segunda-feira, 29 de outubro de 2018

É hora de renunciar a todas as formas de clericalismo


Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 No momento, a Igreja está pagando o preço pela remodelação de seu funcionamento religioso e sagrado.
*Artigo de La Croix International (25-10-2018) 
A tradução é de Victor D. Thiesen


 ‘A comunidade cristã tem vivido uma grande sensação de desconforto.

O problema mais importante que a Igreja enfrenta não é de descobrir quem é responsável pelos escândalos de abuso, mas o que tais escândalos, particularmente o abuso de menores, revela sobre a sua maneira de ser.

Sendo assim, a Igreja precisa buscar não apenas soluções para o comportamento inapropriado de seus padres, mas também questionar sobre as causas que estão profundamente enraizadas.

A ‘tolerância zero’ é totalmente inadequada ao menos que esteja acompanhada de um desejo radical de rever a maneira de como a Igreja funciona, principalmente como os ministérios ordenados funcionam.

A Igreja arriscou atuar mais como uma instituição religiosa do que como uma comunidade de fé. Essa ambiguidade permitiu que algumas coisas entrassem pela janela, coisas que o Evangelho se esforça para expulsar pela porta da frente, como, por exemplo, seu caráter sagrado.

O que estamos vivendo hoje é uma amostra de uma das piores consequências da prática de tornar sagradas certas funções que, na realidade, são e devem permanecer como serviços.

A identificação entre o ministério que serve à vida da comunidade e a identidade pessoal de um ministro ordenado acabou provocando uma série de abusos. Além de serem crime, esses abusos representam uma postura que contradiz o Evangelho.

No momento, a Igreja está pagando o preço pela remodelação de seu funcionamento religioso e sagrado.

Seu jeito de funcionar resultou na criação de uma casta clerical que engloba não só o clero, mas também os leigos clericalizados.

Como os fariseus e os saduceus nos tempos de Jesus, essa casta tende a usar o Evangelho para seus próprios propósitos muito mais do que servir a ele.

Sem o Evangelho, tudo pode continuar como era no passado. Mas o Evangelho impõe uma conversão que inclui enfrentar as críticas que vêm dos outros.

Recolocar o Evangelho no centro da vida da Igreja envolve reconhecer um erro fundamental, que foi deixar de lado a ideia de ser uma comunidade de irmãos e irmãs à serviço da humanidade e não uma ‘religio’ como as outras.

Não serão os dogmas ou as bobagens ritualísticas que farão a diferença. O que precisamos é de um reposicionamento que consiste em renunciar de todos os privilégios que vêm da necessidade de criar cargos de alto escalão.

O que precisamos é de uma posição que privilegie o relacionamento com o outro.

O que estamos de fato fazendo para renunciar a todas as formas de clericalismo e, até mesmo, de machismo? Enquanto não renunciarmos a esse tipo de posicionamento, será difícil curar a doença causada pela crise dos abusos sexuais e pelos abusos de poder e consciência.

Uma Igreja que nasce do Evangelho é uma Igreja despojada de si. Isso significa, também, renunciar à criação de uma casta exclusiva que se apropria do direito de excluir os outros baseada em suas vocações e em seus cargos.

Na verdade, tal mudança só pode vir de baixo.

Devemos nos entregar com entusiasmo ao horizonte de uma refundação.

E isso só poderá ser alcançado se, primeiro, aceitarmos a relativização de uma série de instituições e de maneiras de trabalhar que, mesmo que tenham sido úteis, ao menos em parte, até agora, provavelmente já não são mais apropriadas.

Existem dois aspectos que não só são urgentes, mas também reveladores do desejo real de irmos além da nostalgia de nós mesmos em direção à nostalgia do Reino de Deus.

Primeiro é o papel da mulher na vida da Igreja; depois, a transformação de uma teologia de mortificação para uma teologia do prazer.

Nossa maneira de entender a sexualidade, enquanto forma de apreciar nossa humanidade, é a chave para aceitar as atuais mudanças antropológicas sem as enxergar como uma ameaça, e sim como uma oportunidade.

Isso não implica em relativizar o celibato clerical ou a castidade de um religioso consagrado, mas em reposiciona-las de acordo com a nossa humanidade.

