa direção…

Pe. Agenor Brighenti : O Karl Rahner, que foi um dos pilares da reflexão teológica do Vaticano II, diz que a principal mudança do concílio foi resgatar a catolicidade da igreja presente em cada igreja local. Em cada diocese está a igreja toda, ainda que não seja toda a igreja, porque a igreja é uma comunhão de Igrejas. Isso significa que a igreja de Roma é uma das igrejas que pertence a essa comunhão de igrejas. Claro, ela não é mais uma porque preside a comunhão e a unidade entre essa diversidade de igrejas. Consequentemente, o bispo de Roma é situado dentro do colégio episcopal e é um primus inter paris, um primeiro entre outros. E isso ficou muito evidente no Sínodo da Amazônia quando o Papa votou juntamente com a assembleia. No Concílio Vaticano II, não deixaram o Papa ser membro da assembleia, ele foi uma espécie de moderador sobre a assembleia. No sínodo agora, da Igreja, o Papa Francisco tem se situado como um membro da igreja, como bispo de Roma. E é nessa condição que ele preside a unidade das Igrejas. Com isso, o pontífice está colocando em prática essa eclesiologia do primeiro milênio da Igreja. Foi no segundo milênio que perdemos o exercício da sinodalidade. No primeiro milênio, a Igreja foi regida pelos sínodos diocesanos, os concílios regionais, provinciais e ecumênicos. Os próprios ministérios da Igreja não eram ministérios monárquicos. A Igreja, durante séculos, teve uma equipe de bispos à frente das igrejas locais, bem como uma equipe de presbíteros e diáconos, dos diversos ministérios que surgiram na Igreja. Então, esse exercício sinodal no primeiro milênio se perdeu no segundo. E o Concílio Vaticano II, num retorno às suas fontes bíblicas e patrísticas, resgata esse perfil da Igreja que nunca deveria ter saído de cena. Ainda sofremos muito as consequências de um milênio de uma igreja hierárquica, com relações verticais, instituições rígidas e centralizadoras, com uma concentração do poder na Cúria Romana, a partir do século XVI. E o Papa Francisco, desmontando aquela figura imperial do papa, e também já resgatou a função da Cúria romana, que não é um organismo de controle, nem uma estrutura intermediária entre o papa e as conferências episcopais, mas uma instância de apoio, de serviço às conferências episcopais nacionais. Portanto, estamos colocando em prática um poder na Igreja que é um poder de serviço, não um poder centralizador, potestas, que gera dependência, mas um poder que gera autonomia. Se não há autonomia, não há responsabilidade. E na Igreja somos todos corresponsáveis pelo batismo E o sínodo quer implementar essa eclesiologia da primeira hora da igreja. Não é invenção do Vaticano II, mas um retorno às fontes bíblicas e patrísticas.

Dom Total : Sabemos que, em âmbito oriental, o sínodo é um organismo de governo. Diferente do catolicismo ocidental, onde ele é um órgão consultivo. Será que há a possibilidade que, um dia, também em âmbito ocidental, o sínodo se torne um espaço de decisão como acontece no cristianismo oriental?

Pe. Agenor Brighenti : O Sínodo dos bispos nasceu com essa vocação, com essa finalidade. Inclusive o Papa João 23 acreditava piamente que, com o Concílio Vaticano II, chegar-se-ia à plena unidade com a igreja oriental. Porque tudo o que a igreja oriental pede, na verdade, é um exercício diferente do primado. Na Igreja Primitiva, que foi regida pelos cinco patriarcados, o Bispo de Roma era um dos patriarcas, uma das instâncias que evocavam a unidade das igrejas, Então, um sínodo universal - ou um concílio universal - é expressão dessa unidade das igrejas. E no caso do Oriente, o sínodo tem uma função de gerenciamento, de administração das igrejas, uma instância não só consultiva, mas deliberativa, decisória. E o Sínodo dos bispos nasceu com essa vocação. Não está proposta do sínodo, que nasceu no Vaticano II, que ele deveria ser consultivo. Tanto que o cardeal Aloísio Lorscheider, num dos últimos sínodos que ele participou, disse, à imprensa, de maneira muito contundente, que ‘o sínodo dos bispos nasceu para ser deliberativo, passou a funcionar como consultivo, e não passava de decorativo’. E o Papa Francisco está caminhando para fazer do sínodo uma instância deliberativa. No Sínodo da Amazônia, por exemplo, houve votação de todas as matérias e, pela primeira vez, foi produzido um documento final votado pela assembleia. Ele é um documento oficial do Sínodo da Amazônia. Tanto que se está trabalhando, depois do sínodo, em diversas comissões, implementando as decisões do sínodo da Amazônia, e muitas delas vêm do documento final. Então se assumiu o documento final como um documento oficial do sínodo. Isso, de alguma maneira, é já torná-lo deliberativo. Segmentos da Cúria Romana tiveram dificuldade de acolher essa novidade. [...] Nesse sentido, esse atual sínodo certamente vai promover um aperfeiçoamento desse organismo para que ele possa cada vez mais ser expressão de uma instância não simplesmente consultiva, mas deliberativa, de modo que essa seja a extensão do primado, do governo da unidade das igrejas que o papa exerce por meio de seu ministério petrino.

Dom Total : A respeito dessa mudança de ‘Sínodo dos bispos’ para ‘Sínodo da Igreja’. O que a gente pode esperar? Mais leigos convocados para os sínodos? Como ficam os padres sinodais nessa história? Teremos, dessa forma, ‘leigos sinodais’ com poder de voto? É essa a expectativa?

