terça-feira, 26 de maio de 2015

Migrantes enfrentam a opção de ser aniquilados ou arriscar a vida no mar


 *Artigo de Emma Graham-Harrison,
do 'Guardian'

‘Eles desceram cambaleando ou foram carregados para a terra, alguns paralisados pela desnutrição, outros pouco mais que esqueletos ambulantes, atordoados e queimados de sol depois de passarem semanas ao mar em embarcações descritas pela ONU como féretros flutuantes.

Manu Abdul Salam, 19 anos, viu seu irmão morrer quando brigas desesperadas irromperam depois de o capitão do barco de madeira em que eles viajavam fugir numa lancha, deixando mais de 800 passageiros à deriva com baixíssimos estoques de água e comida. ‘Se eu soubesse que a viagem de barco seria tão infernal, teria preferido morrer em Mianmar’, ela disse a jornalistas pouco depois de ser rebocada para a terra por pescadores indonésios. Ela foi uma das poucas centenas de migrantes que puderam desembarcar.

Rohingya vinda do norte de Mianmar, Salam não estava exagerando ao falar daquela escolha tenebrosa, a julgar por um relatório de pesquisadores da Queen Mary, University of London, avisando que os rohingyas enfrentam genocídio patrocinado pelo Estado.

Os rohingyas enfrentam duas opções : ficar em Mianmar e ser aniquilados ou fugir’, disse a professora Penny Green, parte de um grupo que recentemente concluiu vários meses de pesquisas em Rakhine, o Estado natal dos rohingyas. ‘Se entendemos o genocídio como um processo, é isto. Aqueles que permanecem em Mianmar enfrentam a miséria absoluta, a desnutrição e a inanição; doenças físicas e mentais graves; restrições impostas ao seu movimento, educação, casamento, nascimentos, subsistência e propriedade de terra, além da ameaça sempre presente de violência e corrupção.

Desde 1982 o governo birmanês se recusa a dar cidadania aos rohingyas, cuja existência nega. As autoridades se negam até mesmo a participar de eventos nacionais ou internacionais em que seja usada a palavra ‘rohingya’; na semana passada, ameaçaram boicotar uma cúpula convocada pela Tailândia para discutir a crise crescente de migração.

Se empregarem o termo 'rohingya', não participaremos, pois não reconhecemos esse termo’, disse à Reuters no domingo Zaw Htay, funcionário do gabinete da Presidência de Mianmar. ‘O governo de Mianmar vem protestando contra o uso do termo desde o começo.’ Mianmar insiste que um grupo que tem sua própria língua e uma história em Mianmar que vem de muitas gerações seja descrito como de bengaleses, classificando seus membros como imigrantes ilegais do vizinho Bangladesh. Essa rejeição levou a uma enorme rede de campos de ‘refugiados’ que, segundo Penny Green, são mais semelhantes a prisões. Neles vivem mais de 100 mil rohingyas que precisam de autorização para sair.

Na capital regional de Sittwe, no passado uma cidade movimentada com dezenas de mesquitas, alguns poucos rohingyas ainda vivem em um gueto com sete entradas fortemente guardadas. O número de mesquitas ainda em pé não chega a dez, e elas estão desertas, ocupadas apenas por forças do governo. O fornecimento mínimo de ajuda alimentar aos campos mantém as pessoas vivas, mas passando fome, à base de uma dieta parca de arroz e lentilhas, enquanto nos mercados da cidade sacos de alimentos doados por organizações assistenciais aparentemente são desviados por autoridades que pouco se preocupam com a situação dos moradores dos campos. ‘Eles apenas subsistem’, diz Penny. ‘As pessoas nos imploravam por comida. Você anda por aí e é recebido por olhares inexpressivos, apáticos.’

O governo também tolera a islamofobia e textos espúrios de ódio publicados na mídia, disse Green, fomentando um ambiente de hostilidade que facilmente explode em violência. Em 2012, mais de 200 rohingyas foram mortos em ataques pelos quais ninguém foi a julgamento ou sequer chegou a ser detido. ‘Perguntamos por que não há investigações e ninguém é levado à justiça, e o promotor disse que foi porque os ataques ocorreram à noite, de modo que ninguém viu o que aconteceu.’

Nesta morte em vida da qual os rohingyas vêm procurando fugir há anos, alguns deles atravessam a fronteira do Bangladesh, mas milhares partem pelo mar, apesar de saber que o tráfico de humanos é predatório e agressivo e que a viagem pode lhes custar suas vidas.