Isso nos permitirá continuar vivendo como vivíamos no passado, inclusive mantendo o celibato, porém com uma nova liberdade e responsabilidade que ainda precisam ser desenvolvidas.’


Fonte :

domingo, 28 de outubro de 2018

Por que os cristãos creem na ressurreição e não na reencarnação?

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 
Cristo ressuscitado. Pintura de Rafaellino Del Garbo


 ‘Talvez um tema da Nova Era (New age) que goza de popularidade no mundo atual é a reencarnação, uma crença que inclusive alguns católicos aceitam apesar de ser incompatível com a fé cristã.

Uma pesquisa recente realizada pelo prestigioso ‘Pew Center’ revelou que, por exemplo, 29% dos cristãos nos Estados Unidos aceitam a reencarnação como algo verdadeiro. No caso dos católicos, 36% admitem esta crença.

Onde surge a crença na ressurreição?

Embora a crença na ressurreição comece quando o Senhor Jesus ressuscitou no terceiro dia depois da sua morte, já havia alguma ideia a respeito disso entre alguns judeus e fariseus.

Os fariseus acreditavam em anjos e almas espirituais e, geralmente, na ressurreição dos mortos’, disse à CNA – agência em inglês do Grupo ACI– o diácono Joel Barstad, professor de Teologia no Seminário Saint John Vianney, em Denver (Estados Unidos).

A ressurreição de Jesus entre os mortos confirmou essa crença, mas também lhe deu uma base sólida e profunda’, acrescentou.

A doutrina cristã sobre a ressurreição se encontra no Catecismo da Igreja Católica, do número 988 ao 1001.

O número 989 assinala : ‘Nós cremos e esperamos firmemente que, tal como Cristo ressuscitou verdadeiramente dos mortos e vive para sempre, assim também os justos, depois da morte, viverão para sempre com Cristo ressuscitado, e que Ele os ressuscitará no último dia. Tal como a d'Ele, também a nossa ressurreição será obra da Santíssima Trindade’.

A palavra ‘carne’ designa o homem na sua condição de fraqueza e mortalidade. ‘Ressurreição da carne’ significa que, depois da morte, não haverá somente a vida da alma imortal, mas também os nossos ‘corpos mortais’ (Rm 8, 11) retomarão a vida’, diz o número 990.

Crer na ressurreição dos mortos foi, desde o princípio, um elemento essencial da fé cristã. A ressurreição dos mortos é a fé dos cristãos : é por crer nela que somos cristãos’, assinala o número 991.

A salvação é a unidade com Cristo, porque Cristo traz o Reino de Deus e esse Reino se realiza na ressurreição’, disse à CNA Michael Root, professor de Teologia sistemática da Universidade Católica da América.

Joel Barstad afirmou que ‘um cristão é um indivíduo que realmente quer ser alguém agora e depois da morte até o fim do mundo, mas para que isso seja possível, vou precisar do meu corpo ressuscitado e os outros precisarão dos seus’, explicou .

Por que os cristãos devem rejeitar a reencarnação?

Segundo Root, as duas razões principais para rejeitar a crença na reencarnação são: que ela se opõe à forma como Cristo oferece a salvação e porque é contra a natureza da pessoa humana.

Root explicou que a reencarnação ‘contradiz a imagem da salvação do Novo Testamento, onde a nossa participação na ressurreição de Cristo é efetivamente do que se trata a salvação’ e ‘nos dá uma imagem muito diferente do que é ser humano: um ente incorpóreo que não está relacionado a nenhum tempo específico’.

O cristianismo leva muito a sério que somos seres com um corpo e qualquer noção de reencarnação considera que o ser só tem um tipo de ligação acidental com qualquer corpo específico, porque a partir dessa perspectiva a pessoa passa de um corpo para outro e outro e outro; e o fato de não ter um corpo específico acaba na ideia de que a pessoa não sabe quem ela é’, destacou Root.

O documento do Vaticano sobre a Nova Era intitulado ‘Jesus Cristo portador da água da vida’ diz que ‘a unidade cósmica e a reencarnação são incompatíveis ​​com a crença cristã de que a pessoa humana é um ser único, que vive uma vida só sobre a qual é totalmente responsável : este modo de entender a pessoa coloca em questão tanto a responsabilidade quanto a liberdade pessoal’.