Pe. Agenor Brighenti : Já para esse sínodo de agora, sobre a sinodalidade, vai participar por ofício uma mulher, que está ligada a um dicastério da Cúria Romana, numa função que, historicamente dá a ela poder de voto (Irmã Nathalie Becquart). E não haverá nenhum empecilho para que ela, de fato, exerça sua função e tenha direito de voto, agora, no sínodo da sinodalidade. É a porta aberta para que haja uma efetiva participação dos leigos e leigas, religiosos e religiosas, não somente dos ordenados. Uma efetiva participação no processo de escuta, discernimento e de tomada de decisão. Não há exercício da sinodalidade, em sentido pleno na Igreja, no sensus fidelium, se os leigos e leigas não tiverem a prerrogativa de poder votar, porque isso é um reconhecimento àquilo que diz o Concílio Vaticano II, de que há uma radical igualdade e dignidade em todos os ministérios. E os ministros ordenados se assentam sobre o batismo, que é a base laical da igreja. Então, certamente, a Episcopalis Communio, essa constituição que já reformou o sínodo dos bispos, e certamente haverá um outro texto mais sintonizado com a reforma da Cúria Romana, que também vai repensar a figura do sínodo talvez a partir da prática atual, sendo celebrado sempre de baixo para cima. Começando pelas igrejas locais, depois indo para o âmbito nacional, continental e universal. Dessa forma a perspectiva é que não somente os ditos ‘padres sinodais’ votem, mas também os membros das assembleias nos mais diversos âmbitos eclesiais, de modo que possam ser escutados, discernir e decidir de acordo com aquilo que aconteceu no primeiro milênio da Igreja. Havia aquela máxima, nos primórdios : ‘O que concerne a todos deve ser discernido e decidido por todos’. E o documento preparatório do atual sínodo retoma esse princípio. Certamente, a tendência é fazer disso uma prerrogativa jurídica, porque se essas práticas não se tornam decisões jurídicas, se não se tornam reforma das estruturas da Igreja, aí não muda nada. Existe mudança, realmente, quando muda a estrutura. E, nesse particular, há uma distância que precisa ser corrigida e adaptada à nova teologia que está agora sendo implementada, que é a teologia da Igreja, a teologia da primeira hora do cristianismo.

Dom Total : Inclusive muitos historiadores atribuem as várias crises que ocorreram no segundo milênio da história da igreja à crise da própria sinodalidade. Então, a gente demonstrou, olhando para a História da Igreja, que quanto menos sinodalidade, mais clericalismo. É isso?

Pe. Agenor Brighenti : Sem dúvida, porque, no segundo milênio, a eclesiologia que vai se estabelecer é aquilo que o Padre Yves Congar diz como é uma ‘hierarquiologia’, reduzindo a Igreja à hierarquia. Tanto que a eclesiologia pré-conciliar dizia com todas as letras (Mystici Corporis Christi) : o clero é o polo ativo, fonte de toda a iniciativa e de todo o poder, enquanto que os leigos são o polo passivo : a quem cabe obedecer docilmente ao clero. A Igreja, então, de acordo com essa visão, é composta por dois gêneros de cristãos : clero e leigos. E o concílio tem outra eclesiologia, resgatando as fontes, ou seja, há um único gênero de cristãos, que são os batizados. Portanto, não é o binômio ‘clero e leigos’ : isso não é a Igreja de Jesus Cristo. O binômio é comunidade e ministérios. Uma comunidade toda ela ministerial. Isso é o cristianismo. Então, evidente que historicamente essa eclesiologia do corpo místico de Cristo, vista como comunidade perfeita, perdeu de vista essa característica de todo o primeiro milênio e por circunstâncias diversas. E isso muito mais por influência de poderes temporais, por ligação a certas instâncias político-econômico-sociais, que por fruto de discernimentos e decisões do ponto de vista teológico. Então foram, às vezes, influência de um poder temporal que é copiado, e entra na igreja de maneira desavisada, para depois receber um sentido teológico. Quando, na realidade, é muito daquilo que o Papa Francisco fala : mundanismo. Esse mundanismo, com critérios pouco evangélicos, que pautam estruturas e realidades da Igreja. Por isso, é necessária uma conversão pastoral da Igreja, e que tudo esteja pautado como a constituição de reforma da Cúria Romana coloca : que tudo seja pautado pela evangelização. Esse é o objetivo, para isso que a Igreja existe. Tudo deve estar em função disso : as iniciativas, as estruturas, para que de fato sobressaia uma igreja povo de Deus, composta por todos os batizados e orientada pelo sensus fidelium.’

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://domtotal.com/noticia/1582517/2022/06/o-sinodo-pode-se-tornar-um-orgao-deliberativo-diz-teologo/

segunda-feira, 27 de junho de 2022

O alforge da noite

 Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

*Artigo do Padre Fernando Domingues,

Missionário Comboniano


‘Missão é dar e receber. Quem é enviado em missão, leva consigo o Evangelho de Jesus, a fé cristã, a experiência de comunidade que vamos construindo juntos. Também recebemos muito e, quando partimos, levamos um ‘alforge’ cheio de coisas lindas para partilhar. No encontro com o povo ao qual somos enviados, encontramos tesouros de sabedoria que sempre nos surpreendem.

