Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)
‘Quando
estudamos a história das religiões, percebemos que houve um acidentado caminho
de tentativas de autotranscendência na compreensão que as sociedades tiveram de
si e do mundo.
Fustel
de Coulanges, em ‘A sociedade Antiga’, mostra que a religião não era uma
espécie de ‘valor agregado’ às antigas civilizações, mas a argamassa que as
unia. Traça um itinerário que vai desde os deuses familiares até os panteões
criados pelas antigas civilizações. Acerca da relação entre ‘religião e
moral’ ele escreve :
‘É
natural que a ideia moral tenha tido seu começo e tenha progredido como a ideia
religiosa. O Deus das primeiras gerações, nessa raça, era bem mesquinho; pouco
a pouco os homens tornaram-no maior; assim a moral, a princípio muito restrita
e incompleta, alargou-se insensivelmente, até que, de progresso em progresso,
chegou a proclamar o dever do amor para com todos os homens. Seu ponto de
partida foi a família, e foi sob a ação das crenças da religião doméstica que
os deveres começaram a aparecer aos olhos do homem’ (São Paulo, Editora das
Américas: 1961, p. 67).
Também
Mircea Eliade mostra que a relação entre religião e moral é muito precária no
paganismo antigo :
‘Seria
um erro acreditar que o homem religioso das sociedades primitivas e arcaicas
recusa-se a assumir a responsabilidade de uma existência autêntica. Pelo
contrário, ele assume corajosamente enormes responsabilidades : por exemplo, a
de colaborar na criação do Cosmos, criar seu próprio mundo, ou assegurar a vida
das plantas e dos animais etc. Mas trata se de um tipo de responsabilidade
diferente daquelas que, a nossos olhos, parecem ser as únicas autênticas e
válidas. Trata-se de uma responsabilidade no plano cósmico, diferente das
responsabilidades de ordem moral, social ou histórica, as únicas conhecidas
pelas civilizações modernas. Na perspectiva da existência profana, o homem só
reconhece responsabilidade para consigo mesmo e para com a sociedade. Para ele,
o Universo não constitui um Cosmos, ou seja, uma unidade viva e articulada; é
simplesmente a soma das reservas materiais e de energias físicas do planeta. E
a grande preocupação do homem moderno é a de não esgotar inabilmente os
recursos econômicos do globo. Mas, existencialmente, o primitivo situa se
sempre num contexto cósmico. À sua experiência pessoal não falta nem
autenticidade nem profundidade, mas, pelo fato de se exprimir numa linguagem
que não nos é familiar, ela parece inautêntica ou infantil aos olhos dos
modernos’ (‘O Sagrado e o Profano’, São Paulo: Martins Fontes, 1992, pp. 49-50).
Em
outras palavras, as sociedades antigas eram sociedades mágicas. A experiência
religiosa se dava através de uma noção fantástica da ação dos deuses. Os deuses
não eram propriamente bons ou maus. Eram uma reprodução da imagem do homem, que
tem seus interesses pragmáticos em busca da satisfação de suas necessidades
básicas.
A
concepção de um ‘deus bom’ é muito tardia na história das religiões. Alguns a
atribuem a uma espécie de migração do misticismo do extremo oriente, via o
espiritualismo budista, reelaborado na religião persa e sistematizado na
filosofia grega. Há quem hipotize uma influência causal do zoroastrismo persa
sobre a religião judaica no período pós-exílico, supondo que a ‘monolatria’ foi
introduzida pela classe sacerdotal, juntamente com o culto sacrifical
monopolizado por ela, com a execução de uma intensa produção literária que
começava a apresentar a ideia de bondade como característica de Yahweh.
Alguns
apresentam hipóteses e conjecturas como fatos consumados, mas, como afirma Alan
Segal, ‘a influência iraniana em Israel continua sendo um verdadeiro mistério.
Quando os documentos religiosos iranianos foram publicados pela primeira vez no
Ocidente, no século XIX e início do século XX, começou uma onda de interesse
por tudo o que fosse zoroastriano (da grafia grega, ‘Zoroastro’, de sua figura
principal, Zarathushtra), não apenas porque eram expressões exóticas e novas de
sabedoria, embora isso certamente fizesse parte da atratividade, mas porque as
imagens iranianas e especialmente seu dualismo religioso pareciam espelhar
muitas coisas sobre o pensamento judeu e cristão nos primeiros séculos de nossa
era. Depois de um período de reivindicações extravagantes e intenso e polêmico
escrutínio, a maioria hostil, o mundo acadêmico não admitiu quase nada do
zoroastrismo como uma influência na tradição judaica nativa’ (‘Life after
death: a history of the afterlife in western religion’, New York,
Doubleday: 2004, p. 175, tradução minha).
