*Artigo de Guga Chacra,
comentarista de política internacional do 'Estadão'
e do programa Globo News 'Em Pauta em Nova York'
‘Há
um ano, o Líbano não tem presidente, cargo destinado aos cristãos maronitas.
Quanto mais o tempo passa, mais cresce o temor de os cristãos do único país com
identidade cristã no Oriente Médio perderem o direito de terem a Presidência,
prevista em acordo entre as religiões.
Como é a divisão religiosa no Líbano?
Apenas
para ficar claro, o Líbano é uma nação sem maioria religiosa. Talvez seja o
único no mundo, se não levarmos em conta os ateus. Há pluralidades de
diferentes religiões. Entre os cristãos, podem ser maronitas (majoritários),
grego-ortodoxos, melquitas (grego-católicos), assírios, armênios (ortodoxos e
católicos), protestantes, católicos romanos e outros. Podem também ser
muçulmanos sunitas e xiitas, além de uma minoria alauíta. E podem ser drusos.
No passado, até a Guerra Civil, havia uma proeminente e bem integrada
comunidade judaica. Não há censo há décadas e não dá para saber as divisões.
Como é a divisão do Parlamento?
O
poder se divide de uma forma que crie um equilíbrio. Metade do Parlamento é
cristão, com subdivisões entre as diferentes denominações. Metade é muçulmana e
drusa, com divisões entre as suas diferentes denominações. O mesmo se aplica ao
gabinete ministerial.
O presidente tem de ser cristão maronita; o
premiê, sunita; e o presidente do Parlamento, xiita?
O presidente,
por convenção, tem de ser cristão maronita, conforme escrevi acima. O premiê
precisa ser muçulmano sunita. E o presidente do Parlamento, muçulmano xiita.
Todos eles são escolhidos pelo Parlamento, eleito democraticamente – diante da
Guerra da Síria, as eleições vêm sendo adiadas. Eu, por exemplo, por ter origem
cristã-ortodoxa e cristã melquita (grego-católica), não poderia ser presidente,
nem premiê e nem presidente do Parlamento.
Como é feita a escolha do presidente, do premiê
e do presidente do Parlamento?
Normalmente,
os membros da religião buscam um consenso e escolhem seu representante, sendo
aceito pelos demais. Evitam figuras que criam polarização. Por exemplo, o
presidente do Parlamento, que tem de ser xiita, é Nabi Berri, da mais secular
Amal, não do Hezbollah, embora sejam aliados. O premiê a Tammam Salam, de uma
tradicional e moderada família sunita libanesa, não Saad Hariri, que seria o
líder sunita mais popular.
Quem são os principais candidatos a presidente
do Líbano?
No
caso dos presidentes, os dois últimos, Emile Lahoud e Michel Suleiman, eram
comandantes das Forças Armadas, outro cargo destinado aos libaneses. Desta vez,
porém, os cristãos estão extremamente polarizados ao redor de duas figuras
carismáticas e com histórias políticas desde os tempos da Guerra Civil
(1975-90) – Michel Aoun e Samir Geagea. No fim do conflito, os dois travaram
uma guerra entre diferentes grupos cristãos.
Quem é Michel Aoun?
Aoun,
ou o ‘general’, como é conhecido,
comandou as Forças Armadas do Líbano no fim da Guerra Civil. Lutou contra a
Síria e também contra as milícias de Samir Geagea, conhecidas como Forças
Libanesas. Depois, passou 15 anos no exílio por sua oposição à ocupação síria.
Quando voltou, foi recebido como herói pelos cristãos. Mas os sunitas de Saad
Hariri, junto com o druso Walid Jumblatt, temendo a força de Aoun, o deixaram
de fora da coalizão anti-Síria. Sem alternativa, Aoun precisou se aliar ao
Hezbollah e ao regime de Damasco, seus antigos algozes.
Quem é Samir Geagea?