Já há alguns meses que partilho nesta página algumas reflexões sobre a ligação entre a fé que anunciamos como missionários e o mundo da Natureza que nos rodeia. Um povo indígena do Brasil lembra, numa antiga lenda, o dom que é a noite, a escuridão. Contam eles que, no princípio do mundo, não havia noite na Terra, era sempre dia e tudo estava completamente iluminado sem interrupção. Então o rei da Terra pediu ao rei das profundezas escuras do mar que lhe desse a sua filha em casamento. Ele aceitou, e lá veio a princesa. Pouco tempo depois, ela começou a definhar e a ficar feia, com tanta luz ela não tinha descanso e a vida tornava-se triste e insuportável. Mandou então alguns servos ao seu pai, nas profundezas escuras do mar, que lhe trouxessem um alforge cheio de noite e escuridão. Foram, e regressaram logo, mas ao porem pé na terra de novo, começaram a ouvir, lá dentro do alforge, melodias desconhecidas, o canto de pássaros noturnos, sentiram estranhos perfumes a sair lá de dentro e, cheios de medo, deixaram cair o alforge, que, ao tocar no chão, se abriu logo, deixando sair cá para fora as sombras da noite, os pássaros e animais que só saem no escuro, as rãs que cantam nos pântanos ao cair da noite, as flores que soltam os seus perfumes fortes a coberto da escuridão... Todo o mundo da noite fugiu do alforge e se espalhou pela Terra.

E foi assim que os tesouros da escuridão não ficaram só na posse da filha do rei, mas se espalharam pelo mundo inteiro.

A partir desse dia – pois então começou a alternar-se um tempo de luz, o dia, e um tempo de escuridão, a noite – também os humanos começaram a apreciar a beleza que é o pôr do Sol que anuncia a paz do crepúsculo, ficaram extasiados com a maravilhosa sinfonia de sons e cantos que se ouvem à noite, quando os ruídos do dia se acabam. Quem já gostava de cheirar as flores, ficou encantado com o perfume que algumas delas exalam só quando desce a escuridão da noite. Muitos aprenderam a olhar para o céu e gozar o extraordinário espetáculo que é uma noite estrelada. Outros descobriram a paz da noite em que deixam a azáfama dos trabalhos do dia e se concentram no carinho das pessoas com quem partilham o caminho da vida. E muitos descobriram a noite como o templo mais belo onde encontrar a Deus e a sua paz.

Este povo do Brasil aprendeu a apreciar a importância e o valor da noite seja para a Natureza, seja também para a nossa vida humana. Podemos descobrir muito em comum com a nossa tradição cristã : a noite como o convite à interioridade, aos afetos pessoais, ao silêncio onde se recupera a serenidade e se entra em contato com Deus. O próprio Jesus era bem conhecido por sair, muitas vezes, para um lugar solitário para longos diálogos com Deus, no segredo da noite.’

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://www.combonianos.pt/alem-mar/opiniao/4/753/o-alforge-da-noite/

sexta-feira, 24 de junho de 2022

Acordar o povo do sono

 Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

*Artigo do Padre Geovane Saraiva,

jornalista, colunista e pároco

de Santo Afonso de Fortaleza, CE


‘Deus, no seu desígnio redentor de salvar o mundo, contou com a figura ímpar de João Batista, escolhido para ser o elo entre o Antigo e o Novo Testamento, vindo aplainar os tortuosos caminhos, quando da chegada do Messias. Daí muita gente se alegra com o nascimento da incomparável criatura humana. Jesus, coberto de razão, afirmou como sendo ele mais que um profeta, o maior entre os nascidos de mulher (cf. Lc 7, 26), com as mais elevadas características de sua missão divina, estabelecendo-o como precursor e luz das nações.

Mais do que nunca, devemos prescindir do espírito de São João Batista, que denuncia caminhos sinuosos, curvos e falsos, como nas palavras do profeta : ‘Eu te constituí hoje sobre reinos e povos com poder para extirpar e destruir, para devastar e derrubar, para construir e plantar’ (Is 1, 10). O misterioso projeto de Deus, a respeito da salvação da humanidade, passa por São João Batista, que, na alegria do seu nascimento, já deixa óbvio que somos chamados a percorrer os caminhos do Senhor.

Desse modo, inspirados na figura do glorioso São João Batista, defensor da verdade e da justiça, na promessa de tempos bons e de um futuro muito promissor para a humanidade, que saibamos, conscientemente, olhar o mundo longe dos traços de profundas desigualdades, com o mesmo olhar e sonho do precursor. Nele nossa esperança está no seu prenúncio de tempos novos e messiânicos, na instauração do Reino de Deus, sendo a humanidade chamada a travar aquele atlético e forte duelo : sair das trevas e experimentar, com grande disposição, a luminosidade verdadeira, luz esta dadivosa e misteriosa, ao exultar com a chegada do Salvador da humanidade, na revelação do Cordeiro redentor, aquele que tira o pecado do mundo.

Seu grande trunfo consistiu no anúncio da vinda do Cordeiro de Deus, e também no vibrante convite de acordar o povo do sono, muitas vezes profundo. Ele nos ensina o caminho da justiça e da solidariedade, em seu legado maior : que lutemos a favor da vida, fazendo-nos um com Deus, no ânimo e no destemor de descer ao doloroso abismo, no qual se encontra a humanidade, na esperança do verdadeiro amor.’

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://domtotal.com/noticia/1581972/2022/06/acordar-o-povo-do-sono/

quinta-feira, 23 de junho de 2022

História: lugar da revelação de Deus

 Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

*Artigo de Fabrício Veliq,

teólogo protestante


‘Disse ainda : ‘Eu sou o Deus de seu pai, o Deus de Abraão, o Deus de Isaque, o Deus de Jacó’ (Êxodo 3,6a).

