quarta-feira, 29 de junho de 2022

'O sínodo pode se tornar um órgão deliberativo', diz teólogo

 Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 

Padre Agenor Brighenti é membro da comissão teológica do Sínodo sobre a sinodalidade


*Artigo de Mirticeli Medeiros,

jornalista e mestre em História da Igreja, uma das poucas brasileiras

credenciadas como vaticanista junto à Sala de Imprensa da Santa Sé


‘Padre Agenor Brighenti é um dos membros da comissão teológica do Sínodo da Sinodalidade, sendo o único brasileiro a integrar a lista. Teólogo de renome, foi perito teológico das conferências de Santo Domingo (1992) e Aparecida (2007). Doutor em teologia pela Universidade de Louvain (Bélgica), atua como professor do Instituto Teológico de Santa Catarina e da Universidade Pontifícia do México.

No sínodo, cuja conclusão está marcada para 2023, ele foca sua reflexão teológica a partir de uma perspectiva pastoral e social. Autor de vários livros sobre a temática, também lançou, recentemente, um estudo sobre o novo perfil do clero, fruto de um trabalho de campo que contou com a participação de teólogos e cientistas sociais. O pesquisador identifica uma tendência, em relação ao clero brasileiro, de ‘um deslocamento do profético para o terapêutico e do ético para o estético na esfera da experiência religiosa’, alinhando-se à visão de ‘clericalismo’, pontuada pelo Papa Francisco.

Durante o colóquio, concedido gentilmente ao Dom Total, o estudioso explicou a proposta da atual assembleia e quais avanços ela propõe.

Dom Total : Por que convocar um sínodo sobre a sinodalidade?

Pe. Agenor Brighenti : Porque a sinodalidade, embora tenha sido resgatada pelo Vaticano II, é uma questão pendente. Tivemos nas três décadas que precederam o atual pontificado um processo de involução eclesial, em relação à renovação do Vaticano II. O concílio colocou as bases de um exercício da sinodalidade, num sentido mais profundo, com a eclesiologia do povo de Deus, mas desenvolveu sobretudo a questão da colegialidade episcopal, Christus Dominus, etc. Não houve tempo para situar a colegialidade episcopal no seio da sinodalidade eclesial. E isso ficou uma tarefa pendente na recepção do concílio. A Igreja na América Latina, a partir de Medellín, deu passos substanciosos nessa perspectiva. E avançou muito na recepção do Concílio Vaticano II, sobretudo na concepção da eclesiogênese. A Igreja, que por ser comunhão e comunidade, precisa alicerçar-se sobre a experiência concreta de comunidade, das comunidades eclesiais de base. E as comunidades eclesiais de base Medellín chama de ‘células iniciais de estruturação eclesial’. Sendo assim, podemos dizer que a definição das CEB’s é a definição de sinodalidade. As pequenas comunidades são a célula inicial da sinodalidade eclesial. Se não há exercício concreto da igreja-comunhão/igreja-comunidade, não há sinodalidade. E é por isso que esse sínodo é celebrado de baixo para cima, a partir da igreja local e de suas comunidades, para depois ir ascendendo aos demais âmbitos eclesiais; ou seja : sempre a partir de experiências reais, porque a fé cristã e eclesial e deve estar alicerçada na interação das pessoas com Deus e de Deus com as pessoas. Não há igreja se não há exercício concreto da comunhão no seio das igrejas locais.

Dom Total : O Papa, quando criou a comissão teológica do sínodo, resolveu contar com muitos estudiosos latino-americanos, como no caso do senhor, do Rafael Luciani, entre outros. É um sinal que o pontífice atual reconhece que a igreja latino-americana tem muito a contribuir com esse processo?

