Por Eliana Maria
(Ir. Gabriela, Obl. OSB)
‘Hoje em dia, é fato
relativamente bem reconhecido que a literatura de fantasia do século XX deve
muito ao imaginário cristão – particularmente pela contribuição que J.R.R.
Tolkien deu ao gênero. Católico fervoroso, suas obras não têm intenção
catequética, mas estão impregnadas por uma mentalidade cristã. Seu maior herói,
Frodo, o pequeno hobbit, nascido numa terra perdida e depreciada, como a Nazaré
bíblica, aparentemente fraco e impotente, irá carregar o mal do mundo (o Anel)
e ser, com seu sofrimento, o instrumento para a salvação. A associação a Cristo
é inescapável. Sam Gamgee, o fiel companheiro trapalhão de Frodo, por sua vez,
representa claramente a figura do santo pecador.
Em seus textos,
Tolkien projetou, igualmente, suas inquietações existenciais e reflexões ‘teológicas’
(mesmo que sem nenhuma pretensão de fazer teologia, bom frisar). Viveu um tempo
particularmente angustiante, lutou na Primeira Grande Guerra e viu seus filhos
lutarem na Segunda, atravessando um entreguerras no qual a experiência de um
confronto não deu à humanidade a sabedoria de evitar um outro. O conjunto de
sua obra (na qual O hobbit e O Senhor dos Anéis são
os textos mais conhecidos) narra a dramática história desse mundo imaginário
onde os mais belos e mais poderosos irão sendo continuamente vencidos pelo mal,
vítimas de sua própria arrogância e cobiça. Só a pureza do pequeno hobbit e a
sabedoria do mago Galdalf, que reconhece na fragilidade a força de um Outro,
trarão a vitória definitiva sobre o Mal.
O Dia de Finados e o
lançamento mundial de uma nova série de streaming, Os anéis do poder,
a mais cara já filmada, baseada na obra de Tolkien, sugerem uma reflexão sobre
um dos pontos mais interessantes da ‘teologia’ desse autor : o grande dom de
Ilúvatar.
O
mundo criado por Tolkien
No imaginário
tolkieniano, mitos de outros povos, em particular os nórdicos, são revistos e
reinterpretados numa chave de leitura católica. Os textos nos quais essa
mitologia é constituída são apresentados em obras não publicadas em vida pelo
autor, como O Silmarillion e Contos inacabados.
Nessas obras, Ilúvatar é o deus criador, onipotente e aparentemente (mas só
aparentemente) distante de tudo que acontece no mundo. Os Valar, deuses menores
que frequentemente se confundem com a imagem dos anjos cristãos, são seus
representantes para a guarda da Criação. O mal entrou no mundo por obra de um
Valar decaído, Melkor ou Morgoth – imagem evidente de Lúcifer, que será
substituído por Sauron, o grande antagonista de O Senhor dos Anéis.
Duas raças, ambas criadas por Ilúvatar, disputam entre si a hegemonia no mundo
(a chamada Terra Média) : os elfos, os primogênitos, belos, poderosos e
imortais, e os homens, os filhos ‘mais novos’, fracos, contraditórios e
destinados a morrer.
Ao longo das eras
dessa Terra Média, vamos conhecendo o destino cruel dos elfos. Por mais belos e
sábios que sejam, acabam sempre sendo vencidos por se tornarem arrogantes e
cobiçosos. Os homens, por sua vez, seres ignóbeis que raras vezes demonstram
honra e dignidade, em sua fraqueza e contradição são frequentemente arrastados
para o mal. Contudo, e aqui está o centro desse artigo, Ilúvatar lhes concedeu
um presente paradoxal, que desperta simultaneamente desprezo e inveja de seus
irmãos elfos. Aos homens foi concedido o dom maravilhoso da morte.
Como a morte pode ser
um dom maravilhoso? Não seriam os seres mortais que deveriam invejar a
imortalidade dos elfos? De fato, a morte na mitologia de Tolkien ocupa esse
lugar contraditório e escandaloso. Os mortais invejam a vida eterna dos
imortais, mas também os imortais invejam o dom da morte dado aos mortais.
Vivendo num tempo marcado pela morte aparentemente injusta e sem sentido nos
campos da guerra, compreende-se que Tolkien tenha tido que dar uma resposta à
grande pergunta : pode existir um Deus bom que permita a morte indevida de
tantos seres humanos?
O
dom do qual se tem medo
A resposta de Tolkien
para o drama da morte é, sem dúvida, fascinante e totalmente cristã : a morte é
um dom, pois por meio dela os seres humanos poderão encontrar ao Criador, que
os ama tanto e pelo qual eles tanto anseiam. Nesta perspectiva, os homens têm
medo de morrer porque, para os vivos, a convivência com Ilúvatar, após a morte,
é inevitavelmente um mistério. Nem mesmo os Valar sabem exatamente como se
dará… O Tentador, sabendo disso, insinuou-se na mente dos seres humanos,
aproveitando-se de seu medo diante do desconhecido, para fazer com que temessem
a morte – e assim se afastassem de Deus e de seu grande dom de amor.
A maior função das
religiões – e isso vale para todas – é nos ajudar a superar o medo da morte. A
grande maioria delas apresenta, de uma forma ou de outra, essa grande intuição
que a morte é a possibilidade de encontrarmo-nos com a divindade. Nem todas, contudo,
pensam essa divindade como um Deus de amor. Muitas, mesmo reconhecendo o amor
de Deus, consideram a possibilidade de encontrá-lo muito difícil, exigindo uma
série de esforços e sacrifícios nessa vida. No próprio cristianismo muitas
vezes o medo do inferno parece maior do que a esperança na salvação.
Um sacerdote
italiano, que foi missionário no Brasil por muito tempo, padre Luigi Valentini,
já idoso, falando sobre a própria morte, dizia que agora se aproximava o
momento em que finalmente iria encontrar o grande amor ao qual havia dedicado
toda sua vida. Essa deveria ser a maneira, cheia de esperança, pela qual todos
nós deveríamos nos aproximar do momento da própria morte. Também deveria ser o
sentimento com o qual pensamos em nossos falecidos.
Oxalá o dom
maravilhoso do encontro com o Pai ilumine a nossa vida e nos ajude a viver com
alegria e comprometidos com o bem.’
Fonte : *Artigo na íntegra
https://pt.aleteia.org/2022/11/06/tolkien-e-a-morte-uma-reflexao-a-proposito-do-dia-de-finados/
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