Esse versículo se encontra no conhecido texto sobre a sarça ardente, quando Moisés recebe o chamado para ser o libertador do povo de Israel da terra do Egito. Essa denominação, por sua vez, será muito recorrente ao longo de todo texto bíblico e será uma das principais maneiras pela qual o povo de Israel falará a respeito de Deus.

Tal caracterização da divindade se mostra muito interessante, uma vez que agora o Deus deste povo, Israel, não é visto como uma divindade distante, mas uma divindade que se implica na história e, mais ainda, é conhecida pelos seus atos feitos na história do seu povo.

Se nós compararmos tal discurso a respeito de Deus com, por exemplo, os discursos feitos sobre os deuses gregos, perceberemos uma grande diferença. Enquanto esses vivem em um mundo próprio, o Olimpo, onde têm suas festas, seus conflitos etc, vindo à Terra somente para alguma aventura, ou interferindo das alturas nas ações dos seres humanos, o Deus apresentado nas páginas do texto bíblico se revela em outra perspectiva, como alguém que, vendo o sofrimento do seu povo, decide se importar com ele e caminhar ao seu lado.

Nessa perspectiva, a história não é vista como somente uma grande peça de teatro escrita para ser observada por entes divinos, ou como um seriado interativo, no qual é possível fazer as decisões que determinada personagem tomará, influenciando, assim, o enredo final da série. Muito pelo contrário, o próprio Deus se implica nessa história, fazendo dela também a sua própria, criando em si um espaço para que ela ocorra. Em outras palavras, como nos diz Moltmann, a história acontece no próprio Deus.

Essa compreensão de um Deus que caminha com seu povo e se faz presente na história, no entanto, parece que não faz tanto sucesso hoje em dia em diversos ambientes que se dizem cristãos. Em tais ambientes, o que comumente se escuta é a respeito de um Deus que vive no céu, cercado de miríades e miríades de anjos, sendo constantemente adorado e distribuindo bençãos ou maldições, de acordo com o que o departamento de Contabilidade Celestial lhe informa nos balancetes mensais.

Prega-se um Deus que não se importa com o sofrimento humano, que não se implica neles, que não sofre, não chora, não ri. Em outras palavras, um Deus impassível, incapaz de sentir algo, porque, como diriam os gregos, tal sentir causaria alterações na divindade que, por excelência, se quiser ser perfeita, não pode sofrer nenhuma alteração.

No entanto, ao se fazer isso, tais igrejas não pregam o Deus anunciado no texto bíblico : um Deus que sofre e caminha com seu povo, estando atento ao seu sofrimento, padecendo, por amor e reconciliando toda a criação Consigo mesmo.

Esse Deus, desde as páginas do Antigo Testamento é aquele que ouve o clamor dos que sofrem por causa de líderes cruéis, que sabe o quanto tais pessoas sofrem e, por isso, vem em auxílio delas.

A igreja atual precisa resgatar o anúncio desse Deus que se implica na história, que é contra a injustiça, que sofre com os que sofrem, que, em Jesus, se mostra como aquele que é contrário a toda forma de violência e toda forma de exploração.

A luta por justiça, igualdade social, ausência de discriminação deve ser também a causa de toda pessoa que se diz cristã. Do contrário, ao invés de sermos luzes no mundo, deixaremos ainda mais densa a escuridão que insiste em avançar sobre ele.’

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://domtotal.com/noticia/1581946/2022/06/historia-lugar-da-revelacao-de-deus/

terça-feira, 21 de junho de 2022

Um século de Papas da paz em tempos de guerra

 Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

Soldados em trincheira durante a Primeira Guerra Mundial. Foto (Arquivo/Vatican Media)
 

‘Do ‘massacre inútil’ de Bento XV a ‘A guerra é uma loucura’ do Papa Francisco pouco mais de um século passou, mas muito menos em termos de coerência de ensino : todo conflito é uma barbárie contra o homem e contra Deus. Enquanto mísseis e canhões trovejam na Ucrânia, uma conferência programada em Roma na tarde de 22 de junho, no Instituto Maria Santíssima Menina, destaca como nos últimos cem anos os Pontífices, obrigados a deparar-se com as guerras, se posicionaram no âmbito da paz e da reconciliação.

As intervenções

E ‘Papas pela paz em tempo de guerra. De Bento XV e Pio XII a Francisco’ é o título do encontro organizado pelo Comitê Papa Pacelli - Associação Pio XII por ocasião da publicação do último livro do Papa Francisco ‘Contra a Guerra. A coragem de construir a paz’. Entre os conferencistas, além de Emilio Artiglieri, presidente do Comitê, estará o cardeal Dominique Mamberti, que fará o discurso principal sobre o tema. A exposição do prefeito do Supremo Tribunal da Singatura Apostólica será seguida por outras conferências, incluindo a do diretor do Arquivo Histórico da Secretaria de Estado vaticana (seção ‘Relações com os Estados’) Johan Ickx - que apresentará uma primeira avaliação historiográfica após a abertura dos Arquivos Vaticanos -, enquanto o diretor editorial da mídia vaticana Andrea Tornielli refletirá sobre ‘Realismo evangélico : as razões para a paz nos pronunciamentos do Papa Francisco’.’