Em
todo caso, a relação entre moral e religião é decorrente do monoteísmo, o qual
entendeu a bondade de Deus e, portanto, percebeu que a origem do mal não está
num princípio que lhe seja perfeitamente antagônico, mas que, em todos os
casos, está subordinado a ele.
Não
é sem razão que percebemos nas Escrituras reverberações disso. Satã, no livro
de Jó, aparece como um ‘anjo’ a serviço de Deus. No judaísmo tardio, essa
concepção de satanás como acólito de Deus permaneceu, sendo fortemente refutada
pela Igreja, nos seus primeiros séculos.
No
Novo Testamento, a figura do diabo aparece sobretudo como a de um ‘tentador’,
aquele que se atira no meio (diabo, vem de ‘dia’ e ‘boulos’, literalmente, no
grego, aquele que se atravessa pelo meio) para desviar o homem do seu fim (a
noção de pecado como ‘hamartia’, que no grego remete a errar o alvo, tem
grandes afinidades com isso). E o Filho de Deus se encarna, para ‘destruir as
obras do diabo’ (1Jo 3,8).
Ao
invés de rejeitar a lei, o Novo Testamento, a despeito da crítica moderna
liberal, reforça a necessidade de uma conduta moral elevada, que leve o homem a
uma radical mudança de pensamento (‘metanóia’ significa literalmente isso)
provida de frutos de boas ações.
Desgraçadamente,
os reformadores lançaram uma grande confusão quando trataram do caráter
salvífico da lei. Para Lutero, como a salvação se dá apenas pela fé e é
forânea, ou seja, uma imputação exterior que não modifica a natureza, tudo que
o homem faz é mau e, portanto, incapaz de ser atinente à salvação. A doutrina
católica sempre sustentou que o homem não pode se salvar, que depende
radicalmente da graça de Cristo; mas que a graça opera uma verdadeira
regeneração que transforma o homem em colaborador do Senhor em seu processo de
transformação, de tal modo que as suas boas obras podem ser deiformes, ou seja,
podem ser feitas a partir de uma verdadeira união com Deus e ter um verdadeiro
valor sobrenatural.
Calvino
agravou ainda mais a situação, pois, com a doutrina da corrupção total, que
permanece mesmo após a justificação, o homem só pode ser salvo por uma eleição
divina que independe da sua própria escolha pessoal. Neste sentido, a imagem de
Deus, na teologia calvinista, se parece muito mais com as divindades antigas,
que são totalmente soberanas, não vinculadas à sua própria bondade, e que podem
decidir livremente o que quiserem, independentemente da bondade ou malícia do
homem. Para Calvino, porém, a bondade moral de alguém seria sinal de sua predestinação,
pois a perseverança dos santos seria fruto de uma graça irresistível.
Sendo
assim, temos como que uma relação diferente entre moral e religião no contexto
católico e protestante : para o protestante, o homem faz o bem porque Deus
mandou na sua Palavra (legalismo moral), o que difere do judaísmo (legalismo
cúltico), que entende que a observância cerimonial da lei é salvífica; para o
catolicismo, o homem deve fazer o bem porque o bem é bom em si mesmo, e isso é
racionalmente rastreável e útil para a salvação, desde que ele esteja em estado
de graça e realizando obras sobrenaturalmente virtuosas.
Neste
sentido, uma moral elevada faz toda a diferença. E, quando lemos o Novo
Testamento, percebemos como o chamado a uma vida moral correta é apresentada
como condição para o progresso na espiritualidade : nos sinóticos,
especialmente em Mateus, vemos como a lei moral é condição para ser um homem
justo (não é atoa que o Sermão da Montanha começa pelo comentário à lei para,
somente depois, partir para o comentário sobre a oração); nos escritos
joaninos, vemos a mesma exigência de luta contra o pecado, a tal ponto que o
narrador afirma que quem peca é do diabo; nas cartas paulinas, isso é
definitivamente salientado na luta entre a carne e o espírito, as obras da
carne e o fruto do Espírito.