O ritmo das partidas vem se intensificando; até 25 mil rohingyas partiram da baía de Bengala entre janeiro e março, o dobro do número de 2013 e 2014, segundo um relatório das Nações Unidas sobre ‘movimentos marítimos irregulares’ na região. Mais de 300 migrantes morreram de fome, desidratação e espancados por tripulantes dos barcos, conforme relatado à ONU por sobreviventes. É possível que outros tenham morrido sem que isso tenha sido registrado quando partiram em embarcações tão lotadas e precárias quanto as que frequentemente afundam no mar Mediterrâneo.

Alguns entrevistados contaram casos de embarcações inteiras que teriam afundado, mas não houve como verificar esses relatos ou descobrir se houve mortes e, se sim, quantas’, disse a ONU no relatório sobre o tráfico marítimo de pessoas.

Muitas das mulheres sofrem estupros ou outros atos de violência sexual nos barcos ou enquanto aguardam para embarcar, e muitas outras são forçadas a casar-se com os homens que pagam por suas viagens. As mães que viajam com filhos correm risco especial de morrer de fome, porque as crianças não recebem alimentos, então as mulheres muitas vezes ficam sem comer para dar de comer a seus filhos. Esse êxodo desesperado vem acontecendo há anos, passando em grande medida despercebido até que os governos regionais que vinham aceitando os migrantes começarem a impedir a entrada de homens, mulheres e crianças que passaram semanas ao mar.

É possível que haja até 8.000 pessoas à deriva hoje nesse limbo marítimo infernal, tendo negada a permissão de desembarcar pelos governos da Indonésia, Malásia e Tailândia, depois de receber estoques básicos de comida e água que dificilmente serão suficientes para sustentá-los em suas viagens de extensão desconhecida.

A situação é gravíssima’, disse à Reuters Joe Lowry, porta-voz em Bancoc da Organização Internacional para a Migração. ‘Eles não têm comida ou água. Estão bebendo sua própria urina. É um jogo de pingue-pongue marítimo jogado com vidas humanas. Esperamos que os governos da região encontrem uma solução rapidamente, senão, nos próximos dias, encontraremos barcos cheios de cadáveres dessecados boiando no mar de Andaman.’

No início da semana passada foi permitido o desembarque de cerca de 2.000 pessoas; não estava claro que critérios as autoridades estavam usando para decidir quem deve receber assistência e quem seria condenado a continuar no mar. O diretor de direitos humanos da ONU avisou que mandar as embarcações embora é ‘incompreensível e inumano’, enquanto outras organizações da ONU imploravam aos governos que recebessem os migrantes e prometiam ajudar com os custos de alimentos e transporte. ‘Em nome da humanidade, deixem esses migrantes desembarcar’, pediu William Lacy Swing, diretor geral da Organização Internacional para a Migração, que já ofereceu verbas de US$1 milhão.

Empurrar migrantes desesperados de volta para o alto-mar pode também ser ilegal, segundo a Câmara Internacional de Transportes Marítimos, já que viola obrigações previstas no direito marítimo global. ‘É uma tradição marítima honrada que navios resgatem qualquer pessoa à deriva no mar, mas os países costeiros também têm a obrigação de resgatá-las, e esperamos que eles honrem essa obrigação, que inclui levar os migrantes para a terra’, disse Simon Bennett, porta-voz da Câmara.

Os países que estão recusando migrantes aparentemente estão preocupados com sua capacidade de absorver um número rapidamente crescente de migrantes pobres e sem instrução. Mas críticos dizem que eles compartilham a responsabilidade pela crise atual pelo fato de terem evitado lidar com a causa original da migração – a política seguida em Mianmar, que, segundo grupos de defesa dos direitos humanos, equivale à limpeza étnica patrocinada pelo Estado.

Os países regionais estão colhendo o que semearam durante anos com sua política de negação dos fatos, e até mesmo com embarcações cheias de pessoas desesperadas à deriva em suas águas eles estão se recusando a agir’, disse David Mathieson, pesquisador sênior para Mianmar da organização Human Rights Watch.

Eles praticamente conspiraram para ajudar com a repressão aos rohingyas durante anos, devido à sua resposta fraca à exportação da política discriminatória de Mianmar em relação a uma minoria sem cidadania, política essa que evidenciou mais ódio que misericórdia em toda a Ásia.’

Em sua primeira reação oficial à crise, o governo birmanês negou que as pessoas à deriva no mar sejam cidadãs de seu país. ‘Não podemos dizer que migrantes sejam de Mianmar a não ser que possamos identificá-los’, disse à Associated Press um porta-voz do governo Ye Htut. ‘A maioria das vítimas de tráfico de pessoas diz ser de Mianmar; é muito fácil e conveniente para elas.’’


Fonte :
* Artigo na íntegra de http://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2015/05/1633134-migrantes-enfrentam-a-opcao-de-ser-aniquilados-ou-arriscar-a-vida-no-mar.shtml

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