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://domtotal.com/noticia/1581866/2022/06/um-seculo-de-papas-da-paz-em-tempos-de-guerra/

domingo, 19 de junho de 2022

O que é um “horarium” (e por que todos deveriam ter um)

 Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

*Artigo de Philip Kosloski,

escritor e designer gráfico


A regularidade na oração é uma das dificuldades mais árduas que nos surgem no caminho do crescimento espiritual. Há dias em que nos sentimos repletos de grande fervor e rezamos durante uma hora inteira sem distrações, mas, ao nos levantarmos no dia seguinte, esse fogo já se apagou e o nosso horário conturbado acaba dificultando que nos recolhamos com calma em qualquer momento da jornada.

Assim, a nossa vida de oração se torna esporádica, no melhor dos casos, e nem sabemos quando vamos nos aquietar para rezar de novo.

Para solucionar esse problema comum e proporcionar mais consistência à vida de oração, as comunidades religiosas criaram já nos início da cristandade o horarium. Esta palavra latina, que significa ‘horário’ em geral, adquire neste contexto o sentido específico de horário para a oração. É uma tradição com profundas raízes bíblicas.

No Antigo Testamento

O rei Davi, a quem se creditam os Salmos, proclamou : ‘De tarde, de manhã, ao meio-dia, gemo e me lamento, mas Ele escutará o meu clamor’ (Salmo 55, 18).

O profeta Daniel também parecia ter um horário específico de oração : três vezes por dia ele se punha de joelhos, invocando e louvando a Deus (cf. Daniel 6, 11).

O próprio povo judeu começou a tradição de rezar três vezes ao dia, de manhã, à tarde e à noite.

No início do cristianismo

Os cristãos também reconheceram desde os primórdios a necessidade de deixar de lado as demais atividades para se dedicarem à oração em vários momentos específicos do dia, de modo a garantirem que a oração estivesse integrada ao seu horário cotidiano.

Os apóstolos de Jesus haviam continuado, inicialmente, a observar as tradições judaicas, mantendo as orações nas horas designadas. Com o tempo, no entanto, deixou de parecer suficiente rezar três vezes ao dia, já que bem se podia, como exortara São Paulo aos tessalonicenses, ‘orar sem cessar’.

Além de transformar todos os seus atos em oferecimento a Deus, eles sabiam que é importante dedicar momentos ‘exclusivos’ a ficar com o Pai à vontade, sem outras distrações e preocupações.

Os sinos das igrejas, por exemplo, recordavam esse compromisso e convidavam todo o povo a uma pausa para o recolhimento.

Inspirando-se em passagens como a que diz ‘Sete vezes ao dia eu te louvo pelos teus retos juízos’ (cf. Salmo 119, 164), São Bento criou um horário rigoroso de oração para os seus monges, que interrompiam todas as demais atividades ao longo do dia para rezar nas horas indicadas.

Em nosso dia-a-dia

Em tempos como os nossos, quando os horários estão mais apertados do que nunca, manter um horarium é muito importante para nos enraizarmos cada dia mais na vida espiritual e respeitarmos a prioridade merecida pela oração.

Os momentos e a duração dependem de cada um, mas o importante é integrar a oração ao horário do dia-a-dia. Se for para citar um exemplo, 10 minutos por dia poderiam ser um bom ponto de partida para quem ainda não está acostumado a parar para se recolher e conversar com Deus. Esse tempo irá aumentando conforme se cresce na relação com Ele. São Francisco de Sales, a propósito, chegou a declarar :

‘Cada um de nós precisa de meia hora de oração por dia, a não ser que esteja ocupado. Nesse caso, precisamos de uma hora’.

É verdade que todas as nossas atividades podem (e devem) ser oferecidas a Deus como oração viva, mas também é verdade que é vital dedicar momentos específicos do dia para conversar de coração a coração com Ele, sem qualquer outra distração. Assim fomentamos uma relação mais profunda e nos abrimos melhor às graças que nosso Pai deseja oferecer à nossa liberdade.

E então, já está pensando em definir o seu horarium?’

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://pt.aleteia.org/2022/05/15/o-que-e-um-horarium-e-por-que-todos-deveriam-ter-um/

quinta-feira, 16 de junho de 2022

A frenética busca de uma certeza da salvação

 Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 
*Artigo de Fabrício Veliq,

teólogo protestante


‘Ainda é muito comum em nossos dias as pessoas que se dizem cristãs estarem em busca de certezas a respeito da fé. Desejam, a todo custo, terem chancelado o caminho que estão percorrendo para, assim, garantir que a salvação os aguarda ao final da jornada.

Essa busca de segurança, todavia, não deve ser motivo de condenação. Afinal, quem de nós não deseja essa confirmação de que aquilo que fazemos é bem-visto aos olhos de alguém? Ainda mais quando o assunto é tão sério, como a questão da salvação.

Contudo, ao observarmos o texto bíblico, tal garantia só se mostra nos textos do Antigo Testamento, principalmente no período em que Deus era visto como Aquele que fazia uma aliança com seu povo, do tipo contratual. Em outras palavras, se ao povo era solicitado que se cumprissem os mandamentos de Javé, da parte de Javé provinha a segurança, as vitórias nos tempos de guerra e a prosperidade em todos os empreendimentos do povo.

Um exemplo muito claro dessa dinâmica se encontra no texto de Deuteronômio 28, que se inicia com uma condicional : ‘se escutares verdadeiramente a voz do Senhor teu Deus, cuidando de pôr em prática todos estes mandamentos que hoje eu te dou, então...’ Esse versículo deixa claro o tipo de relação estabelecida nesse contrato. Agora, uma vez que o povo obedecesse podia, de alguma maneira, requerer tal proteção divina e vitórias, afinal, estariam cumprindo sua parte. Em outras palavras, tanto Deus quanto o povo se tornavam responsáveis por cumprir aquilo que havia sido firmado.

