*Artigo
de Jardel Sebba,
jornalista
‘Guido
Schäffer era tecnicamente volta-redondense, mas foi muito cedo para Copacabana,
bairro carioca onde foi criado. Morto há dez anos, a ele são atribuídos
milagres e curas, o que fez com que uma legião de fiéis passasse a pedir sua
canonização. Seus defensores inclusive acreditam que a imagem de um santo
carioca, jovem e esportista, pode ajudar a Igreja a se reconectar com o público
mais jovem.
Seu
processo de canonização, aberto em 2015 no Vaticano, embora não tenha prazo
para ser concluído, caminha a passos animadores.
Se
vier a se tornar santo, Schäffer será provavelmente um dos mais mundanos.
Criado em Copacabana, em uma família de classe média, pai médico e mãe dona de
casa, ele foi o irmão do meio, entre Angela e Maurício.
‘Nossa
infância foi muito feliz em Copacabana. Guido sempre gostou da praia, de
brincar com bola, de super-heróis como o Hulk e tinha bastante amigos do
colégio e da praia’, lembra a irmã mais velha.
Entre
os amigos do tradicional colégio católico Sagrado Coração de Maria, também em
Copacabana, uma amizade surgiu depois de uma confusão.
Um
grupo de alunos costumava voltar a pé para casa depois das aulas, entre eles
Guido e Samir. Um terceiro colega costumava ser alvo recorrente das
brincadeiras dos demais, e um dia Samir achou que Guido estava pegando pesado
demais no bullying. Os dois começaram a discutir e a diferença foi resolvida
ali mesmo, no braço e em uma movimentada esquina de Copacabana.
‘A
gente saiu na porrada na frente de todo mundo, na esquina das ruas Siqueira Campos
e Tonelero’, lembra o hoje comerciante Samir Jure Aros. No dia seguinte, a
notícia da briga correu o colégio e todos esperavam que ela fosse continuar na
hora da saída da aula. Mas se frustraram.
‘Estava
aquela tensão, todo mundo esperando a gente se encontrar, quando o Guido olhou
para mim, disse que não fazia o menor sentido aquela briga e, daquele dia em
diante, viramos os melhores amigos’, lembra. Os alunos do colégio católico
seguiram inseparáveis na fé católica durante a adolescência, no grupo de oração
da Comunidade Bom Pastor, em Copacabana. E se uniram ainda mais no surfe. ‘A
gente fez várias viagens de surfe juntos, e conversava muito dentro da água,
coisa de melhores amigos mesmo’, lembra Samir.
Desejo de ser santo
Parece
uma ideia precoce, mas quando começou a frequentar esse grupo de oração, a
ideia de santidade não era algo estranho para Guido Schäffer. ‘Lembro bem de
inúmeras vezes ele desejar ser santo. Uma vez ele contou de um sonho que teve,
acho que quando tinha seis anos de idade, no qual aparecia uma multidão de
jovens que o seguia, e ele os levava para Jesus’, lembra Sabrina Aleixo,
que o conheceu na adolescência.
A
mãe dela coordenava o grupo de oração e quebrou a perna numa trilha que os
integrantes fizeram na Pedra da Gávea. Como passou por cirurgia e ficou muitos
dias em repouso, Guido ia visitá-la com frequência, fase em que ele e Sabrina
ficaram amigos.
‘A
gente passava horas falando ao telefone e ele sempre falava do tesouro que era
a Igreja Católica. Ele me mostrou algo desconhecido’, lembra.
A
irmã Angela se recorda que Guido mostrou desde cedo a vocação não só para a fé
mas também o carisma para mobilizar as pessoas ao redor em torno dela.
‘Ele
tinha jeito para chamar os amigos para a fé. Quando era adolescente, chamou a
turma que pegava onda com ele para se preparar para a Crisma e também para
rezar o terço, numa reunião que minha mãe fazia uma vez por mês’, lembra.