Barstad também assinalou que a crença na reencarnação não é algo positivo, nem para os budistas e hindus, que veem como algo de que se deve fugir.

Não conheço uma doutrina sólida sobre a reencarnação (...) que considere a reencarnação de uma alma como algo bom; embora de repente alguns hindus ou estoicos a reconheçam como uma necessidade cósmica benigna; mas certamente a aspiração mais profunda’ de alguns que acreditam nisso ‘seja dissolver completamente o nexo das relações temporais e corporais; ou seja, dissolver a relação com o corpo, de modo que não seja possível outra reencarnação para uma alma. A meta da alma é então se converter permanentemente em ninguém’, destacou Barstad.

Esperança da ressurreição

Enquanto os cristãos podem experimentar o sofrimento na vida, também podem viver a esperança de que ‘são amados por Cristo que, através de sua própria morte humana e divina, e ressurreição, pode levá-los até o fim e remodelá-los, fazendo algo lindo a partir de uma confusão’, explicou Barstad.

Além disso, os cristãos esperam a ressurreição dos outros, seus amigos e entes queridos, ‘para viver em um novo céu e uma nova terra’.

Por tudo isso evangelizamos, por isso nos arrependemos dos nossos erros e perdoamos aqueles que nos fazem algum mal. Por isso rezamos pelos mortos e os santos que já tem a visão beatífica de Deus também rezam por nós’.

Os santos, concluiu o especialista, ‘ainda estão envolvidos com o mundo e esperam conosco a revelação final de Cristo que dará a todos a ressurreição’.’


Fonte :

sábado, 27 de outubro de 2018

Tecendo olhares

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

Imagem relacionada
*Artigo d0 Padre Adroaldo Palaoro, SJ


Reflexão sobre a liturgia do 30º Domingo do Tempo Comum
(Mc 10,46-52)


‘Continuamos fazendo caminho com Jesus, rumo a Jerusalém. Estamos na última cena, antes de entrar na ‘cidade santa’, onde acontecerão os mistérios centrais da nossa fé : Paixão, Morte e Ressurreição de Jesus.

Detenhamo-nos em alguns detalhes que o evangelista Marcos deixa transparecer no evangelho deste domingo, para uma maior assimilação do modo de ser e agir de Jesus.

O cego Bartimeu é o símbolo da marginalização : está fora do caminho, jogado na sarjeta, sem poder se locomover, percebendo como os outros vão passando por ele, dependendo deles, de suas esmolas e de seus cuidados, porque não podia fazer outra coisa.

Trata-se de um homem na beira do caminho, que vive às custas da bondade ou da maldade dos outros e, na maioria das vezes, à mercê da indiferença de todos; um homem sem ofício nem benefício e sem serviços sociais que o sustentassem ou o acompanhassem; um ser humano de quem ninguém queria se aproximar porque era tido também como impuro; um cego sem companhia, sem possibilidade de ser amado, habitando na solidão física e psíquica, com o agravante de sentir-se julgado e culpado, sem possibilidade de defesa, porque a sentença já era pública.

A situação de Bartimeu já estava determinada, ou seja, a exclusão; ele aparece aqui como alguém consciente de sua situação desesperada, de seus limites e de que sozinho não poderia superá-los. Mas não fica resignado com sua situação; este é o ponto de partida. Daí o grito por compaixão, quando percebe que Jesus passa por perto.

Como cego, não tem outro meio de chamar a atenção de Jesus senão gritando. Muitas pessoas próximas se irritam e o mandam calar a boca, mas ele o chama mais alto ainda. Ele investe toda sua força nessa oportunidade única e vai até Jesus, expressando assim sua alegria em encontrá-lo e em receber a sua ajuda.

Jesus é aquele que ouve, para e chama justamente aquele cego cujo grito perturbava e incomodava a ‘tranquilidade’ da multidão que o seguia. Ele interrompe bruscamente a sua caminhada apressada para Jerusalém. Os dois ainda não se conheciam, mas era forte, em ambos, o desejo de se encontrar.

O cego levanta-se de um pulo, deixa de lado seu manto, sem hesitar : sua proteção, sua segurança, seu teto..., e entra na luz do olhar de Jesus. Sai de seu fechamento (o manto era considerado um prolonga-mento da pessoa); desfaz-se do que lhe trazia segurança e recupera sua dignidade : ‘pôs-se de pé’.