Pe. Agenor Brighenti : Às vezes, na Europa, se fala de ‘sinodalidade made in America Latina’. Porque a América Latina tem uma tradição longa de exercício da sinodalidade eclesial. Primeiro, a partir da sinodalidade entre os bispos, da colegialidade episcopal. O Concílio Episcopal Latino-Americano, depois a Conferência do Rio de Janeiro, Medellín, Puebla, Santo Domingo e Aparecida. Então, é um caminhar de longa data. Começou com a Ação Católica, inclusive. Os bispos se reuniram no país e no Continente em torno das questões levantadas pela Ação Católica, as quais desembocaram na renovação do Concílio Vaticano II. Mas o mais significativo na América Latina tem sido justamente o caminhar da Igreja a partir do que Puebla conceitua como comunhão e participação. A partir das experiências concretas e dos processos eclesiais alicerçados nas comunidades eclesiais inseridas profeticamente na sociedade. É uma longa tradição, difícil e conflitiva tanto a nível interno quanto externo. Também do ponto de vista político houve muitos problemas porque esta sempre foi uma igreja profética e transformadora. Havia o medo que surgisse uma igreja popular, sem o magistério, sem autoridade da Igreja, porque estávamos diante de duas eclesiologias bastante distintas. A Igreja pré-conciliar, concebida como uma sociedade perfeita, que se confunde somente com a hierarquia, e o Concílio Vaticano II, que coloca na base da experiência eclesial o batismo. Como diz o Papa Francisco na Querida Amazônia, na Igreja existe e deve ser implementada, cada vez mais, uma cultura eclesial fundamentalmente laical. Porque é do batismo que derivam todos os ministérios, inclusive os ministérios ordenados. E o mais importante, a meu ver, que tem ocorrido na América Latina, é uma intensificação desse movimento sinodal. Primeiro pelo Sínodo da Amazônia, que foi já um sínodo bastante parecido com o atual, porque também foi um sínodo celebrado debaixo para cima. Com o envolvimento das 120 dioceses da região, a partir da participação direta de 70 mil pessoas, e da qual participaram não somente bispos, mas todos os segmentos do povo de Deus, de modo particular o laicado e as mulheres que foram muito protagonistas desse Sínodo da Amazônia. Tudo isso resultou na formação da CEAMA (Conferência Eclesial da Amazônia), um organismo que aglutina toda a igreja da região, e não se trata de um organismo episcopal, mas eclesial. E isso inspirou o Papa Francisco a não celebrar uma VI Conferência Episcopal Latino-Americana, mas a fazer em vez disso, a primeira Assembleia Eclesial, que teve como objetivo central recordar Aparecida, resgatando o Vaticano II e a tradição eclesial latino-americana. Esses dois acontecimentos influenciaram o perfil do atual Sínodo dos Bispos, que agora deixou de ser um 'Sínodo dos bispos’, para se tornar um ‘Sínodo da Igreja’. A Igreja inteira, desde as igrejas locais, é convocada a fazer da sinodalidade o centro do modo de ser e de agir da Igreja, seu modus vivendi e seu modus operandi.

Dom Total : Instaurar uma igreja mais sinodal é o programa de governo do Papa Francisco. Vemos isso desde a Evangelii Gaudium, o documento que mostrou, já em 2013, que ele caminhava nessa direção…

Pe. Agenor Brighenti : O Karl Rahner, que foi um dos pilares da reflexão teológica do Vaticano II, diz que a principal mudança do concílio foi resgatar a catolicidade da igreja presente em cada igreja local. Em cada diocese está a igreja toda, ainda que não seja toda a igreja, porque a igreja é uma comunhão de Igrejas. Isso significa que a igreja de Roma é uma das igrejas que pertence a essa comunhão de igrejas. Claro, ela não é mais uma porque preside a comunhão e a unidade entre essa diversidade de igrejas. Consequentemente, o bispo de Roma é situado dentro do colégio episcopal e é um primus inter paris, um primeiro entre outros. E isso ficou muito evidente no Sínodo da Amazônia quando o Papa votou juntamente com a assembleia. No Concílio Vaticano II, não deixaram o Papa ser membro da assembleia, ele foi uma espécie de moderador sobre a assembleia. No sínodo agora, da Igreja, o Papa Francisco tem se situado como um membro da igreja, como bispo de Roma. E é nessa condição que ele preside a unidade das Igrejas. Com isso, o pontífice está colocando em prática essa eclesiologia do primeiro milênio da Igreja. Foi no segundo milênio que perdemos o exercício da sinodalidade. No primeiro milênio, a Igreja foi regida pelos sínodos diocesanos, os concílios regionais, provinciais e ecumênicos. Os próprios ministérios da Igreja não eram ministérios monárquicos. A Igreja, durante séculos, teve uma equipe de bispos à frente das igrejas locais, bem como uma equipe de presbíteros e diáconos, dos diversos ministérios que surgiram na Igreja. Então, esse exercício sinodal no primeiro milênio se perdeu no segundo. E o Concílio Vaticano II, num retorno às suas fontes bíblicas e patrísticas, resgata esse perfil da Igreja que nunca deveria ter saído de cena. Ainda sofremos muito as consequências de um milênio de uma igreja hierárquica, com relações verticais, instituições rígidas e centralizadoras, com uma concentração do poder na Cúria Romana, a partir do século XVI. E o Papa Francisco, desmontando aquela figura imperial do papa, e também já resgatou a função da Cúria romana, que não é um organismo de controle, nem uma estrutura intermediária entre o papa e as conferências episcopais, mas uma instância de apoio, de serviço às conferências episcopais nacionais. Portanto, estamos colocando em prática um poder na Igreja que é um poder de serviço, não um poder centralizador, potestas, que gera dependência, mas um poder que gera autonomia. Se não há autonomia, não há responsabilidade. E na Igreja somos todos corresponsáveis pelo batismo E o sínodo quer implementar essa eclesiologia da primeira hora da igreja. Não é invenção do Vaticano II, mas um retorno às fontes bíblicas e patrísticas.

