sexta-feira, 30 de setembro de 2022

Para onde se caminha?

 Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 
*Artigo de Dom Walmor Oliveira de Azevedo,

Arcebispo Metropolitano de Belo Horizonte, MG

Presidente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil


Perguntas contam decisivamente na definição de rumos e nos discernimentos para escolhas que incidem sobre a vida. Perguntar é tão essencial quanto responder bem. Por vezes, conta mais a clarividência da pergunta – capaz de contribuir para a lucidez decisiva da resposta. Para onde se caminha? Uma interrogação que precisa incidir nas dimensões pessoal, familiar e social. A resposta revela valores escolhidos, princípios respeitados e práticas comportamentais inspiradoras. Não se pode caminhar por qualquer via ou direção. A irresponsabilidade na definição do percurso a ser seguido pode levar a prejuízos pesados que demandam, além de longo tempo, muitos esforços e investimentos para superar fracassos. Para onde se caminha? Questão que incide diretamente na existência humana, configurando rumos e consequências. Essa pergunta remete à responsabilidade de cada pessoa na configuração de uma adequada resposta.

Reagir à interpelação - Para onde se caminha? – é tarefa cada vez mais difícil, considerando, dentre outros, os riscos que surgem com a cultura tecnológica. Há, por exemplo, uma expressiva disseminação de notícias falsas - a mentira passando-se por verdade. Sabe-se ainda que o ambiente digital é também lugar onde muitos espalham o ódio, ou buscam construir a própria imagem, alcançar reconhecimento, pela destruição perversa da inteireza moral de seu semelhante. Deixa-se de lado o compromisso com a verdade para se esconder em um covarde anonimato, buscando propagar juízos destrutivos. Perde-se o compromisso com o bem do outro, o bem de todos. No lugar desse compromisso, torna-se cada vez mais habitual a perversidade de quem vê no semelhante um concorrente. Uma visão equivocada, pois todos são operários na mesma vinha, cujos frutos e abundância dependem da cooperação mútua e da participação criativa de cada um.

Nessa crescente tendência de se buscar destruir o outro, com quem se diverge, cai em desuso a pergunta feita por Jesus Mestre aos acusadores da mulher adúltera. Jesus, com a sua pergunta, indicou que jogasse a primeira pedra quem não tivesse pecado. O questionamento do Mestre alcançou efeito estupendo pois fez com que todos saíssem, um a um, certamente convictos de seus próprios limites. Uma lição que precisa ser aprendida na contemporaneidade, pois rumos sombrios são tomados quando não se pensa na edificação do semelhante : é preciso zelar pela convivência humana e cidadã. O compromisso com esse zelo inclui muitos exercícios, inclusive uma reflexão cotidiana a partir dessa pergunta : para onde se caminha? Pode-se caminhar na direção das ‘sombras de um mundo fechado’, ou buscar gerar um ‘mundo aberto’, como nos diz o Papa Francisco, nos capítulos primeiro e terceiro de sua Carta Encíclica, Fratelli Tutti, sobre a amizade social. Somente se pode caminhar adequadamente, em direção a metas frutuosas quando o ser humano compreende que só pode alcançar a sua plenitude na sincera oferta de si mesmo.

A alegria de viver apenas se efetiva quando são encontrados rostos para amar. Esse encontro é remédio que cura preconceitos e discriminações, ódio e indiferenças. Caminhar-se-á na direção de um ‘mundo aberto’ na medida em que vínculos são criados em comunhão e fraternidade, realidades mais fortes que a morte. Por isso, as relações interpessoais precisam ganhar amplitude para além dos territórios da própria família ou de pequenos grupos. O Papa Francisco fala de uma espécie de lei de êxtase – ‘sair de si mesmo para encontrar nos outros um acrescentamento de ser’. E lembra : ‘A partir da intimidade de cada coração, o amor cria vínculos e amplia a existência, quando arranca a pessoa de si mesma para o outro’.

Reconhecer, a partir da racionalidade e da espiritualidade, o valor único do amor é essencial para bem responder a esta pergunta : para onde se caminha? Há de se investir na constituição de uma estatura espiritual e humana que seja medida pelo amor. Assim, podem ser corrigidos descompassos, reorganizados raciocínios e redefinidas posturas, superando o que descompassa a vida e as limitações do viver humano. Consequentemente, encontra-se a cura para a enganosa perspectiva que leva tantas pessoas a pautarem a própria conduta considerando que a vida se resume à disputa por interesses. Uma visão distorcida que faz prevalecer o confronto – uns contra os outros, o tempo todo. A solidão, os medos e inseguranças, que são também consequências dessa perspectiva equivocada, levam a um caos insuportável. Para onde se caminha? Uma interrogação que não pode ser tratada de qualquer maneira, pois remete a responsabilidades cidadãs importantes, ao compromisso de cada um para que a humanidade tome novo rumo, a partir do encontro de qualificadas respostas.