Ao lhe perguntar - ‘o que queres que eu te faça?’ -, Jesus está ativando o protagonismo no outro, estabelecendo um diálogo de tu a tu, sem intermediários, oferecendo-lhe a possibilidade de afirmar-se diante de alguém, de ter uma palavra que é escutada (não só um grito que se instala como música de fundo para os transeuntes indiferentes), de expressar os desejos de seu coração, de ‘empalavrar’ suas aspirações e esperanças. O espaço de diálogo experimentado devolve ao cego a confiança, conecta com suas forças resilientes, lhe confere autonomia e o mobiliza a entrar no caminho de Jesus.

A capa que antes acompanhava o cego e o protegia, agora é abandonada. Fica lá, na beira da estrada, marcando o lugar da mudança. A imagem que ela representa é coisa do passado. A capa continua lá no mesmo lugar, mas Bartimeu, agora tomado pelo olhar de Jesus, é homem do caminho, discípulo, seguidor. Ao chamado de Jesus, reage dando um salto. Salta para um novo olhar, salta ainda mais para um novo ser. Salta da vida sem graça, limitada a pedinte da margem do caminho, para a graça da vida de caminheiro solidário rumo à transformação.

Bartimeu viveu a experiência de uma profunda ‘travessia’ : antes, cego e sentado à beira da estrada pedindo esmola; agora, com a visão recuperada, pode fazer a sua escolha : ‘...e seguia Jesus pelo caminho’. Esta frase expressa mobilidade e proximidade. Depois da experiência do encontro com Jesus, Bartimeu passou da imobilidade ao movimento, da exclusão à inclusão, do afastamento à proximidade...

Para ele, a obscuridade se tornou luz; a marginalidade se tornou estrada; o estranho se tornou familiar; a liberdade se tornou gratidão; a exclusão se tornou seguimento...

Ao ‘fixar seu olhar’ em cada um(a) de nós, chamando-nos pelo nome, seremos movidos(as) a fazer eleições mais radicais e integrais pelo Reino, segundo o modo de ser, de viver e de fazer do próprio Jesus.

Chamado-resposta’ implica, pois, uma troca comprometedora de olhares. O olhar transparente e livre de Jesus ressuscita o nosso olhar tímido e estreito e nos capacita a olhar amplos horizontes : seu povo, seu mundo dividido e excluído... Seu olhar nos predispõe a encontrar motivações saudáveis e maduras que nos permitam olhar e viver no contexto atual plural com amor, com entusiasmo e criatividade.

Precisamos suplicar como o cego do relato de Marcos : Mestre, que eu veja!, para poder reconhecer e agradecer, descobrir portas onde antes víamos muros. Hoje somos afetados por muitas cegueiras : não vemos aqueles que economicamente não são contados, e há milhões de pessoas consideradas invisíveis.

Estamos ameaçados pela cegueira da segurança, da intolerância, do preconceito..., e aqueles que são diferentes nos parecem estranhos. As telas frias dos aparelhos eletrônicos tiram o brilho e o calor de nosso olhar e petrificam o nosso coração. Vivemos cegos pela pressa e pelo auto-centramento; e as rupturas humanas, as divisões e o ódio, embotam nossos sentidos e nos cegam a respeito de nossa unidade essencial.

É preciso deixar que o Evangelho e os outros vão nos tirando as vendas, vão nos curando a visão, vão nos despertando para que possamos chegar a ser homens e mulheres de olhos grandes, que contemplam a vida em sua profundidade e em sua vulnerabilidade, e também em suas infinitas possibilidades.

Sabemos que toda a realidade nos entra pelas janelas de nossos olhos. Cultivar a espiritualidade em nossa vida cotidiana tem a ver com aprender a olhar de outra maneira, e aprender a observar sem qualificar, sem medir, sem emitir juízo, simplesmente, recebendo o que existe, deixando-o ser, dando-lhe espaço.

Uma visão sadia, é aquela que sabe ver o outro no melhor de si mesmo, em seu mistério único, em sua originalidade, em todo seu potencial latente ainda por acontecer; e que sabe também aceitar suas arestas, sua parte de sombra, sem rejeitar nada. Um olhar que descobre uma sensibilidade por debaixo da aparente aspereza, que reconhece a benção que se oculta por detrás da ferida. Um olhar amável e incondicional que oferece o espaço para que os nós existenciais comecem a se desatar e a vida possa fluir.