Dom Total : Sabemos que, em âmbito oriental, o sínodo é um organismo de governo. Diferente do catolicismo ocidental, onde ele é um órgão consultivo. Será que há a possibilidade que, um dia, também em âmbito ocidental, o sínodo se torne um espaço de decisão como acontece no cristianismo oriental?

Pe. Agenor Brighenti : O Sínodo dos bispos nasceu com essa vocação, com essa finalidade. Inclusive o Papa João 23 acreditava piamente que, com o Concílio Vaticano II, chegar-se-ia à plena unidade com a igreja oriental. Porque tudo o que a igreja oriental pede, na verdade, é um exercício diferente do primado. Na Igreja Primitiva, que foi regida pelos cinco patriarcados, o Bispo de Roma era um dos patriarcas, uma das instâncias que evocavam a unidade das igrejas, Então, um sínodo universal - ou um concílio universal - é expressão dessa unidade das igrejas. E no caso do Oriente, o sínodo tem uma função de gerenciamento, de administração das igrejas, uma instância não só consultiva, mas deliberativa, decisória. E o Sínodo dos bispos nasceu com essa vocação. Não está proposta do sínodo, que nasceu no Vaticano II, que ele deveria ser consultivo. Tanto que o cardeal Aloísio Lorscheider, num dos últimos sínodos que ele participou, disse, à imprensa, de maneira muito contundente, que ‘o sínodo dos bispos nasceu para ser deliberativo, passou a funcionar como consultivo, e não passava de decorativo’. E o Papa Francisco está caminhando para fazer do sínodo uma instância deliberativa. No Sínodo da Amazônia, por exemplo, houve votação de todas as matérias e, pela primeira vez, foi produzido um documento final votado pela assembleia. Ele é um documento oficial do Sínodo da Amazônia. Tanto que se está trabalhando, depois do sínodo, em diversas comissões, implementando as decisões do sínodo da Amazônia, e muitas delas vêm do documento final. Então se assumiu o documento final como um documento oficial do sínodo. Isso, de alguma maneira, é já torná-lo deliberativo. Segmentos da Cúria Romana tiveram dificuldade de acolher essa novidade. [...] Nesse sentido, esse atual sínodo certamente vai promover um aperfeiçoamento desse organismo para que ele possa cada vez mais ser expressão de uma instância não simplesmente consultiva, mas deliberativa, de modo que essa seja a extensão do primado, do governo da unidade das igrejas que o papa exerce por meio de seu ministério petrino.

Dom Total : A respeito dessa mudança de ‘Sínodo dos bispos’ para ‘Sínodo da Igreja’. O que a gente pode esperar? Mais leigos convocados para os sínodos? Como ficam os padres sinodais nessa história? Teremos, dessa forma, ‘leigos sinodais’ com poder de voto? É essa a expectativa?