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://domtotal.com/noticias/?id=1589943

quarta-feira, 28 de setembro de 2022

Fogueira acesa

 Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 
*Artigo do Padre Geovane Saraiva,

jornalista, colunista e pároco

de Santo Afonso de Fortaleza, CE


Nada de se preocupar nem se importar com as cinzas, sem levar em conta a importância grandiosa que se dá à fogueira, com o ardor e o calor de suas chamas, enormes e intensas. Como se fosse uma fogueira, a celebração da vida está unida ao sacrifício de Cristo como verdadeira súplica e perfeito louvor, tudo a partir do cordeiro redentor, que, na obediência à vontade divina, encontrou seu ponto mais elevado na morte de cruz, ao nos indicar seu supremo gesto, último e definitivo, mas na alegre ventura e êxito em favor da criatura humana, no seu fim, de determinante satisfação.

Nas labaredas da vida, com suas veredas, contamos Jesus de Nazaré, nascido dos homens e nascido de Deus, tendo sua origem humana na providencial intervenção divina. A celebração de sua vida, no pão e no vinho, é sustento espiritual e nela são encontrados os dons da unidade, no mais seguro discernimento. Todos somos responsáveis pela confiança no testamento de seu amor, que nos assegura a garantia da vida na sua integralidade, na busca da casa comum para todos, que é obra das mãos de Deus, afastando-nos das angústias do mundo e de todo e qualquer ocaso.

Nele, Deus encaminha as pessoas à felicidade, no espírito das bem-aventuranças, da plenitude divina, no envolvimento transformador, na mística libertadora que transfigura as criaturas humanas, dilata e sensibiliza corações. Sendo de Deus fruto esplendoroso e magnífico da mais pura fecundidade divina, ele é um presente para o ser humano e para o mundo. Pela fé, temos a segurança de que aquele que ‘nasceu da Virgem Maria’, bem do seio da humanidade, dele depende toda a fecundidade humana, na irrefutável afirmação divina, a de que ‘nele tudo foi criado; não nasceu do sangue, nem da vontade da carne, nem da vontade do homem, mas sim de Deus’ (João 1, 13).

Pensemos, pois, na fogueira acesa, que inflama com suas chamas, absorvida nas labaredas da vida, sem nos esquecer das cinzas, transparecendo-as no relativo e no provisório, voltando-nos para a bem-aventurança eterna, identificados com o Cristo servidor, perseguido, odiado, insultado, ultrajado e excluído. Ele é visível naqueles que se dispõem a abraçar – na doação, na renúncia e na generosidade – sua causa: o projeto de amor. Assim seja!

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://domtotal.com/noticias/?id=1589685

segunda-feira, 26 de setembro de 2022

A Igreja Católica precisa repensar o papel dos padrinhos

 Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 
*Artigo de Ted Kennedy Jr

Tradução : Ramón Lara


No ano passado, aos 59 anos, escolhi uma nova madrinha.

Um ano antes, minha madrinha e tia, Jean Kennedy Smith, havia falecido, Jean e eu construímos uma vida inteira de memórias e confidências, trabalhamos de perto para expandir as oportunidades artísticas para pessoas com deficiência, e sua perda me deixou diante de um vazio emocional e espiritual.

Meu relacionamento com Jean não poderia ser substituído, mas era importante para mim construir outro relacionamento único com alguém que incorporasse integridade, uma profunda espiritualidade e uma profunda gratidão pela vida. Gradualmente, uma imagem de uma potencial nova madrinha se formou na mente : minha tia Ethel Kennedy.

Minha tia Ethel e eu compartilhamos um vínculo especial há muito tempo. Nossos jantares juntos são recheados de histórias e seguidos de canções. (Ethel adora quando canto um sucesso atual da Broadway ou uma velha balada) Adoramos velejar juntos no Nantucket Sound, e finge surpresa quando peço para assumir o leme, o que sempre faço. Nós rimos juntos e choramos juntos. Sempre valorizei profundamente sua perspectiva e orientação únicas, especialmente em momentos difíceis e dolorosos. Sinto que minha tia Ethel possui mais sabedoria, compaixão, fé, gratidão e aceitação do que qualquer outra pessoa que conheço.