Quando
a crítica histórica avançou em seu intento de desconstruir e desmistificar a
Sagrada Escritura, sem discernir a Divina Revelação por detrás de todas as
contingências históricas ocorridas na composição dos textos, acabou por criar
um problema de difícil solução. Como Hasel explica em sua ‘Introdução ao Antigo
Testamento’, houve um momento em que as ‘ciências bíblicas’ se
independentizaram da dogmática e passaram a utilizar métodos tão somente
historiográficos, renunciando à fé (como se o texto mesmo não tivesse sido
escrito a partir da fé).
Ora,
reduzindo tudo à mitologia, estava esvaziada a dogmática e, portanto, todas as
exigências morais passaram a ser percebidas como meras formas de controle
social da religião sobre o comportamento individual das pessoas. Como a solução
pietista consistiu em transformar a piedade no fundamento da fé (na versão
católica, isso significou tomar a sério tão somente as construções dogmáticas
dos Concílios), o fortalecimento dogmático tomado como pura abstração eclesial
começou a conviver com uma abertura moral cada vez mais libertária, uma vez que
o todo da Revelação era interpretado como condicionado às circunstâncias
históricas sociopolíticas.
Portanto,
a imagem de Deus oriunda dessas especulações cria uma verdadeira ruptura entre
dogma e moral. Alguém pode tranquilamente rezar o Credo apostólico e
proclamar-se a favor do aborto, do concubinato, do sexo livre etc. O hiato
entre moral e dogma, acaba, por fim, recriando a própria imagem de Deus, aos
moldes da nova espiritualidade decorrente disso (um ‘deus amor’ que acaba, por
fim, sendo apenas uma reprodução das deusas de procriação da antiguidade, por
exemplo).
Em
outras palavras, essa cisão produziu uma verdadeira fenda que, ao fim e ao
cabo, funciona apenas como meio de reconduzir o cristianismo a uma mera versão
do paganismo antigo : o Cristo Deus é esvaziado no Jesus Homem cuja
reconstrução indiciária é mais fictícia do que qualquer outra coisa, visto que
os rudimentos para tal projeto são tão esfarelados que não podem produzir nada
que seja coerente; esse núcleo duro revolucionário em que sucumbiu a identidade
de Cristo na nova teologia se presta a todo tipo de instrumentalizações.
Deste
modo, o cenário resumidamente por ser descrito nesses termos :
1.
Paganismo antigo – panteão de deuses sem conexão moral
2.
Judaísmo pós-exílico – monolatria rumo ao monoteísmo (Deus justo) com conexão
moral
3.
Cristianismo – monoteísmo trinitário (Deus amor) com conexão moral mais elevada
ainda
4.
Situação atual do cristianismo pós-moderno – monoteísmo trinitário dogmático,
sem conexão moral para além das agendas sociais da revolução do momento.
Como
se vê claramente, trata-se de uma redução do cristianismo à estrutura do
paganismo antigo (relação entre os nn. 1 e 4), em que Deus se reduz a
expressões humanas, com algumas pinceladas de Divina Revelação.
Tudo
isso tem duas consequências terríveis.
A
primeira é a inevitável falsificação de Deus. Um Deus que não se importa com o
bem ou o mal, que é indiferente à justiça ou injustiça praticada pelos seus
filhos, que trata o santo e o ímpio do mesmo modo, é injusto, não tem razão de
ser. Esse tipo de abordagem ética conduzirá inevitavelmente ao ateísmo.
A
segunda é o enclausuramento espiritual do homem. O processo de santificação é
um progressivo caminho de espiritualização, em que o homem vai deixando o
atolamento no mundo dos sentidos e vai entrando na liberdade do espírito. Nada
disso pode acontecer sem o refreamento das paixões e a submissão destas à ordem
da razão iluminada pela fé. Desconectar a dogmática da moral nada mais é que
tornar a própria dogmática apenas um conjunto de fórmulas teóricas, a partir
das quais o homem jamais poderá experimentar a intimidade da vida da graça.
É
exatamente esse isolamento teologal, que faz da teologia uma ciência de tipo
racionalista, espiritualmente marginalizada, o que permite que alguns cheguem a
aberrações desse tipo, como a paganização do cristianismo pelo cancelamento da
moral. Talvez não haja modo mais claro de expressar aquilo que São Paulo chama
de ‘apostasia’ (2Ts 2,3) e que Jesus chama de ‘anomia’ (Mt 24,12), ou seja,
rejeição da lei moral.’
Fonte : *Artigo na íntegra
https://pt.aleteia.org/2023/08/24/a-paganizacao-do-cristianismo/
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