Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)
‘Creio que uma nova síntese entre o Evangelho e as
culturas só pode ser realizada, hoje, por um cristianismo autenticamente
secular. Este adjetivo, secular — que usamos muito menos do que o seu referente
negativo ‘secularizado’ — tem uma etimologia bastante complexa. A mais
comumente partilhada liga-o ao léxico da sementeira (da raiz sa-) : secular é
a semente lançada, é o ciclo vital; não é por acaso que, em latim, saeculum
indicava uma geração, cerca de trinta anos, ou seja, o ciclo vital do ser
humano. Curiosamente, a palavra passou a significar duas coisas : um período de
tempo (o século composto por cem anos) e aquilo que se opõe ao espiritual. Em
síntese, secular indica algo que passa, que não pertence à ordem do eterno, que
está sujeito a um ciclo vital de nascimento, crescimento e morte, sujeito à
história e às suas mudanças.
Parece-me que o cristianismo europeu deste tempo, o
tempo do seu aparente ocaso, do aparente ocaso da própria Europa, pode propor
uma nova síntese entre o Evangelho e as culturas precisamente a partir desta
necessidade, abraçando a sua forma secular, mutável, exposta ao fim e à
finitude. Não à sua derrota, não necessariamente (é exatamente este o ponto),
mas, sem dúvida, à sua finitude, ao seu possível ocaso. Dizer que o
cristianismo se expõe à possibilidade do seu ocaso é considerar na ordem do
possível que, dentro de um tempo mais ou menos longo, o cristianismo, tal como
o conhecemos, está realmente destinado a tornar-se um momento da história, que
acabará por ser estudado da mesma forma que hoje se estudam os deuses do Olimpo
ou a epopeia de Gilgamesh ou a Odisseia de Homero. É possível que passemos a
visitar as catedrais góticas tal como entramos no Pártenon de Atenas ou nas
pirâmides do Egito. Não quero dizer que isto vai acontecer, nem desejo que
aconteça, nem quero lançar todos na frustração ou na ansiedade — já temos o
suficiente disto com o fim do Ocidente ou o fim do mundo — mas quero procurar
explorar mais esta hipótese.
Afinal, a finitude é o que acompanha o ser humano
na idade adulta, como quando, aos cinquenta ou sessenta anos, começamos a
perceber a possibilidade de um fim.
Se procurássemos aceitar esta eventualidade,
analisando-a mais de perto, notaríamos que se abrem energias relevantes. Por
exemplo, há muitos filósofos laicos, em particular europeus, que falam do
cristianismo desta forma há já algum tempo. Massimo Cacciari, Giorgio Agamben,
Jean-Luc Nancy, Bruno Latour, mas também, em certa medida, Massimo Recalcati e
Salvatore Natoli — para citar apenas alguns — propuseram uma leitura secular do
cristianismo. É surpreendente que estes pensadores, precisamente por se
declararem não-crentes, descobriram no cristianismo laico fontes de uma
profundidade singular, tornaram acessível uma riqueza que nós próprios não
conhecíamos e, sobretudo, reconheceram uma capacidade de síntese cultural e
humana não só no Evangelho de Jesus, mas na própria parábola do cristianismo,
nas suas instituições e teologias. Isto, a geração anterior (que facilmente
afirmava ‘Cristo sim, Igreja não’), não foi capaz de o fazer. Um olhar sobre o
cristianismo como realidade secular, talvez como realidade finita, escancara
verdades que de outra forma seriam inacessíveis na sua história.
No entanto, a força destas sínteses realizadas por
filósofos abertamente laicos confronta-se com um limite inevitável : o da
celebração dos defuntos. Um elogio fúnebre, afinal, não se nega a ninguém. Em
suma — para usar uma expressão com que um grande historiador da arte,
Didi-Huberman, descreveu o que o Renascimento representou para a cultura
clássica — quando se faz o elogio de um querido defunto, liberta-se o seu
fantasma. E os fantasmas, como todos sabemos, são perigosos. Basta pensar na
história de Hamlet, o pobre príncipe da Dinamarca que já não sabe escolher
nada, porque sobre ele incumbe o fantasma do pai. Clive Staple Lewis escreve, a
tal propósito, que «a definição de Hamlet não é ‘um homem que deve vingar o seu
pai’, mas ‘um homem a quem um fantasma confiou uma tarefa’».