Que possamos olhar através dos outros e ativar dentro de nós aquela bem-aventurança : ‘Ditosos vossos olhos porque vêem’ (Mt 13,16).

A oração é o ambiente natural para mobilizar-nos, expandir nosso olhar e preparar-nos para o grande salto da vida : um novo projeto, um novo compromisso, uma nova missão....

Para meditar na oração

Chegaremos algum dia a aprender, como Jesus, a olhar através dos olhos dos simples e pequenos deste mundo?

Quando nos abrimos a outros olhares, quando chegamos a poder olhar pelos olhos daqueles que estão em um lado da vida diferente do nosso, expande-se em nós a capacidade de perceber e agradecer a realidade.

Nosso modo de olhar depende do lugar onde pisamos : ...olhar preconceituoso, olhar intolerante...

- Faça um pequeno exercício de ‘olhar a si mesmo’ com o olhar do pobre, do excluído, daquele que pensa e sente diferente... Como você se sente?


Fonte :

quarta-feira, 24 de outubro de 2018

Você não é melhor do que quem não é cristão


Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)
  
 A evangelização é somente uma desculpa para mostrar quem é o Todo Poderoso e quem é que manda, realmente, no mundo todo.
*Artigo de Fabrício Veliq,
teólogo protestante


Todas as culturas têm uma maneira própria de lidar com as questões divinas. Pensar que todas elas pensam o divino assim como a sociedade ocidental pensa seria muita inocência ou presunção. Até mesmo dentro da própria América Latina é possível perceber modos de vida religiosa totalmente diversa da que se está acostumada nos países ocidentais, bastando para isso olhar para as religiões andinas e indígenas para perceber que elas possuem seu modo próprio e rico de se relacionar com a divindade.

Essa característica plurirreligiosa, no entanto, ainda é vista por muitos/as cristãos/ãs como algo maléfico. São diversos os movimentos que querem ‘evangelizar’ os povos originários do continente, transformando-os em cristãos/ãs na versão ocidental, por acreditarem que esta é a única forma possível da salvação de Deus se fazer presente para eles. Nesse tipo de postura, Deus não diverge de nada de um soberano que tem sua ordem pré-definida e que deve ser, então obedecida cabalmente. A evangelização é somente uma desculpa para mostrar quem é o Todo Poderoso e quem é que manda, realmente, no mundo todo.

A perspectiva que Jesus tem de Deus, no entanto, como narrada nos Evangelhos, segue por um caminho totalmente oposto. Deus, para Jesus, é o seu Pai e está disposto a se relacionar pessoalmente com seus filhos e filhas. Assim, sai de cena uma visão meramente do ‘Senhor de toda terra’, tão presente na religião judaica, e entra a figura subversiva de um Deus que se mostra como Pai/Mãe de seus filhos e filhas. Esse Deus, então, não deve ser considerado um ‘Deus acima de todos’, mas um ‘Deus conosco’ (Emanuel, como narra Lucas), que decide caminhar com aqueles e aquelas que se mostram dispostas a seguir seus caminhos, estendendo sua graça sobre todos e todas, sem distinção, e promovendo sua salvação da morte a todos e todas, independentemente de cultura ou nacionalidade.

Paulo, falando aos Gálatas, ressalta esse caráter não discriminatório da graça de Deus, que não faz separação de raça, cor, etnia, ou qualquer outra coisa. Faz isso em resposta a grupos de judeus convertidos que queriam que os gentios seguissem os rituais judaicos para serem considerados como salvos em Cristo.

Seguindo nessa linha é possível perceber que o Cristianismo, após ser decretada religião do Império Romano, seguiu na mesma via, tendo ainda hoje esse tipo de atitude como algo comum. São diversos os grupos, sejam evangélicos, sejam católicos, que continuam a seguir os mesmos passos dos primeiros judeus convertidos, pregando que as pessoas que desejam ser alcançadas pela salvação que vem pela graça, necessariamente, precisam cumprir os rituais do Cristianismo, como batismo, ceia, ‘aceitar Jesus’, dentre tantos outros.

