*Artigo
de Evaldo D´Assumpção,
médico
e escritor
‘Numa das visitas de Jesus à casa de amigos, em Betânia, Marta,
irmã de Lázaro estava atarefada com os muitos afazeres domésticos, enquanto
Maria, sua irmã, estava sentada aos pés de Jesus, escutando-o atentamente.
Incomodada com a situação, Marta disse a ele : ‘Não te importa que minha irmã me deixe sozinha no serviço?’ Ao que
Jesus respondeu : ‘Marta, Marta! Andas
muito inquieta e te preocupas em demasia com muitas coisas, todavia pouca coisa
é necessária, e até mesmo uma só. Maria escolheu a melhor parte e essa não lhe
será tirada!’
Relembro esta narrativa bíblica, no final do capítulo 10 de
Lucas, pensando nos dias atuais. Afinal, Marta representa muito bem as pessoas
ativas, azafamadas, com a agenda cheia de tarefas, obrigações e compromissos
excessivos. Com Maria, identificam-se as pessoas mais contemplativas, mais
comprometidas com a sua qualidade de vida do que com a execução imediata e
detalhada de tudo o que lhes pareça necessário fazer, por vezes nem tão
necessário assim.
Lembro-me então dos meus tempos de criança, adolescência e
juventude, quando tinha meus compromissos colegiais, depois acrescidos dos
cursos de piano e inglês, e mais tarde de jiu-jitsu. A despeito dessas
atividades, sobrava-me tempo para brincar, frequentar o Minas Tênis Clube, e
reunir-me com meus amigos, ir ao cinema, frequentar festas de aniversário,
dançar, namorar, tudo sem atropelo, sem reclamar da falta de tempo que até
parecia sobrar para tudo. Os anos se passaram, veio a vida adulta, o exercício
da medicina, o casamento, filhos, inúmeras atividades, mas ainda assim não me
recordo de tantas reclamações por falta de tempo, de angustias estressantes,
insatisfação pela qualidade da vida. A condição de meus pais era de classe
média típica, tendo casa própria e aproveitando as férias para viagens
familiares, algumas vezes ao exterior. Falo das décadas de 50 a 70, quando era
predominante a classe média, a qual se subdividia em três grupos : média baixa,
média-média e média alta. Elas se integravam razoavelmente bem, quase sempre
frequentando os mesmos lugares, estudando nos mesmos colégios. Eu diria que era
uma época de certa forma tranquila.
Não sei precisar exatamente quando as condições de vida de quase
todos os brasileiros dessa mesma classe média, mudaram completamente. E, como
consequência dessas mudanças, cresceu a violência urbana, agravaram-se as
competições profissionais e sociais e as pessoas se tornaram, em grande parte,
pouco amistosas. A luta pela sobrevivência, a cada dia mais agressiva; a
influência dos meios de comunicação que contribuíram, e ainda contribuem, para
a mudança das pessoas, transformou aquela sociedade que eu diria pacata, num
verdadeiro caldeirão efervescente. Nela todos correm, ninguém tem tempo para o
outro nem para si próprio, as fisionomias que eram leves tornaram-se carregadas,
o mundo que era gostoso para nele se viver, perdeu seus encantos, os quais se
concentraram em ilhas onde quem delas não faz parte, dificilmente entra. A
depressão, as angustias, as doenças psicossomáticas (praticamente 70% de todas
as moléstias), passaram a tomar conta da população. Segundo a Anvisa (Agência
nacional de vigilância sanitária) e de outras instituições de pesquisa, o
consumo brasileiro do princípio ativo do calmante Rivotril (clonazepan), que em
2007 era de 29 mil caixas por ano, em 2015 passou para 23 milhões de caixas,
tornando-se o medicamente mais prescrito pelos médicos.
Diante desse quadro, que até poderia ser bem mais explorado,
ouso afirmar que estamos precisando, urgentemente, de mais Marias do que
Martas. Não é sem razão que hoje se multiplicam os gurus e mestres de yoga,
meditação e outras artes orientais de interiorização.
Os humanos começam a buscar, cada um por novos caminhos,
condições para aquietar suas mentes, e por consequência seus corpos cansados e
maltratados pela faina diária. São os que almejam se desvencilhar da Marta que
trazem dentro de si, e que direciona sua existência, valorizando o trabalho
acima de tudo, como se fosse a coisa mais importante, a própria razão de se
viver.
Muitos criticam os que param, até para períodos de férias,
essenciais à melhoria da eficiência laborativa e da própria sobrevivência.
Alguns rejeitam a aposentadoria porque querem, como
orgulhosamente proclamam, morrer trabalhando. Outros afirmam ser o trabalho o
sentido de suas vidas, como se fossem máquinas, robôs programados para a
produção, tão cara para os defensores do capitalismo consumista irracional. Com
isso não lhes sobra tempo para viver a família, não aproveitam para contemplar
o desenvolvimento de seus filhos, não cultivam suas mentes com leituras,
músicas harmoniosas, espetáculos teatrais, cinema, pois tudo isso consideram
como perda de tempo. São as Martas, sempre voltadas para o trabalho e a
produção.
Para o próprio bem estar pessoal, para a felicidade da família,
para a harmonia social, precisamos urgentemente de mais Marias, voltadas também
para o crescimento interior, para a paz de espírito, para a verdadeira
felicidade, que é a nossa máxime razão de ser.’
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