O
ano de 1998 foi fundamental na trajetória dele. Foi quando se formou em
Medicina e decidiu fundar um novo grupo de oração, o Fogo do Espírito
Santo, na paróquia Nossa Senhora da Paz, em Ipanema, sob os auspícios de padre
Jorjão, pároco local e conhecido pelo trabalho com jovens.
Segundo
sua irmã, a partir dali ‘ele se desenvolveu rápido na pregação da palavra de
Deus’.
Mas
até então era oficialmente apenas surfista e médico - tinha inclusive uma
namorada e planos de casar. A vocação religiosa só seria externada com clareza
dois anos mais tarde.
Andar com fé
‘Eu
conheci o Guido no grupo de oração em 2000, quando tinha 26 anos, e me chamou a
atenção de imediato aquele grupo de pessoas jovens. E com um cara bonito, com
cara de surfista, atlético, explicando trechos da Bíblia’, lembra a
psicóloga Georgia Guimarães, que diz ter se sentido em casa assim que chegou à
igreja em Ipanema.
Ela
havia ido à missa do padre Jorjão e acabou ficando no grupo de oração. Não saiu
mais.
‘A
gente se reunia às terças-feiras e, quando acabava, ninguém tinha vontade de ir
embora. A gente sempre esticava, ficava conversando até mais tarde, ia comer
uma pizza, e conversava muito sobre o que havia lido e discutido com o grupo’,
lembra a psicóloga, que já era casada quando se juntou ao grupo e lembra de
Guido ter celebrado o fato como uma possível profecia de que novos casais
poderiam se formar no grupo (o que, segundo relatos, de fato aconteceu).
‘Lembro
da nossa família se assustar, achar que a gente estava ficando muito carola,
porque só saia com o pessoal da igreja, mas era de fato muito bom conviver com
eles, as conversas eram desafiadoras e as amizades duraram até hoje’, diz
Georgia, que, a convite de Guido, trabalhou como voluntária nas Missionárias da
Caridade, ordem fundada por Madre Teresa de Calcutá na qual ele também atendia
a população de rua.
Esse
trabalho também marcou uma mudança que foi notada na casa de Guido.
‘Quando
ele se engajou na Pastoral da Saúde da Santa Casa da Misericórdia, em 2002,
notei que havia algo de diferente nele. Este grupo ia todos os domingos à Santa
Casa visitar os doentes e passava a manhã lá, e eu achava interessante ver que,
apesar de amar o surfe, ele abriu mão deste esporte aos domingos’, registra
a irmã.
Naquele
ano, ele ainda ajudaria um fiel com dúvidas sobre a fé cristã na fila do
confessionário, em Copacabana, e, durante a conversa, encontraria outro jovem
com grande conhecimento no assunto. E faria mais um grande amigo, o engenheiro
Fernando Motta Simões.
Ele
dava carona a Guido todos os domingos de manhã, a caminho da Pastoral da Saúde,
e passaram repetir a parceria em outras missões. ‘Em 2002, eu tinha 28 anos
e todos os meus amigos de igreja eram mais velhos. Eu então pedi a Deus um
amigo da minha idade, e eu e o Guido tínhamos meses de diferença’, relembra
Fernando. ‘O Guido foi o grande amigo de caminhada que Deus me deu.’
A morte não é o fim
No
dia 1º de maio de 2009, Guido saiu para surfar no seu trecho preferido da
praia, no Recreio dos Bandeirantes. Na água, uma prancha solta atingiu sua
nuca, o que causou uma contusão que o fez desmaiar e morrer afogado. Faltavam
alguns meses para ele concluir os estudos de teologia no Seminário
Arquidiocesano de São José. Em princípio, ninguém acreditou que alguém tão
íntimo do mar poderia ter morrido dessa forma.
‘Quando
recebi a notícia por telefone, achei que fosse uma brincadeira sem graça, não
entendi como era possível’, lembra Sabrina. ‘A gente fica em choque, só
depois que vai caindo na real.’
Samir
lembra da última conversa que teve com o amigo de colégio. ‘Ele me falou
que, quando se tornasse padre, eu precisaria ajudá-lo a organizar um campeonato
de surfe entre os seminaristas.’