Ao fazer isso, não raramente, esses/as que se dizem cristãos/ãs consideram-se melhores, mais iluminados, e, alguns, até mesmo, mais dignos da salvação do que as pessoas que não são convertidas ao Cristianismo. O seguimento de Jesus, nesse sentido, transformou-se em máquina proselitista e, com isso, ao invés de se tornar instrumento de graça e salvação para as nações, em muitos lugares tem se tornado instrumento de morte de culturas, povos, e saberes.

Nesse ponto, faz-se importante perceber a subversividade trazida por Jesus em seu tempo. Diante de um povo que se considerava escolhido por Deus e guardião dos rituais desejados por ele para ser considerado santo, Jesus apresenta um Deus totalmente diferente, que não ligava para os rituais de pureza, que não estava nem aí a respeito de qual o dia da semana em que se colhiam espigas, que não tinha nenhuma preferência por ações morais ritualísticas, mas que prezava, antes de tudo, pelo mostrar da compaixão e misericórdia.

 Jesus mostra que o que Deus procura é um coração contrito e disposto a segui-lo em seu amor aos outros, em sua misericórdia e apreço pelos marginalizados e excluídos na sociedade injusta. O próprio Jesus não se importava se algo era feito por alguém que não o seguia, antes, simplesmente disse em uma situação : ‘não o impeçais’.

Diante de tudo isso, uma teologia que se diz cristã necessita olhar com atenção para as matrizes religiosas não ocidentalizadas para reconhecer nelas também aspectos do mesmo Deus que, como cremos, é único.

Dessa forma, podemos dizer que um cristão que acha que tem um melhor conhecimento de Deus do que um indígena, ou do que qualquer outra pessoa que pertença a qualquer outra religião simplesmente porque pertence ao Cristianismo, provavelmente não compreendeu as Escrituras e a ação do Espírito que sopra onde quer.’


Fonte :

terça-feira, 23 de outubro de 2018

Como é ser um jovem católico nessa nova era de escândalos de abuso sexual no clero?


Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 Quase um terço dos americanos disse que foram criados como católicos, mas apenas 21% atualmente se identificam dessa maneira.
*Artigo de Marisa Iati,
jornalista


Em uma casa amarela a poucos passos da Universidade de Georgetown, em uma noite recente, membros do grupo do campus Catholic Women at Georgetown conversaram sobre como a Virgem Maria os fortaleceu em tempos difíceis, enquanto compartilhavam um jantar na Domino's Pizza. No meio da conversa trocando ideias sobre a saudade de casa e as formas de evitar o pecado, a conversa se voltou para as novas alegações de abuso sexual por parte do clero em uma igreja agora sitiada.

A presidente do grupo, Erica Lizza, perguntou a uma dúzia de estudantes sentados em círculo como eles se apoiavam em Maria, pois a fé na qual eles confiavam para o sustento espiritual enfrenta uma crise.

Ainda sinto um certo desgosto e traição da hierarquia católica’, disse Lizza, de 21 anos de idade, depois da discussão semanal sobre o jantar. ‘Como alguém que se preocupa muito com sua fé e que está muito envolvido em uma organização ministerial do campus, é algo de que não há como fugir’.

Conversas semelhantes estão ocorrendo em refeitórios e centros de ministérios em todo o país, enquanto estudantes universitários lutam com o que significa ser católico numa época em que se sentem desapontados e irritados com a igreja.

A Igreja tem visto vários escândalos nos últimos meses : a renúncia do ex-cardeal norte-americano Theodore McCarrick em meio a acusações de abuso e um extenso relatório do grande júri da Pensilvânia que envolveu mais de 300 padres em questões de abuso de cerca de 1.000 crianças.

Em seguida, o Papa Francisco aceitou a renúncia do Cardeal Donald Wuerl de sua posição como arcebispo de Washington depois que o relatório da Pensilvânia descreveu Wuerl como tendo um histórico ambíguo na forma de responder às acusações de abuso sexual em sua antiga diocese de Pittsburgh. 

Wuerl continua encarregado da administração arquidiocesana até que o Papa nomeie seu sucessor. Os escândalos de abuso sexual do clero também abalaram o Chile e a Austrália.