Esse tipo de teologia retribucionista é marcante em todo texto bíblico. Até mesmo no Novo Testamento é possível perceber traços dessa teologia, sendo um exemplo disso o texto do Apocalipse joanino.

Que tal teologia tenha sido questionada já antes de Jesus, os livros de Jó e Eclesiastes deixam isso muito claro. Contudo, como é possível perceber, tal teologia ainda se faz presente hoje, sendo tanto consequência, como geradora dessa busca de certeza sobre a qual iniciamos nosso texto.

No entanto, a compreensão do conceito de fé nos leva em outra direção. Afinal, a fé é o contrário da certeza, uma vez que se se tem certeza de alguma coisa, a fé se torna sem sentido. Não precisamos de fé para dizer que se jogarmos um lápis para o alto ele cairá. A força da gravidade garante isso e, portanto, falar em uma ‘fé na gravidade’ se torna algo sem sentido.

Ter fé em Deus, em perspectiva cristã, implica abrir mão dessa busca de certeza de que se está no ‘caminho da salvação’, até mesmo porque, na perspectiva dos Evangelhos, a salvação é dada gratuitamente, independentemente das obras, sendo aceita, diga-se de passagem, por meio da fé. Ninguém em nossos dias viu a salvação para garantir que ela seja verdadeira, e possivelmente, não conhecemos alguém que tenha visto Jesus ressuscitado para garantir com certeza de que Ele está vivo.

Todas essas realidades são aceitas pela fé, de maneira que buscar a certeza dessas coisas se mostra contrário àquilo que, como cristãos, compreendemos sobre o que é a fé.

A busca de certezas a respeito da salvação se revela como fruto de um relacionamento infantil com Deus, tal como uma criança pequena que chora quando a mãe ou o pai saem de sua vista, por achar que eles não estão mais ali. Insistir nisso é pernicioso para o amadurecimento cristão.

Longe das certezas, a fé cristã nos convida a nos lançarmos em confiança de que Aquele que fez a promessa é fiel para a cumprir. Um ‘salto’, como diria Kierkegaard. E nada mais que isso.’

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://domtotal.com/noticia/1581401/2022/06/a-frenetica-busca-de-uma-certeza-da-salvacao/

terça-feira, 14 de junho de 2022

Corpus Christi: sentido, origem e história

 Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 
*Artigo da Gaudium Press


‘Na quinta-feira, após a solenidade da Santíssima Trindade, a Igreja celebra a solenidade litúrgica do Santíssimo Corpo e Sangue de Cristo, em latim Corpus Christi.

A motivação religiosa para tal festa é o louvor merecido à Eucaristia, fonte de vida da Igreja. Desde o princípio de sua história, a Igreja devota à Eucaristia um zelo especial, pois reconhece neste sinal sacramental o próprio Jesus, que continua presente, vivo e atuante em meio às comunidades cristãs.

Celebrar Corpus Christi significa fazer memória solene da entrega que Jesus fez de sua própria vida para a vida da Igreja, e comprometer-nos com a missão de levar esta Boa Nova para todas as pessoas.

Origem da solenidade

Na origem da festa de Corpus Christi estão presentes dados de diversas significações. Na Idade Média, o costume de celebrar a missa com as costas voltadas para o povo, foi criando certo mistério em torno da Ceia Eucarística. Todos queriam saber o que acontecia no altar, entre o padre e a hóstia. Para evitar interpretações de ordem mágica e sobrenatural da liturgia, a Igreja foi introduzindo o costume de elevar as partículas consagradas para que os fiéis pudessem olhá-la.

Este gesto foi testemunhado pela primeira vez em Paris, no ano de 1200. Entretanto, foram as visões de uma freira agostiniana, chamada Juliana, que historicamente deram início ao movimento de valorização da exposição do Santíssimo Sacramento.

Em 1209, na diocese de Liége, na Bélgica, essa religiosa começa a ter visões eucarísticas, que se vão suceder por um período de quase trinta anos. Nas suas visões ela via um disco lunar com uma grande mancha negra no centro. Esta lacuna foi entendida como a ausência de uma festa que celebrasse festivamente o sacramento da Eucaristia.

Nasce a festa de Corpus Christi

Quando as ideias de Juliana chegaram ao bispo, ele acabou por acatá-las, e em 1246, na sua diocese, celebra-se pela primeira vez uma festa do Corpo de Cristo. Seja coincidência ou providência, o bispo de Juliana vem a tornar-se o Papa Urbano IV, que estende a festa de Corpus Christi para toda Igreja, no ano de 1264.

Mas a difusão desta festa litúrgica só será completa no pontificado de Clemente V, que reafirma sua significação no Concilio de Viena (1311-1313). Alguns anos depois, em 1317, o Papa João XXII confirma o costume de fazer uma procissão, pelas vias da cidade, com o Corpo Eucarístico de Jesus, costume testemunhado desde 1274 em algumas dioceses da Alemanha.

O Concílio de Trento (1545-1563) vai insistir na exposição pública da Eucaristia, tornando obrigatória a procissão pelas ruas da cidade. Este gesto, além de manifestar publicamente a fé no Cristo Eucarístico, era uma forma de lutar contra a tese que negava a presença real de Cristo na hóstia consagrada.

Atualmente a Igreja conserva a festa de Corpus Christi como momento litúrgico e devocional do Povo de Deus. O Código de Direito Canônico (onde estão contidas as normas da Igreja) confirma a validade das exposições públicas da Eucaristia e diz que principalmente na solenidade do Corpo e Sangue de Cristo, haja procissão pelas vias públicas (cf. cân. 944).