Contudo, imaginemos por um momento que esta
profecia, este olhar secular, provenha não daqueles que ainda estão fechados ao
cristianismo : não daqueles que escrevem o seu epitáfio, mas do próprio coração
de um cristianismo vivo, dos crentes desta época, deste século. O que aconteceria
se fosse o próprio cristianismo a apresentar-se entre as coisas seculares, se
deixasse de lidar com o próprio fantasma e começasse simplesmente a anunciar-se
como uma realidade que passou pela história, concluindo um ciclo vital? O que
aconteceria se, em vez de nos preocuparmos com a falta de sacerdotes e com
celebrações desertas, nos preocupássemos em abrir o nosso tesouro, o nosso
tesouro milenar, o tesouro milenar de teologias e símbolos, de formas
artísticas e imaginários, em propiciar uma entrega, simplesmente para que os
seres humanos de hoje, as culturas atuais possam viver, respirar, descobrir a
sua verdade, sem contrair qualquer dívida em relação ao nosso fantasma? O que
aconteceria se, para que outros pudessem viver o seu século, o seu ciclo vital,
renunciássemos a perpetuar o nosso e abraçássemos a figura da nossa passagem?
Antes de tudo, aconteceria o seguinte : teríamos,
pela primeira vez, em cena uma religião que afirma em voz alta que o Eterno, o
Fundamento, a verdade de Deus, não pertence a ela, não depende dela, não está à
sua disposição. Um cristianismo totalmente secular seria um cristianismo capaz
de proclamar a verdade de Deus, do cosmos, da complexa trama da experiência
humana como aquilo que não pode ser produzido nem disposto por ninguém. Mas não
o faria de forma irreligiosa, fá-lo-ia de modo pleno e precisamente religioso.
Afinal de contas, a experiência do cristianismo sempre afirmou que apenas um
século — um ciclo vital, o de Jesus — disse plenamente aquilo que não está
disponível para nenhum outro século. É exatamente a tarefa do religioso, de
forma mais geral, proclamar uma existência excêntrica, isto é, uma existência
que não tem o seu centro em si mesma, a plenamente religiosa é precisamente a
proclamação que reafirma : ‘Deus não sou eu’.
Há uma iconografia particularmente presente no
românico medieval : a traditio legis, em que Cristo entrega a Pedro
as chaves e a Paulo o rolo da Palavra. A cena tem uma história longa e gloriosa
: encontra-se, por exemplo, no sarcófago de Estilicão, que provavelmente esteve
na basílica de Santo Ambrósio desde o seu início e é atualmente está na base do
grande ambão medieval. Nas montanhas da região de Lecco, acima de Civate,
existe uma joia absoluta, São Pedro ‘al Monte’. Na iconografia da antiga igreja
monástica, a traditio legis é representada duas vezes :
primeiro num afresco no exterior da igreja, por cima do portal de entrada, e
depois no cibório, acima do altar. Pois numa arte como a medieval, que é arte
feita de repetições — as variações são significativas — não passa despercebido
que, na traditio legis do exterior da igreja, os dois
apóstolos estão com as mãos veladas, enquanto no espaço sagrado do cibório
recebem o que lhes é confiado com as mãos nuas. Em síntese, ad extra os
apóstolos declaram-se indignos, ad intra recebem o mandato sem
mediação. Não vou entrar no mérito da interpretação, mas parece-me que hoje a
figura merece ser reavivada. Representa precisamente o oposto do que costumamos
fazer : no seio da Igreja, ou pelo menos em nós próprios, sabemos muito bem que
não estamos à altura da missão; aceitamos também de bastante — talvez demasiado
— bom grado que as nossas mãos não são dignas da tarefa que nos foi confiada.
Sabemo-lo de modo resignado ou cínico (às vezes absolvendo-nos a nós mesmos);
de qualquer forma, sabemo-lo. No entanto, exteriormente, esforçamo-nos por
exibir o nosso melhor aspecto, como se estivéssemos perfeitamente à altura da
tarefa, como se a Palavra e a Comunhão (o rolo e as chaves) fossem questões das
quais pudéssemos serenamente ser garantes diante do mundo. A iconografia
monástica sugere outra coisa : a indignidade da comunidade, a impossibilidade
de coincidir com o Mestre é a forma ordinária, a maneira necessária da
missão ad extra. A garantia, pelo contrário, é a tarefa do
Espírito, que fala no íntimo.