Em uma época em que a igreja é frequentemente vista como atrasada em questões importantes, alguns jovens católicos responderam aos últimos contratempos, afastando-se ainda mais da instituição sitiada, enquanto outros se aproximaram.

Esta geração de estudantes universitários católicos cresceu em meio à mancha da crise dos abusos sexuais, que foi exposta pela primeira vez pelo The Boston Globe em 2002 e, desde então, tem implicado o clero em todo o mundo. A maioria nem se lembra de uma igreja pré-escândalo.

Ao mesmo tempo, eles e os jovens geralmente representam uma demografia crítica para o futuro do catolicismo, que tem uma base de paroquianos envelhecidos e tem lutado para atrair e reter jovens.

O catolicismo tem visto o maior declínio na participação entre os principais grupos religiosos, de acordo com um relatório de 2016 do Public Religion Research Institute. Quase um terço dos americanos disse que foram criados como católicos, mas apenas 21% atualmente se identificam dessa maneira.

Em uma reunião neste mês de várias centenas de bispos para discutir o ministério da igreja para os jovens, o Papa Francisco reconheceu aqueles que estiveram ao lado da igreja, apesar de suas falhas.

Eu agradeço a eles por terem apostado, porque para eles vale a pena o esforço de se sentirem parte da Igreja ou entrarem em diálogo com ela; vale o esforço de ter a Igreja como mãe, como professora, como lar, como família e, apesar das fraquezas e dificuldades humanas, capaz de irradiar e transmitir a mensagem eterna de Cristo’, disse o Papa Francisco ao abrir o sínodo, segundo uma cópia de seus comentários divulgados pelo Vaticano.


Aumentando a desfiliação com a religião

A desilusão em relação ao abuso sexual clerical não é a única força que está afastando as gerações mais jovens do catolicismo, particularmente nos Estados Unidos.

Cada vez mais ao longo das últimas décadas, os jovens adultos perceberam que podem escolher sua própria fé ou combinação de credos, além daqueles de seus pais - ou afiliar-se a nenhum, disse Theresa O'Keefe, professora de teologia do Boston College, especializada na fé adulta jovem. Uma crescente desconfiança em relação à liderança institucional de todos os tipos também significa que alguns estudantes respondem de maneira mais árdua à medida que mais denúncias de abusos clericais vêm à tona, disse O'Keefe.

William Dinges, professor de religião e cultura da Universidade Católica, disse que as pessoas que se sentem distantes da igreja são mais propensas a serem afetadas pela crise dos abusos do que as que são devotas. Muitos jovens adultos já estão frustrados com o que veem como posições menos inclusivas do catolicismo em temas como o casamento entre pessoas do mesmo sexo e igualdade de gênero, disse Dinges.

O jovem tem que ter uma boa resposta : ‘Por que estou aqui?’, disse O'Keefe. ‘A igreja, particularmente a liderança, tem que dar uma boa resposta. Por que as pessoas devem aparecer? A adesão não é inevitável e a adesão significativa não é inevitável’.

Caroline Zonts, estudante de segundo ano de 19 anos da Universidade George Washington, disse que começou a sentir-se desanimada pela Igreja Católica muito antes de a crise dos abusos reaparecer.

Criada ‘estritamente católica’, ela disse que as visões políticas socialmente liberais que desenvolveu no ensino médio fizeram com que ela se sentisse menos ligada à sua fé. Quando chegou à faculdade, Zonts disse que parou de praticar o catolicismo, embora ainda se considere católica.

A recente crise de abuso tornou-se outra razão pela qual ela não espera nunca mais mergulhar na igreja. Dói pensar que os padres com quem ela construiu relacionamentos podem ter cometido abuso.

Eles eram mentores para mim, eram modelos, pessoas que com as que conversei sobre a minha fé’, disse Zonts. ‘Isso é realmente difícil - saber que centenas de pessoas assim acabaram abusando de suas posições de poder.’

Como Zonts, a jovem Evelyn Arredondo Ramirez, da Universidade George Washington, sentiu que suas visões políticas mais liberais estavam em desacordo com algumas partes de sua fé católica. Mas, mesmo como defensora do casamento entre pessoas do mesmo sexo e do direito ao aborto, a jovem de 20 anos ainda frequentou a missa na maioria dos domingos durante seus dois primeiros anos de faculdade.