Em Santo Tomás de Aquino

Santo Tomás de Aquino destacava três aspectos teológicos centrais do sacramento da Eucaristia. Primeiro, a Eucaristia faz o memorial de Jesus Cristo, que passou no meio dos homens fazendo o bem (passado). Depois, a Eucaristia celebra a unidade fundamental entre Cristo com sua Igreja e com todos os homens de boa vontade (presente). Enfim, a Eucaristia prefigura nossa união definitiva e plena com Cristo, no Reino dos Céus (futuro).

A Igreja, ao celebrar este mistério, revive estas três dimensões do sacramento.

Por isso envolve com muita solenidade a festa do Corpo de Cristo. Não raro, o dia de Corpus Christi é um dia de liturgia solene e participada por um número considerável de fiéis (sobretudo nos lugares onde este dia é feriado).

Devoção popular e procissão

É necessário destacar que muito mais do que uma festa litúrgica, a Solenidade de Corpus Christi assume um caráter devocional popular. O momento ápice da festa é certamente a procissão pelas ruas da cidade, momento em que os fiéis podem pedir as bênçãos de Jesus Eucarístico para sua cidade. O costume de enfeitar as ruas com tapetes de serragem, flores e outros materiais, formando um mosaico multicor, ainda é muito comum em vários lugares.

Algumas cidades tornam-se atração turística neste dia, devido à beleza e expressividade de seus tapetes. Ainda é possível encontrar cristãos que enfeitam suas casas com altares ornamentados para saudar o Santíssimo, que passa por aquela rua.

A procissão de Corpus Christi conheceu seu apogeu no período barroco. O estilo da procissão adotado no Brasil veio de Portugal, e carrega um modo popular muito característico. Atualmente, esta expressão é viva em cidades históricas como Ouro Preto, Mariana, São João Del Rey...

Geralmente a festa termina com uma concentração em algum ambiente público, onde é dada a solene bênção do Santíssimo Sacramento. Nos ambientes urbanos, apesar das dificuldades estruturais, as comunidades continuam expressando sua fé Eucarística, adaptando ao contexto urbano a visibilidade pública da Eucaristia.’

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://domtotal.com/noticia/1161963/2022/06/corpus-christi-sentido-origem-e-historia/

sábado, 11 de junho de 2022

Um Deus Trindade

 Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 
 *Artigo d0 Padre Geraldo de Mori, SJ


‘A graça do Senhor Jesus Cristo, o amor de Deus e a comunhão do Espírito Santo estejam com todos vós’ (2Cor 13,13)

‘Todas as igrejas cristãs confessam a fé num Deus que é comunhão de pessoas : Pai, Filho e Espírito Santo. No calendário litúrgico da Igreja católica, a festa da Trindade é no domingo que se segue a Pentecostes. Trata-se de uma festa do tempo comum, que intervém depois do ciclo pascal, no qual se celebra a revelação máxima do amor do Pai, no Filho que, pela força do Espírito, entrega sua vida até à morte de cruz como prova de amor, sendo ressuscitado pelo Pai na força do Espírito Santo, e glorificado junto do Pai.

Muitos fiéis, apesar de confessarem a fé no Deus Trindade, não entendem o que significa essa confissão. Se Deus é único, por que falar que é ‘comunhão de três’, ou por que insistir que é ‘um só Deus em três pessoas’, como o faziam os antigos catecismos? Essa dificuldade remonta ao início do cristianismo. Segundo os evangelhos sinópticos, a resposta de Jesus ao Sumo Sacerdote, se ele era o ‘Cristo, o Filho de Deus’ (Mt 26,63; Mc 14,61; Lc 22,70), corresponde ao motivo ‘teológico’ de sua condenação. De fato, ao afirmar ‘tu o disseste [...] a partir de agora vereis o Filho do Homem sentado à direita do Poderoso e vindo sobre as nuvens dos céus’ (Mt 26,64); ‘eu sou. E vereis o Filho do Homem sentado à direita do Poderoso, vindo com as nuvens do céu’ (Mc 14,62); ‘vós mesmos estais dizendo que eu o sou!’ (Lc 22,70), ele se fazia igual a Deus, como aparece em Jo 10,33, quando os judeus dizem que ‘sendo apenas homem’, ele se fazia ‘Deus’, ou em Jo 8,58, quando Jesus afirma que ‘antes que Abraão existisse, eu sou’. Tal dificuldade não diminuiu no período que se seguiu, feito de polêmicas com o judaísmo, para o qual a confissão no Deus único não admitia divisão em Deus, e com os filósofos gregos, que, pela razão, admitiam somente um princípio único como explicação de tudo.