‘A
morte de um irmão ainda jovem e cheio de sonhos não é fácil para ninguém. É
difícil de aceitar e sempre vai existir a saudade, principalmente em momentos
como o aniversário dele, o Natal’, diz Angela.
‘Mas
isso nunca abalou a minha fé, nem a de meus pais. Da forma como eu entendo, a
fé não é um sentimento. A fé, para mim, é uma decisão. Eu creio em Jesus
Cristo, creio na vida eterna por Ele prometida, creio que um dia todos nós
ressuscitaremos. Nunca deixei de acreditar no imenso amor de Deus por todos
nós, por meu irmão, por meus pais.’
Em busca de dois
milagres
Hoje,
Guido Schäffer é considerado pela Igreja um Servo de Deus, primeiro título que
se recebe num processo de canonização. O próximo título que deve vir em breve é
o de Venerável, quando o processo conclui que a pessoa viveu as virtudes
cristãs de forma heroica, ou que sofreu realmente o martírio; o terceiro título
é o de Beato, quando se comprova a existência de um milagre obtido pela sua
intercessão; e o último e mais importante é o de Santo, quando um segundo
milagre é identificado.
‘Quando
é chamado de Venerável, a causa já ganha dimensão pública. Com a realização de
um milagre, a pessoa já pode ser venerada publicamente em sua base ou Igreja
local e, com mais um milagre e a canonização, ela pode ser venerada em qualquer
parte do mundo católico’, explica o padre Valeriano dos Santos Costa,
professor da Faculdade de Teologia da Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo (PUC-SP).
Mas
o processo é lento - e difícil. A comprovação dos milagres passa por uma junta
médica, que precisa atestar cientificamente que determinada cura não poderia
ter se dado de outra forma senão pelos mistérios da fé.
Nessa
caminhada, os fiéis contam com a ajuda de Dom Roberto Lopes, oficialmente
vigário episcopal para os Institutos de Vida Consagrada, Sociedades de Vida
Apostólica, Movimentos Eclesiais e Novas Comunidades e, desde 2012, delegado
arquiepiscopal para as Causas dos Santos. Ou seja, o responsável pelo processo
de beatificação e canonização no Vaticano.
Em
entrevista ao portal da arquidiocese do Rio de Janeiro, em maio deste ano, Dom
Roberto informou os detalhes do processo de Guido : ‘Encerrada a fase
diocesana há dois anos, o processo encontra-se em Roma. No momento, estamos
coletando os possíveis milagres e aprofundando o material coletado. Quando se
configurar realmente como milagre, vem a beatificação.’
O
processo de canonização, como a Igreja, mudou ao longo dos anos.
‘Tudo
começou na Igreja primitiva, com o culto aos mártires. Bastava alguém ser
considerado mártir, ou seja, ter morrido pela fé, que já tinha seu nome
associado ao livro dos mártires e seu culto se espalhava espontaneamente.
Depois, candidatos não-mártires também passaram a ser venerados
espontaneamente. Porém, no século 17, a Igreja resolveu criar um sistema rígido
para impedir abusos ou políticas locais’, explica o padre Valeriano dos
Santos Costa.
‘Foi
então que ficou difícil o acesso ao cânone dos santos, daí a palavra
canonização, com condições rígidas para se entrar. Uma das exigências era a
prática reconhecida oficialmente pela Igreja de três milagres. Foi o papa João
Paulo 2º, hoje santo, que diminuiu para dois milagres.’
O
teólogo ressalta a importância do então papa na busca por uma dimensão mais
humana da santidade.
‘A
partir de João Paulo 2º, a canonização começou a ser considerada mais humana,
mais próxima, de tal forma que o santo não parecia mais um 'super-homem', mas
alguém com fragilidades como nós, que buscou na graça de Deus a força para
chegar a atitudes heroicas no cotidiano da vida. Assim, ele se torna um
estímulo para os outros’, conclui.
