Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)
*Artigo
de Mirticeli Dias de Medeiros,
jornalista e mestre em História da Igreja, uma das
poucas brasileiras
credenciadas como vaticanista junto à Sala de Imprensa
da Santa Sé
‘Católicos
histéricos nas redes sociais, esta semana, após Francisco autorizar, através do
motu proprio Spiritus Domini, que também as mulheres recebam os
ministérios de leitor e acólito. Uma decisão simples que causou um
alvoroço ad aeternum. Cheguei a ler, num site católico, que
Francisco ‘quebrou uma tradição’. Resta saber, porém, a qual tradição a
pessoa se refere. Certamente não é essa, de 2 mil anos.
No
caso do leitorado, os primeiros cristãos, em âmbito latino (ocidental), já no
século 2º, delegavam alguns fiéis para exercer essa função. À época, esse tipo
de serviço não estava associado, exclusivamente, à ordenação sacerdotal. As
fontes também não especificam se era reservado somente aos homens. Lembrando
que, nesse período (entre os séculos 1º e 3º), surgem também as diaconisas,
cujo papel na Igreja primitiva vem sendo estudado até hoje.
O
escritor cristão Justino, na sua Apologia I, fala de um αναγινoσκον – do grego, aquele que lê –,
diferenciando-o do presbítero que presidia a celebração. Mais à frente,
Hipólito Romano, na sua Traditio apostolica, é ainda mais claro : ‘O
leitor é constituído a partir do momento que o bispo lhe entrega o livro.
Porém, ele não recebe a imposição das mãos’.
Foi
na Idade Média que esse ministério passou a integrar uma das fases de
preparação para o sacerdócio. Até então, nem todos os leitores eram,
necessariamente, ‘seminaristas’ (uso o termo moderno para facilitar a
compreensão). Inclusive crianças, após uma rigorosa preparação, com o auxílio
de tutores, poderiam fazer parte do grupo de leitores.
Todos
deveriam conhecer profundamente as Escrituras (de cor e salteado, hein?), eram
responsáveis pela conservação dos arquivos da diocese e instruíam os
catecúmenos que se preparavam para receber o sacramento do batismo.
Em
se tratando do acolitato, também há fontes primitivas que falam a respeito.
Após a divisão do clero romano em regiões eclesiásticas, feita pelo papa
Fabiano, no século 3º, os acólitos eram tidos como aqueles que auxiliavam os
diáconos. O teólogo Eusébio de Cesaréia, ao falar sobre o Concílio de Nicéia
(235), os identificava como ‘aqueles que faziam parte da comitiva do bispo’.
Até
o século 5º, há poucas referências acerca dessas pessoas, o que impede os
historiadores de definir, exatamente, que tipo de papel elas desempenhavam. O
documento Collectio canonum hibernensis (século 7º) chega a
dizer que esses acólitos eram como os salmistas e cantores; ou seja, ‘assumiam
atividades litúrgicas fora das desempenhadas pela hierarquia eclesiástica’.
É
só ao final do século 5º, na Gália, que eles passarão a auxiliar o sacerdote no
altar. Nessa antiga região romana, que hoje corresponde à França, parte da
Bélgica e um pedaço da Itália, eles prestavam um serviço mais parecido com o
que vemos hoje : carregavam as luminárias durante a procissão do evangeliário e
entregavam ao presidente da celebração o vinho e a água, para que pudessem ser
consagrados.
Há
quase 50 anos, à luz da própria história da Igreja, o papa Paulo VI declarava,
em 1972, que acolitar e ler na missa eram serviços laicais. Apesar de destacar
que somente homens poderiam exercê-los, deixou claro, ao tirar-lhes o status de
‘ordens menores’, que se tratavam de ministérios, os quais poderiam ser
desempanhados por fiéis comuns, designados pelo bispo.
Sendo
assim, quem acusou Francisco de ‘laicizar a função’ ou ‘realizar uma
grande revolução’ ao optar pela alteração do artigo 230 do Código de
Direito Canônico, esqueceu-se dessa abertura feita lá atrás. Sem contar que, na
prática, somente seminaristas, principalmente no Brasil, acabaram sendo
instituídos leitores e acólitos, o que contribuiu para associar esses
ministérios somente à vida clerical.
Francisco
simplesmente estendeu a concessão às mulheres, indo ao encontro da própria
realidade : são elas, hoje, que mais atuam nas paróquias. São elas que, em
comunidades isoladas, na ausência de padres, sustentam comunidades inteiras.
Negar esse reconhecimento é desumano; sinal que a pessoa está mais preocupada
com as ‘pompas viris do altar’ que com a experiência do altar enquanto
lugar de sacrifício. As mulheres estavam ao pé da cruz, dizem os Evangelhos.
Para
além da ignorância em relação ao próprio magistério da Igreja, há uma questão
muito mais grave que paira sobre a decisão de Francisco : a misoginia. Sim,
precisamos falar sobre isso.
Para
alguns, a mulher, na Igreja, só serve para limpar o chão e passar a roupa do
padre. E nem adianta negar que exista esse tipo de postura, fazendo uso de
eufemismos sem fim. É uma subvalorização da figura feminina que se intensifica,
de maneira assustadora, dentro desses círculos tomistas : mulher ‘feminina’
é aquela que se torna a serviçal do macho-alfa, não sua companheira. O próprio
papa Francisco já admitiu que essa mentalidade precisa ser superada, inclusive
dentro da instituição que governa.
Já
outros grupos consideram que a recente decisão de Francisco é um ‘prêmio de
consolação’ às mulheres que, há muito tempo, solicitam o diaconato
feminino. O debate reproposto recentemente pelo Sínodo da Amazônia
(Outubro-2019), levou o pontífice a criar uma comissão para estudar o diaconato
feminino, com base no que ocorreu nos primeiros séculos do cristianismo.
Apesar
de o pontífice ser pessoalmente contra esse tipo de concessão, e dizer
claramente que ‘clericalizar as mulheres não é a melhor saída’, quer
compreender, através de um estudo aprofundado, de que forma elas atuavam no
início da era cristã.
A
impressão que temos é que o santo padre, de certa forma, encontrou uma solução
para não precisar mexer em algo que, segundo sua visão, não possui ‘consistência
teológica e doutrinal’ para ser levado adiante. Mesmo assim, a comissão de
estudos permanece ativa e pode, ainda, trazer surpresas. Ordenação de mulheres?
Não acredito, já que o papa foi enfático ao tratar da questão. Mas uma maior
participação delas na vida e nas decisões da Igreja, certamente. Ainda que ele,
com o poder das chaves, crie funções e ministérios para que elas se sintam
ainda mais valorizadas.’
Fonte : *Artigo na íntegra https://domtotal.com/noticia/1493879/2021/01/leitoras-e-acolitas-bem-vindas/
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