Anunciar-se como secular, expor a própria
inadequação, é uma figura intrínseca, original e sobretudo fecunda do anúncio
cristão. É a mesma tarefa que os discípulos de Jesus assumiram, expondo nos
Evangelhos a sua incapacidade de compreender o Mestre, a própria mediocridade,
ao mesmo tempo que proclamavam a necessidade do seu anúncio. Numa perícope
evangélica, Simão é referido como a pedra sobre a qual se funda a Igreja e como
o Satanás que deve pôr-se no seguimento de Mestre.
Mas aconteceria uma segunda coisa com um
cristianismo secular. E esta é, talvez, a oportunidade que o Evangelho tem de
propor uma síntese entre ele mesmo e as culturas. Anunciar-se como secular
significaria também convidar as culturas, qualquer cultura, a pôr-se no mesmo
caminho. Significaria pedir às culturas que se encontram na cena mundial que se
pensem a si próprias na sua secularidade e que o façam durante o seu processo
vital, durante o seu século, sem libertar o próprio fantasma.
Parece-me que os dois grandes males que atravessam
todas as culturas são as tentações identitárias e a indiferença. As primeiras
exploraram durante muito tempo os sinais religiosos como instrumentos de uma
coesão esvaziada de qualquer conteúdo; por sua vez, a indiferença imagina que
as verdades podem simplesmente estar umas ao lado das outras, como se fossem
universos independentes, tal como nas histórias desenhadas do multiverso. Para
superar ambas, seria útil lembrar a cada cultura a sua secularidade,
reafirmando que ela, tal como o cristianismo, é gerada por uma verdade que não
lhe pertence. Mas — juntos, num único ato cultural — poderíamos também lembrar
a cada cultura a sua necessidade imprescindível, na cena do século. Nenhum de
nós é o Absoluto, mas cada um de nós é necessário para a sua revelação.
Podemos facilmente concordar que o coração de cada
cultura é a sua língua. Ora, a língua é uma realidade que não pertence a
ninguém, é um instrumento de que ninguém é senhor : felizmente, porque de outro
modo cada ser humano deveria inventar uma a partir de zero. Qualquer cultura
existe em virtude da nossa aceitação de não nos apoderarmos da língua e de
utilizarmos um instrumento muito poderoso, sem que ele nos pertença. E, no
entanto, este instrumento que não pertence a ninguém, se não o utilizarmos, se
já não soubermos decliná-lo, não passa de um objeto morto : uma língua existe
porque ninguém se apodera dela, mas está viva porque todos a articulam
incessantemente.
Talvez alguém se lembre da parábola dos três anéis,
contida na peça teatral Nathan, o Sábio, escrita por um dos grandes filósofos
do Iluminismo, Gotthold Ephraim Lessing. Conta a história de um país longínquo
cujos governantes possuíam um anel mágico, capaz de os tornar agradáveis a Deus
e aos homens : passava de geração em geração para o filho mais amado. Mas um
rei, incapaz de escolher entre os seus três filhos, decidiu recorrer a um
artifício : mandou forjar dois outros anéis idênticos àquele; tendo-se tornado
incapaz de distinguir o anel mágico, deu um anel a cada um dos seus filhos.
Lessing conclui : ‘Que cada um tenha a certeza de que o anel é autêntico, (...)
que cada um concorra para demonstrar o poder do seu anel à luz do dia, com a
doçura, paciência, caridade e profunda devoção a Deus’. A parábola é
interessante, mas descreve um estratagema, um engano para o bem, mas mesmo
assim um engano : há ainda o fantasma de um pai que incumbe sobre a cena. O que
o cristianismo secular poderia anunciar é o fim dos enganos : só há anéis
verdadeiros. É uma sorte : podemos contar com tantos anéis mágicos e valorizar
a autenticidade que torna os outros, como nós, agradáveis a Deus e aos homens.
As culturas não são um artifício : todas elas são eternas precisamente por
serem seculares.
Se compete a nós fazê-lo, é porque o cristianismo
sempre o anunciou : esta realidade mais secular do que qualquer outra, o nosso
corpo, com as suas feridas, as suas rugas, as suas misérias, está destinado a
ressuscitar. O cristianismo intui que não é apenas nosso direito, mas um nosso
dever concreto acreditar na eternidade do que é secular.’
Fonte : *Artigo na íntegra
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