Sua perspectiva recentemente começou a mudar. Já aborrecida com as homilias que expressavam as opiniões políticas dos sacerdotes, sua frustração foi agravada pelo relatório do grande júri da Pensilvânia e pelas acusações de que o Papa Francisco conscientemente protegeu McCarrick da responsabilidade frente às acusações.

Ramirez não vai mais à missa e disse que se preocupa com a segurança de seu irmão mais novo em relação aos padres em sua paróquia.

Eu ainda tenho a minha Virgem (Maria) na minha mesa de trabalho, eu ainda tenho a cruz pendurada no meu quarto, e às vezes vou na Igreja apenas para entrar nela e sentar com Deus’, disse Ramirez. ‘Mas acabei de desenvolver minha própria ideia do que é ter essa conexão.’


Perguntas sobre a instituição, não sobre a fé

Muitos jovens católicos que ainda se consideram devotos responderam não se afastando, mas se esforçando para compelir a mudança de dentro da instituição. Para eles, a atual crise é encolerizante e desoladora, revigorante e fortalecedora, tudo ao mesmo tempo.

Esses jovens católicos estão entre os mais de 1.500 estudantes de Georgetown que assinaram uma petição pedindo para a universidade anular um diploma de honores concedido a McCarrick em 2004 e outro que a universidade outorgou a Wuerl em 2014.

Um porta-voz da Georgetown, em um comunicado, disse que a universidade estava revisando os graus honorários em um esforço ‘para abordar as revelações profundamente preocupantes sobre o Arcebispo McCarrick e aqueles contidos no relatório do Grande Júri da Pensilvânia’.

Entre os alunos que se sentem preocupado com essas revelações está Ana Ruiz, de 18 anos, membro de mulheres católicas em Georgetown, que disse que o escândalo fez ela duvidar tanto da sua fé como da sua devoção à igreja porque a própria fé está intimamente ligada à instituição. Os católicos acreditam que a igreja foi fundada por Jesus Cristo.

Apenas o fato de ver pessoas que definitivamente não incorporam esses valores que nós conservamos como sagrados, realmente me faz questionar se a instituição está trabalhando para o bem de Cristo e o bem do povo’, disse Ruiz enquanto os estudantes limpavam após o jantar de discussão em Georgetown.

Embora ainda comprometida com o catolicismo, Ruiz disse que poderia se afastar da instituição se deixasse de acreditar que a intuição realmente se importa com os melhores interesses dos leigos. Agora, no entanto, ela ainda se sente como se Deus estivesse no centro do ministério da igreja.

Nesse sentido, sinto que nunca poderia me libertar’, disse Ruiz. ‘Mas tudo o mais que envolve o ser católica, o aspecto humano da Igreja, pode haver potencial para conseguir ser livre, até o momento em que 'não possa mais lidar com isso.’

A infância de Lizza estava mergulhada no catolicismo, assistia com frequência à missa dominical da escola com a família e a mãe lendo para ela a Bíblia para crianças. Mesmo assim, ela não sabia ao certo o quanto queria se envolver com sua religião quando chegasse a Georgetown, porque estava preocupada sobre como sua fé devota se encaixaria com a de seus colegas. Então uma amiga a convenceu a se juntar ao grupo de mulheres católicas e Lizza encontrou um lar.

Três anos depois, chocada e enojada com a magnitude do problema de abuso sexual do clero, Lizza disse que começou a pensar que talvez todos os bispos devessem renunciar. Ela lutou para reconciliar a ideia do clero que afirmava defender o amor altruísta e a busca da justiça com o conhecimento de que muitos não haviam cumprido essa promessa.

Lizza disse que nunca considerou deixar a igreja. Em vez disso, ela se sentiu mais forte em sua convicção de que pessoas boas precisavam permanecer envolvidas na instituição para corrigir seu curso.

Ela ainda sonha com mais leigos envolvidos na Igreja, apesar de quão difícil foi para ela assistir à missa após as alegações de McCarrick e do relatório da Pensilvânia. Ela também quer que as pessoas sejam menos céticas em relação às vítimas de abuso.

Cobrir isso com certeza não funciona’, disse ela. ‘E a única maneira de realmente lidar com isso é olhar a crise de frente e fazer algumas escolhas difíceis’.’


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