No entanto, hesitei em pedir que assumisse esse novo papel. Como matriarca de nossa família, minha tia Ethel tem muitas outras responsabilidades familiares. E ela tem muitos filhos, netos e bisnetos que já exigem seu amor e atenção. Eu não queria sobrecarregá-la ou aumentar sua longa lista de obrigações.

Mas quanto mais pensava nisso, mais percebia que era a única pessoa em minha vida que incorporava o tipo de fé que mais admiro e respeito. Resolvi escrever uma carta e convidá-la para ser minha madrinha.

Certa noite, antes de um de nossos jantares à beira da lareira, decidi ler a carta em voz alta. Tia Ethel estava sentada em seu lugar habitual em seu sofá azul, com seu cachorro, Rascal, descansando ao seu lado. Levantei-me e tirei a carta manuscrita do bolso da camisa. Limpei minha garganta. Com lágrimas começando a brotar em meus olhos, li minha carta para ela. Expliquei o quanto a amava e estimava, e como esperava que ela considerasse esse novo e especial papel de madrinha.

Eu nunca vou esquecer o amor e a emoção que nós dois sentimos quando ela aceitou com entusiasmo. Eu estava sobrecarregado de alegria.

Minha tia Ethel sugeriu que de alguma forma formalizássemos nosso novo relacionamento e eu concordei. Convidamos nossa família e alguns amigos próximos para assistir à missa juntos, após o que ambos demos um testemunho de amor um pelo outro, bem como nossas esperanças para nosso novo relacionamento espiritual. (Fomos abençoados por ter Matt Malone, S.J., da America Media, para celebrar esta cerimônia) Concluímos o culto pedindo a todos os presentes que se unissem para renovar nossas promessas batismais, que nos uniram e reafirmaram nosso relacionamento com nossa comunidade cristã maior.

Um novo começo

Ao compartilhar esta história com um grupo mais amplo de familiares e amigos católicos, muitos ficaram surpresos ao saber do meu status de novo afilhado. Eles nunca imaginaram que fosse possível, quando adultos, escolher um novo padrinho depois de perder um antigo. Também compartilhei minha história com vários padres. Eles me disseram que não conseguiam se lembrar de um único caso em que um adulto convidou alguém para se tornar seu novo padrinho.

Alguns dos meus amigos descreveram o luto pela perda de seus padrinhos, por morte ou desconexão, enquanto outros não se lembram de ter conhecido seus padrinhos. É um papel que significa coisas diferentes para pessoas diferentes, mas a Igreja Católica tem uma compreensão específica disso. Para batismos infantis, normalmente um padrinho é um amigo próximo ou parente dos pais da criança. Eles são escolhidos para testemunhar o batismo de uma criança e devem orientar a criança em seu desenvolvimento de caráter e formação espiritual. E na igreja primitiva, os padrinhos juravam assumir a responsabilidade legal e financeira por seu afilhado em caso de negligência ou morte dos pais.

Contudo, muitas vezes, entendemos que a relação padrinho/afilhado se estende apenas até a infância do afilhado. Acredito que nossa comunidade católica precisa expandir nossa noção atual desse relacionamento sagrado para aqueles de nós batizados quando crianças, a fim de enfatizar que o papel é aquele que dura e é necessário por toda a vida. Se não fizermos isso, estaremos perdendo uma enorme oportunidade de fortalecer nossos laços espirituais e intergeracionais.

A necessidade e o desejo de orientação espiritual, amor, apoio e orientação pessoal não terminam quando atingimos a idade adulta. Todos nós continuamos a precisar de ajuda com decisões difíceis e desafios pessoais ao longo de nossas vidas. Quando o papel ativo de um padrinho termina, seja por apatia, distanciamento ou morte, devemos nos sentir à vontade para pedir a outra pessoa que assuma esse papel. É uma bela maneira de reconhecer, homenagear e celebrar um indivíduo que já abriu seu coração e, ao abraçar esse novo papel, pode fazer uma diferença importante. Minha experiência em forjar esse novo relacionamento já aprofundou meu relacionamento com minha nova madrinha e fortaleceu meu senso de conexão com minha fé católica.

Isso não quer dizer que nosso relacionamento mudou de repente em um curto período de tempo. Mas há definitivamente um novo sentimento de união e um senso mais profundo de confiança. Há uma segurança e conforto que vem de poder falar honestamente e ser vulnerável com alguém no contexto desse relacionamento. Tia Ethel compartilhou comigo que ela sente o mesmo.