Geagea,
por sua vez, é conhecido por seus massacres na Guerra Civil do Líbano. Suas
forças mataram um rival político, Tony Frangieh, também cristão, sua mulher,
sua filha e seu cachorro – o filho, em Beirute, ficou vivo e é um importante
aliado de Aoun. Ficou mais de uma década em um calabouço por seus atos na
Guerra Civil. Mas os sunitas de Saad Hariri e o druso Jumblatt o soltaram em
2005 para ficar como rival de Aoun, embora sua popularidade entre os cristãos
seja bem menor e sua imagem seja associada a massacres e a Israel – os dois não
são mais aliados e hoje Geagea é próximo da Arábia Saudita.
A quais coalizões eles pertencem?
Hoje
Aoun integra a coalizão 8 de Março, junto com o Hezbollah. Isto é, uma coalizão
que tem a maioria dos cristãos e quase a totalidade dos xiitas. Geagea integra
a coalizão 14 de Março, que também possui um bom número de cristãos e quase a
totalidade dos sunitas.
Por que nenhum deles consegue se eleger?
Os
dois querem ser presidentes e nenhum deles tem maioria no Parlamento porque
Jumblatt, o druso, se mantém neutro. Por um lado, ele teme Aoun presidente
porque isso significaria um popular líder cristão no comando do país,
enfraquecendo os drusos e especialmente a sua facção política. De outro, sabe
que Geagea, que tentou matá-lo na Guerra Civil, também pode ficar incontrolável
se assumir o cargo e certamente entraria em atrito muito forte com o Hezbollah
e com os cristãos pró-Aoun. Também há a questão regional. A Arábia Saudita
apoia a 14 de Março. O Irã e a Síria, a 8 de Março. O futuro da Guerra da Síria
e as negociações envolvendo o programa nuclear EUA-Irã influenciam nas
decisões.
Quais as alternativas?
Uma
alternativa seria Aoun tentar negociar com os sunitas de Hariri. Ambos possuem
uma visão parecida para o futuro do Líbano. Juntos, nem precisariam dos votos
do Hezbollah. Mas as conversas fracassaram. Outra saída seria um presidente
neutro, como Jean Kahwagi, comandante das Forças Armadas, que talvez tivesse o
apoio de sunitas, xiitas e drusos, mas provavelmente não dos cristãos pró-Aoun
e pró-Geagea. Mas ele seria o terceiro general a fazer este caminho e poderia
fortalecer muito os militares.
Por que o impasse é perigoso para os cristãos?
Com
o impasse, o Líbano aos poucos se acostuma a viver sem presidente. O país não
parou por causa disso. Se a briga persistir, talvez, aos poucos, comecem a
questionar o cargo de presidente ser destinado aos cristãos. Isso apenas ainda
não ocorreu porque os xiitas não aceitariam um presidente sunita e os sunitas
não aceitariam um presidente xiita. Mais fácil ter um cristão ou não ter
ninguém.
O Líbano é o único país com identidade cristã
na região?
O
Líbano não pode perder esta sua identidade cristã. É o único país do Oriente
Médio onde o cristianismo impera. Israel é judaico, embora laico e com minorias
religiosas cristãs, muçulmanas e drusas, e os demais são islâmicos, embora
muitos sejam laicos, como a Síria, Egito, Argélia e Tunísia. O cristianismo
nasceu na região e os cristãos por séculos foram maioria no Levante. A
imigração e as guerras reduziram o seu número e hoje no Líbano devem ser menos
de 40% – certamente, passa de 50% se contarmos a diáspora. Basta ver o Brasil,
onde 9 em cada dez imigrantes ou descendentes de imigrantes libaneses são
cristãos e somam 7 milhões (mais do que a população do Líbano). A ameaça do
ISIS, também conhecido como Grupo Estado Islâmico ou Daesh, e a Al Qaeda.’
Fonte :
* Artigo na íntegra de http://internacional.estadao.com.br/blogs/gustavo-chacra/por-que-o-libano-bastiao-do-cristianismo-arabe-esta-sem-seu-presidente-cristao/
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