O
milagre muitas vezes é colocado como o centro do processo de beatificação e
canonização, mas ele é menos essencial do que parece. Em 2017, por exemplo, o
papa Francisco canonizou 30 brasileiros de uma vez só, sem milagres. Eram
mártires que foram assassinados por tropas calvinistas holandesas no ano de
1645, na região do Rio Grande do Norte. Foram duas chacinas em um intervalo de
três meses, a primeira no Engenho de Cunhaú, a seguinte na comunidade de
Uruaçu.
Até
então, eram apenas seis os santos brasileiros, sendo que apenas um nascido de
fato no país : frei Galvão - mês passado, a baiana Irmã Dulce foi anunciada
pela Santa Sé como a 37ª santa brasileira.
Em
resumo, milagre é importante, mas não é tudo.
‘Não
são os milagres que definem se alguém foi santo ou não, mas a vivência do
Evangelho, que pode ser sintetizado na vivência da caridade de Cristo’, explica
o padre Boris Augustín Nef Ulloa, diretor da Faculdade de Teologia da PUC-SP.
Os
relatos de milagres atribuídos a Guido têm aumentado nos últimos anos. Um deles
envolve o cardiologista Bernardo Amorim, que teve o corpo paralisado por uma
doença nervosa e se recuperou muito antes do previsto pelos médicos - a mãe
dele atribui a cura às orações que fez a Guido.
Outros
casos atribuídos ao seminarista envolvem, por exemplo, uma freira que se livrou
de diabetes, uma criança que sobreviveu a uma hipotermia e uma dona de casa,
cujo filho foi amigo de Guido, que relata que as orações dirigidas ao finado
jovem fizeram com que seu marido superasse uma grave crise de diverticulite sem
cirurgia.
Mais vivo do que nunca
Partes
da memória de Guido Schäffer estão espalhadas pelo Rio de Janeiro. O trecho de
cerca de 140 metros de praia onde ele costumava surfar, no Recreio dos
Bandeirantes, e onde sofreu o acidente fatal, passou oficialmente a se chamar
Praia do Guido ano passado.
Desde
2016, o trecho da praia também abriga todo dia 1 de maio uma missa em memória
de seu aniversário de morte. Missa promovida pela Associação Guido Schäffer,
presidida pelo padre Jorjão e sediada na igreja Nossa Senhora da Paz, para onde
seus restos mortais foram em 2015 e onde, desde então, recebem velas, flores,
devotos e depoimentos surpreendentes.
Um
memorial com seu nome, mantido pela família, foi inaugurado em março deste ano
na Santa Casa da Misericórdia, no centro, onde Guido foi estagiário, residente
e médico-assistente. O grupo de orações que ele fundou na igreja de Ipanema, o
Fogo do Espírito Santo, voltou a se reunir há quatro anos, agora no colégio São
Paulo, no mesmo bairro.
O
reconhecimento da santidade de Guido Schäffer tem um simbolismo para a Igreja
Católica que vai muito além da orla carioca.
‘Reconhecer
que um jovem cristão foi santo significa dizer, de modo particular, a toda a juventude
que o Evangelho de Cristo pode ser vivido pelos jovens. Equivale a dizer que um
jovem que vive em nossas cidades os grandes conflitos do mundo contemporâneo
pode viver o Evangelho de Cristo, encontrar nele uma resposta para os desafios
do tempo presente’, conclui o padre Boris Ulloa.
Há
neste processo a importância da representação, para a Igreja, e da permanência
do legado, para a família e os amigos. Mas Angela Schäffer lembra que o exemplo
do irmão segue independente de qualquer processo em curso no Vaticano.
‘A
propagação do legado de Guido rende frutos concretos do exercício das virtudes
cristãs, como a caridade. Para isso, apoiamos um trabalho feito por médicos
voluntários que dedicam um pouco de seu tempo a atender de forma gratuita a
população em situação de rua. Esta obra se chama Ambulatório da Providência,
funciona em São Cristóvão.’ A assistência aos mais necessitados, ela
ressalta, é o legado mais relevante.’
Fonte
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