Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)
jornalista e mestre em História da Igreja, uma das
poucas brasileiras
credenciadas como vaticanista junto à Sala de Imprensa
da Santa Sé
‘Francisco governa a Igreja Católica num dos períodos
mais desafiadores para a história da instituição. Isso porque, em 2013, quando
foi eleito o 266° da Igreja Católica, viu o fundamentalismo cair como uma
avalanche sobre a sua cabeça. Alguns grupos católicos radicais, que até o
momento flertavam com o submundo dos populismos de extrema-direita, esposaram,
de papel passado, a donzela far-right que, na ocasião, havia atingido a
maioridade.
Graças ao advento das redes sociais, esse
conservadorismo caricato conseguiu o feito de promover o revival de uma Guerra
Fria, usando inclusive categorias do passado para declarar guerra a esse
comunismo stalinista imaginário.
Digo caricato porque o ‘referencial teórico’ desse
pessoal pode ser comparado a uma fanfarra desgovernada na qual cada músico
resolve, a seu bel prazer, seguir a partitura que mais lhe agrada.
Basta ver o debate entre Paulo Cruz e Carla Zambelli
no programa Flow, em outubro deste ano, para entendermos o quanto os ditos ‘conservadores
bolsonaristas’, principalmente os cristãos, não têm noção sequer do significado
dessa filosofia social da qual se dizem adeptos.
E, claro, não é diferente quando o assunto é
catolicismo. Todo e qualquer insipiente com microfone, que desponta no youtube,
vira um santo Atanásio do dia para a noite. E o pior é que esse ‘zelo ignorante’,
infelizmente, conseguiu fazer orbitar, em torno a si, fiéis discípulos.
E é esse o cenário intra e extraeclesial que o Papa
Francisco precisa levar em consideração.
Ficou ainda mais evidente, com o pontífice atual, o
quanto muitos católicos foram mal catequizados, inclusive em relação às bases
da própria doutrina cristã. Temas sociais que fazem parte do corpus doutrinário
da própria Igreja Católica, e foi sendo formado e reproduzido por décadas, foram
violados massivamente por quem sequer tem instrumentos suficientes para
interpretá-los.
Tomamos como exemplo as críticas ao neoliberalismo e a
visão do catolicismo em relação à propriedade privada, presentes na Fratelli
Tutti (2020). Uma boa lida no roda-pé do documento evitaria muitas dessas
distorções mirabolantes.
Francisco também é um papa que promove o debate
teológico aberto, e por isso muitas vezes é mal compreendido.
O santo padre sabe que há um depositum fidei que não
pode ser negligenciado, mas nem por isso deixa de ouvir outros pontos de vista
em relação ao que pode ser mudado. Basta tomarmos como exemplo algumas questões
de disciplina que estão fora do espectro doutrinal.
A sinodalidade, que ele tanto evoca, nada mais é que
colocar a instituição em atitude de escuta, como se fazia no passado. São
Cipriano de Cartágo (sec. III) disse, uma vez, que ‘que tudo o que compete a
todos, deve ser debatido por todos’.
Mas se um Cipriano da vida fosse nosso contemporâneo,
certamente seria chamado de herege em meio a toda essa sandice coletiva de ‘preservar’
o catolicismo, militando contra o papa ‘che non mi sta simpatico’.
Mas quem vive entre nós hoje é Francisco, então é ele
quem acaba pagando a conta por tentar resgatar a essência do próprio cristianismo.
‘Herege’, ‘comunista’, ‘falso papa’. João XXIII também
ouviu isso quando despontou como o grande mediador do conflito entre as
potências da cortina de ferro, na década de 1960.
E seguindo os passos de seu antecessor, não dá
importância aos insultos e segue adiante. Ainda bem.’
Fonte : *Artigo na íntegra
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