sexta-feira, 25 de novembro de 2022

Vade retro, fundamentalista!

 Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 
*Artigo de Mirticeli Medeiros,

jornalista e mestre em História da Igreja, uma das poucas brasileiras

credenciadas como vaticanista junto à Sala de Imprensa da Santa Sé


‘Francisco governa a Igreja Católica num dos períodos mais desafiadores para a história da instituição. Isso porque, em 2013, quando foi eleito o 266° da Igreja Católica, viu o fundamentalismo cair como uma avalanche sobre a sua cabeça. Alguns grupos católicos radicais, que até o momento flertavam com o submundo dos populismos de extrema-direita, esposaram, de papel passado, a donzela far-right que, na ocasião, havia atingido a maioridade.

Graças ao advento das redes sociais, esse conservadorismo caricato conseguiu o feito de promover o revival de uma Guerra Fria, usando inclusive categorias do passado para declarar guerra a esse comunismo stalinista imaginário.

Digo caricato porque o ‘referencial teórico’ desse pessoal pode ser comparado a uma fanfarra desgovernada na qual cada músico resolve, a seu bel prazer, seguir a partitura que mais lhe agrada.

Basta ver o debate entre Paulo Cruz e Carla Zambelli no programa Flow, em outubro deste ano, para entendermos o quanto os ditos ‘conservadores bolsonaristas’, principalmente os cristãos, não têm noção sequer do significado dessa filosofia social da qual se dizem adeptos.

E, claro, não é diferente quando o assunto é catolicismo. Todo e qualquer insipiente com microfone, que desponta no youtube, vira um santo Atanásio do dia para a noite. E o pior é que esse ‘zelo ignorante’, infelizmente, conseguiu fazer orbitar, em torno a si, fiéis discípulos.

E é esse o cenário intra e extraeclesial que o Papa Francisco precisa levar em consideração.

Ficou ainda mais evidente, com o pontífice atual, o quanto muitos católicos foram mal catequizados, inclusive em relação às bases da própria doutrina cristã. Temas sociais que fazem parte do corpus doutrinário da própria Igreja Católica, e foi sendo formado e reproduzido por décadas, foram violados massivamente por quem sequer tem instrumentos suficientes para interpretá-los.

Tomamos como exemplo as críticas ao neoliberalismo e a visão do catolicismo em relação à propriedade privada, presentes na Fratelli Tutti (2020). Uma boa lida no roda-pé do documento evitaria muitas dessas distorções mirabolantes.

Francisco também é um papa que promove o debate teológico aberto, e por isso muitas vezes é mal compreendido.

O santo padre sabe que há um depositum fidei que não pode ser negligenciado, mas nem por isso deixa de ouvir outros pontos de vista em relação ao que pode ser mudado. Basta tomarmos como exemplo algumas questões de disciplina que estão fora do espectro doutrinal.

A sinodalidade, que ele tanto evoca, nada mais é que colocar a instituição em atitude de escuta, como se fazia no passado. São Cipriano de Cartágo (sec. III) disse, uma vez, que ‘que tudo o que compete a todos, deve ser debatido por todos’.

Mas se um Cipriano da vida fosse nosso contemporâneo, certamente seria chamado de herege em meio a toda essa sandice coletiva de ‘preservar’ o catolicismo, militando contra o papa ‘che non mi sta simpatico’.

Mas quem vive entre nós hoje é Francisco, então é ele quem acaba pagando a conta por tentar resgatar a essência do próprio cristianismo.

‘Herege’, ‘comunista’, ‘falso papa’. João XXIII também ouviu isso quando despontou como o grande mediador do conflito entre as potências da cortina de ferro, na década de 1960.

E seguindo os passos de seu antecessor, não dá importância aos insultos e segue adiante. Ainda bem.

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://domtotal.com/noticias/?id=1594553

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