Pe. Agenor Brighenti : Já para esse sínodo de agora, sobre a sinodalidade, vai participar por ofício uma mulher, que está ligada a um dicastério da Cúria Romana, numa função que, historicamente dá a ela poder de voto (Irmã Nathalie Becquart). E não haverá nenhum empecilho para que ela, de fato, exerça sua função e tenha direito de voto, agora, no sínodo da sinodalidade. É a porta aberta para que haja uma efetiva participação dos leigos e leigas, religiosos e religiosas, não somente dos ordenados. Uma efetiva participação no processo de escuta, discernimento e de tomada de decisão. Não há exercício da sinodalidade, em sentido pleno na Igreja, no sensus fidelium, se os leigos e leigas não tiverem a prerrogativa de poder votar, porque isso é um reconhecimento àquilo que diz o Concílio Vaticano II, de que há uma radical igualdade e dignidade em todos os ministérios. E os ministros ordenados se assentam sobre o batismo, que é a base laical da igreja. Então, certamente, a Episcopalis Communio, essa constituição que já reformou o sínodo dos bispos, e certamente haverá um outro texto mais sintonizado com a reforma da Cúria Romana, que também vai repensar a figura do sínodo talvez a partir da prática atual, sendo celebrado sempre de baixo para cima. Começando pelas igrejas locais, depois indo para o âmbito nacional, continental e universal. Dessa forma a perspectiva é que não somente os ditos ‘padres sinodais’ votem, mas também os membros das assembleias nos mais diversos âmbitos eclesiais, de modo que possam ser escutados, discernir e decidir de acordo com aquilo que aconteceu no primeiro milênio da Igreja. Havia aquela máxima, nos primórdios : ‘O que concerne a todos deve ser discernido e decidido por todos’. E o documento preparatório do atual sínodo retoma esse princípio. Certamente, a tendência é fazer disso uma prerrogativa jurídica, porque se essas práticas não se tornam decisões jurídicas, se não se tornam reforma das estruturas da Igreja, aí não muda nada. Existe mudança, realmente, quando muda a estrutura. E, nesse particular, há uma distância que precisa ser corrigida e adaptada à nova teologia que está agora sendo implementada, que é a teologia da Igreja, a teologia da primeira hora do cristianismo.

Dom Total : Inclusive muitos historiadores atribuem as várias crises que ocorreram no segundo milênio da história da igreja à crise da própria sinodalidade. Então, a gente demonstrou, olhando para a História da Igreja, que quanto menos sinodalidade, mais clericalismo. É isso?

Pe. Agenor Brighenti : Sem dúvida, porque, no segundo milênio, a eclesiologia que vai se estabelecer é aquilo que o Padre Yves Congar diz como é uma ‘hierarquiologia’, reduzindo a Igreja à hierarquia. Tanto que a eclesiologia pré-conciliar dizia com todas as letras (Mystici Corporis Christi) : o clero é o polo ativo, fonte de toda a iniciativa e de todo o poder, enquanto que os leigos são o polo passivo : a quem cabe obedecer docilmente ao clero. A Igreja, então, de acordo com essa visão, é composta por dois gêneros de cristãos : clero e leigos. E o concílio tem outra eclesiologia, resgatando as fontes, ou seja, há um único gênero de cristãos, que são os batizados. Portanto, não é o binômio ‘clero e leigos’ : isso não é a Igreja de Jesus Cristo. O binômio é comunidade e ministérios. Uma comunidade toda ela ministerial. Isso é o cristianismo. Então, evidente que historicamente essa eclesiologia do corpo místico de Cristo, vista como comunidade perfeita, perdeu de vista essa característica de todo o primeiro milênio e por circunstâncias diversas. E isso muito mais por influência de poderes temporais, por ligação a certas instâncias político-econômico-sociais, que por fruto de discernimentos e decisões do ponto de vista teológico. Então foram, às vezes, influência de um poder temporal que é copiado, e entra na igreja de maneira desavisada, para depois receber um sentido teológico. Quando, na realidade, é muito daquilo que o Papa Francisco fala : mundanismo. Esse mundanismo, com critérios pouco evangélicos, que pautam estruturas e realidades da Igreja. Por isso, é necessária uma conversão pastoral da Igreja, e que tudo esteja pautado como a constituição de reforma da Cúria Romana coloca : que tudo seja pautado pela evangelização. Esse é o objetivo, para isso que a Igreja existe. Tudo deve estar em função disso : as iniciativas, as estruturas, para que de fato sobressaia uma igreja povo de Deus, composta por todos os batizados e orientada pelo sensus fidelium.’

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://domtotal.com/noticia/1582517/2022/06/o-sinodo-pode-se-tornar-um-orgao-deliberativo-diz-teologo/

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