A nomeação de Deus, ou seja, sua apelação como Pai, Filho e Espírito Santo, é atestada no Novo Testamento, com uma das formulações mais antigas no texto paulino de 2Cor 13,13. Em geral, em suas cartas, Paulo sempre saúda as comunidades em nome de Jesus e do Pai, mas nesse texto, ele o faz evocando a graça de Jesus Cristo, o amor de Deus e a comunhão do Espírito Santo. No final do Evangelho de Mateus aparece Jesus que envia os apóstolos a anunciarem o evangelho a todo o mundo batizando em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Essas atestações firmes do Novo Testamento são baseadas na experiência que os discípulos tiveram de Jesus, que se referia a Deus como Pai, que era movido pelo Espírito. Quando, no período que se seguiu ao Novo Testamento, a fé cristã começou a ser questionada por apresentar uma nova concepção de Deus, iniciou-se um longo processo de aprofundamento da ‘teologia’ cristã, que culminou nos concílios de Niceia (324) e de Constantinopla I (381). Várias opiniões equivocadas ou errôneas tiveram que ser descartadas, como as dos diversos ‘modalismos’, segundo os quais o Deus único se revelava sob vários ‘modos’ : como Pai, no Antigo Testamento, como Filho, no tempo de Jesus, como Espírito Santo após a morte e a ressurreição do Cristo. Os símbolos de fé, baseados na fórmula batismal, já atestada no final do evangelho de Mateus e na prática das diversas comunidades cristãs, foram as referências firmes a partir das quais deu-se esse processo de aprofundamento.

No início do século IV, quando a fé cristã deixou de ser perseguida e a Igreja tornou-se a religião do império romano, Ário, um padre de Alexandria, iniciou uma disputa com seu bispo, Alexandre, afirmando que ‘houve um tempo em que o Filho não existia’, que ele teria sido ‘criado’, não ‘gerado’. A discussão que se seguiu levou o imperador Constantino a convocar o concílio de Niceia (324), no qual foi definido que o Filho era ‘gerado e não criado’, que ele era ‘consubstancial ao Pai’, ou seja, da mesma substância do Pai. Essa definição, que faz parte do chamado Símbolo de Niceia, deu origem a uma nova ideia de Deus, diferente da que existia no judaísmo e na filosofia grega. Nos anos que se seguiram, um outro grupo, conhecido como ‘pneumatômacos’, porque negavam a divindade do Espírito (= pneuma em grego), levou à convocação de outro concílio, em Constantinopla (381), definindo que o Espírito é ‘senhor e doador da vida’. Não se utiliza um termo filosófico, como para falar da divindade do Filho, mas nomeia o Espírito Santo como ‘senhor e doador da vida’, atributo que é próprio de Deus.

Essas discussões, que se deram nos primeiros séculos do cristianismo, podem parecer ultrapassadas para os que se dizem hoje cristãos e cristãs. No entanto, grande parte dos fiéis tem dificuldades de entender a afirmação de Deus como único em ‘três pessoas’. É verdade que toda a liturgia cristã é trinitária e muitas práticas religiosas cristãs apontam para o Deus Trindade. Porém, poucos fiéis se dão conta que o Deus no qual creem não é somente uma questão de ‘nomes’, mas um caminho de vida com implicações em todas as suas dimensões. Alguns teólogos falam da Trindade como ‘gramática’, não só da língua cristã, mas do modo de ser, de ver e de viver da fé cristã.

De fato, já no ‘sinal da cruz’, com o qual muitos cristãos se ‘persignam’ a cada dia, aparece uma pista para entender a Trindade. Em geral, se diz ‘em nome do Pai’, e se toca a fronte, que evoca em cada um o lugar de onde emerge não só o pensamento, mas a própria identidade. O Pai, na Trindade, é a fonte, a origem, a razão última de tudo. A ele pertence tudo. Na Trindade, é ele quem gera eternamente o Filho na força do amor do Espírito. Esse amor gerador é também o que ajuda a entender sua capacidade de sair de si, criando algo que não seja ele, mas que possa a ele voltar. Esse sair de si, por amor, se expressa como ‘condescendência’ e sua expressão, no sinal da cruz, é justamente o descer da fronte ao ventre ou às entranhas. Na bíblia, as entranhas são o lugar da profundidade, dos sentimentos mais extremos : amor, ódio, gratuidade, violência. Nelas também são depositados os excrementos, sinais da finitude e da decadência. Ao identificar o ‘nome do Filho’ com o que na humanidade representa sua profundidade e sua baixeza, a fé cristã afirma a humildade divina, que não se apega ‘ao ser igual a Deus’, mas se despoja, ‘assumindo a forma de escravo e tornando-se semelhante ao ser humano’, e, mais ainda, humilhando-se e ‘fazendo-se obediente até à morte, e morte de cruz’ (Fl 2,6-8). O Deus cristão, em Jesus, é um Deus que não teme encarnar-se, assumir as contradições e as possibilidades da liberdade corpórea e finita. Entre a fronte e o ventre, miniaturas no corpo do céu e da terra, se encontram os ombros, que, no sinal da cruz, recordam o ‘Espírito Santo’. Na Trindade, ele é o elo de comunhão e amor entre Pai e Filho. Ele traça no corpo o sinal horizontal entre um ombro e outro, passando pelo coração, que, na bíblia hebraica, é um dos termos para dizer o ser humano como angústia, alegria, coragem, desejo, vontade, amor, expressando também o caráter, o temperamento, a decisão. É o Espírito que gera em Deus o Filho. É ele também que gera em cada fiel o ser como Jesus, capaz de condescendência, saída de si, humildade e dom, que ligam céu e terra, fronte e ventre, através de um amor gerador de comunhão e vida.

Persignar-se cada dia é recordar que a imagem da Trindade está inscrita em si, devendo, porém, traduzir-se em gestos que apontem para uma vivência trinitária : saber tomar iniciativa, sair de si, ir na direção do outro, em gestos que expressem a condescendência em situações de extrema vulnerabilidade e fraqueza, em atitude de humilde serviço e solidariedade, movido pelo sopro do amor que é capaz de transfigurar tudo, para que o que aparentemente está dividido, possa unir-se no traço da comunhão.’

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://domtotal.com/noticia/1580928/2022/06/um-deus-trindade/