Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)
*Artigo
do Padre Geraldo de Mori, SJ
‘Embora os sentidos sejam as
portas e as janelas de acesso ao mundo, nem todas as culturas lhes conferem o
mesmo significado. A tradição filosófica grega, por exemplo, uma das fontes do
mundo ocidental, confere a primazia, sobretudo, ao olhar. É o caso de Platão,
um dos maiores expoentes da filosofia antiga, para o qual é pela contemplação,
exercida principalmente pelo olhar, que se chega ao ‘mundo das ideias’,
fonte da beleza, da bondade e da verdade do ser. Tudo o que os demais sentidos
captam pertence ao mundo das ‘sombras’, privado de qualquer significado
relevante. Essa perspectiva marcou a tradição espiritual do cristianismo, que
em alguns de seus itinerários místicos é atraída pela contemplação, e a
teologia cristã, que em suas formulações sistemáticas vê na ‘visão beatífica’
a plenitude da realização do ser humano.
O mundo judaico, apesar de não
desvalorizar o olhar, como se percebe no poema da criação de Gn 1,1-2,4a, no
qual Deus ‘vê’ as diversas obras e as qualifica como ‘belas’ ou ‘boas’,
confere a primazia do acesso ao mundo à escuta. De fato, a saga do Egito começa
com uma contemplação e uma audição do próprio Deus. Segundo Ex 3,7, Deus viu ‘a
humilhação’ de seu povo no Egito e ouviu ‘seu clamor’, ou, ainda no
mesmo capítulo, ‘o clamor dos israelitas’ chegou até ele, que viu a ‘opressão
que os egípcios’ faziam pesar sobre eles (Ex 3,9). O conhecimento dado pela
visão e pela audição faz com que Deus ‘desça’ para livrar seu povo das
mãos do opressor (Ex 3,8), enviando para isso Moisés, através do qual ele irá
conduzir os hebreus para a terra da promessa (Ex 3,10).
A capacidade de escuta, que
suscita o movimento da ‘descida’ divina, se torna injunção à escuta num
dos ‘Credos’ do povo da aliança, o que se encontra em Dt 6. É
interessante notar que o ‘objeto’ da escuta diz respeito inicialmente a duas
afirmações sobre Deus : ‘o Senhor é nosso Deus, o Senhor é um’ (Dt 6,4).
Por um lado, a escuta diz que o Senhor ‘é’ o Deus de Israel, e por
outro, afirma que ele é ‘um’. Em seguida, vem o apelo a amá-lo, de todo
o coração, de toda alma e com toda a força (Dt 6,5), guardando no coração suas
palavras (Dt 6,6), ensinando-as aos filhos e tendo-as diante de si todo o dia,
tomando-as como sinal e colocando-as nos umbrais das portas e portões (Dt
6,7-9).
O papel desempenhado pela
escuta no seio do povo eleito explica, em grande parte, a interdição de criar
imagens, que eram acessíveis aos olhos e passíveis de se tornarem ‘ídolos’,
mas que exigiam ‘sacrifícios’ e tornavam os que deles participavam
insensíveis às injustiças. O próprio nome de Deus era impronunciável e o
conjunto da fé judaica tem a convicção de que ver a Deus significava morrer.
Nesse sentido, apesar de algumas ‘teofanias’ explorarem a visão, como a
de Is 6,1.5, elas são indissociáveis de uma palavra dirigida por Deus a quem
ele chamava para uma missão : ‘ouvi então a voz do Senhor’ (Is 6,8). O
conjunto da ação profética em Israel se desenvolve ao redor de uma palavra
escutada, que se tornava palavra pronunciada. Em geral, tratava-se de um apelo
à conversão, feito muitas vezes com ameaças, uma vez que Israel tinha se
desviado da Lei, deixando-se seduzir pelos ídolos e ignorando os apelos éticos
da Torah.
O cristianismo herdou do
judaísmo essa primazia da escuta, não só porque Jesus se fez arauto do anúncio
da proximidade de um Reino em advento, convocando à conversão, mas também
porque, após sua morte e ressurreição, o coração da pregação cristã se resumiu
no anúncio de que no mistério pascal Deus havia dito sua palavra definitiva à
humanidade, convidando-a a deixar-se reconciliar por Deus em seu Filho (2Cor
5,19-20). O apóstolo Paulo, em Rm 10,17, reitera a convicção central do
judaísmo de que a fé vem pelo ouvir, e o conteúdo do ouvir não é mais os
preceitos da Torah, por mais santos que sejam, mas a vida, os ensinamentos, a
morte e a ressurreição de Cristo. A escuta desse anúncio deve suscitar no
coração o apelo à fé, traduzindo-se em uma vida que doravante buscará estar à
escuta do que diz a existência de Jesus Cristo para o fiel quando se encontra
diante de situações parecidas com as que encontrou o Mestre.
Alguns pensadores contrapõem o ‘mundo
segundo o olhar’ ao ‘mundo segundo o escutar’. Segundo eles, a
visão, que está na origem da filosofia grega e perpassa toda a racionalidade
científica do mundo ocidental, é determinada pelo cosmos e tende a ‘objetivar’
e manipular tudo o que é passível de apreensão do olhar. Essa racionalidade
está na origem da dominação do mundo pela técnica, que levanta tantas questões
nas últimas décadas, sobretudo por causa das ameaças que a objetivação e a
exploração representam para o futuro da vida no planeta. Por sua vez, a escuta,
que é central no mundo bíblico, mais que pelo cosmos, está fundada nas
relações, que estão na origem da ética e da fé. Não por acaso o resumo da Torah,
que são os ‘dez mandamentos’, apela ao amor a Deus, seguido das
interdições de nomeá-lo, e em seguida, de todas as injunções relacionadas ao
respeito aos demais humanos, sobretudo os mais vulneráveis.
A contraposição entre o mundo
como cosmos e o mundo como relação é interessante, embora deva ser matizada,
uma vez que todos os sentidos participam da apreensão do real. As diferenças
podem, contudo, ajudar a perceber o que mais conta no acesso de cada pessoa ao
mundo e que define sua percepção da própria experiência religiosa e espiritual.
De fato, muitos fiéis buscam na religião o maravilhoso, o milagroso, que
provoca ‘temor e tremor’, segundo a clássica definição do sagrado de
Rudolf Otto. Contudo, esse tipo de relação com o transcendente não muda necessariamente
a existência de quem o experimenta e promove, pois muitas vezes é definido pelo
desejo de manipulação, que transforma Deus em ídolo ou busca convencê-lo dos
próprios méritos. Diferente é a experiência de relação com Deus segundo a
revelação bíblica, para a qual, mais que sagrado, Deus é santo e chama à
santidade. Esta, diferente da sacralidade, supõe relação, que por sua vez,
demanda a escuta, a capacidade de deixar-se afetar pela alteridade, seja a do
ser humano, qualquer que seja a sua condição, seja a de Deus, que ama e convida
a amá-lo. Essa dupla dinâmica deve ‘mover as entranhas’, levando à
compaixão, ao cuidado e à defesa do outro em situação de vulnerabilidade, ou ao
agradecimento e ao louvor, entendendo-se fruto de um dom gratuito e imerecido.’
Fonte : *Artigo
na íntegra https://domtotal.com/noticia/1540937/2021/09/a-escuta-como-origem-da-beleza-da-bondade-e-da-verdade-do-mundo/
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