Há muitas maneiras pelas quais a Igreja Católica pode procurar expandir nosso conceito atual e muitas vezes limitado de padrinho, quer isso signifique ajudar as pessoas a encontrar novos padrinhos entre uma comunidade paroquial, celebrar uma missa para padrinhos e afilhados ou oferecer palestras sobre a história, o futuro e o significado do papel de guia. Mas não precisamos esperar por uma mudança institucional para dar esse passo. Se está faltando um padrinho, você pode pensar em homenagear uma pessoa em sua vida com um convite para esse novo relacionamento agora mesmo. Todos os membros de nossa comunidade de fé merecem a chance de procurar e identificar um mentor espiritual e uma presença respeitada e amorosa.

Hoje em dia, minha tia Ethel e eu ainda fazemos as mesmas coisas que sempre fizemos, compartilhando jantares e músicas, esperanças e sonhos, mas esses momentos juntos agora parecem ainda mais especiais, porque agora compartilhamos esse vínculo único um com o outro.’

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://domtotal.com/noticias/?id=1589499

sábado, 24 de setembro de 2022

A glória de ser inútil

 Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

*Artigo do Padre Luc De Bellescize,

da diocese de Paris, vigário da paróquia de Saint-Vicent-de-Paul


‘Mesmo sem concordar, compreendo muito bem a lógica da eutanásia e a esmagadora maioria das pesquisas a favor da mesma. Vejam as perguntas feitas… Se tiver de escolher entre a inevitável degradação de uma morte lenta e uma adorável enfermeira que vem para colocá-lo a dormir suavemente, o resultado será unanimemente a favor da segunda proposta. A eutanásia é o último passo no tapete ensanguentado da cultura da morte. Há muito que decidimos ser os árbitros da vida nascente e escolher quem merece viver ou morrer, pelo que nada nos impede de sermos os árbitros da vida terminal. A grande transgressão já foi cometida há muito tempo.

Uma lógica consistente com a paganização

A cantora Dalida queria ‘morrer no palco ao som da ribalta’. Posso compreender que se contentasse com uma ‘morte suave’, segundo a etimologia da palavra, numa boa cama se possível, porque não numa clínica na Suíça impecavelmente limpa com um fundo de música comercial relaxante, antes de acabar polvilhada no Lago de Genebra para ser utilizada como alimento para as carpas. Se considerarmos o corpo humano como um material biodegradável e não o memorial de uma pessoa prometida à ressurreição, tenhamos, pelo menos, piedade da carpa.

Esta lógica de ‘escolher a própria morte’, ou escolhê-la para aqueles que já não são capazes de fazê-lo, uma deriva inescapável que vemos em países que já legalizaram a morte dos fracos, parece ser inteiramente consistente com a paganização do mundo. As pater familias romanas tinham o direito de vida e morte sobre seus filhos, e Esparta eliminava aqueles que tinham o menor defeito. Se esquecermos o fundamento cristão da nossa antropologia ocidental, nomeadamente a encarnação de Deus na nossa carne e a sua entrada no sofrimento e na morte, o que dá a cada pessoa, mesmo a mais desonrada ou obscura, uma nobreza incomparável, os velhos demónios do ter e do poder sempre nos alcançarão. Porque, no fim de contas, apesar das justificações humanistas e dos sentimentos chorosos, e apesar dos dramas – altamente instrumentalizados – que ferem a nossa terra com lágrimas, é também uma questão de dinheiro. Os cuidados paliativos irão sempre custar mais do que uma injeção letal.

A perda da grande esperança

Basicamente, perdemos a grande esperança, a da vida eterna; tudo o que nos resta é a terra, que está a encolher como um espaço de desgosto, e o tempo, que é deixado à sua própria finitude. Não há outra perspectiva além do relógio indefectível, ‘que diz sim, que diz não, que diz : estou à tua espera’. Se o homem nasce do acaso e vai em direção ao nada, torna-se o barco bêbado de Rimbaud que já não é guiado pelos ventos e desce os rios impassivelmente. A obsessão com o relógio substituiu a paciência do eterno. O reflexo de sobrevivência consiste, portanto, em evitar cuidadosamente qualquer ansiedade espiritual. Acima de tudo, não devemos despertar o chamado esquecido de um Deus que lentamente matamos, não sem dificuldade, na nossa consciência emancipada. Somos simplesmente convidados a consumir a vida enquanto pudermos desfrutar dela, como um hamster bulímico a girar freneticamente na roda da sua jaula, porque cada hora que passa é um passo em direção ao nada.

Estas são as duas opções abertas ao ateísmo prático e irrefletido que se tornou o ar comum do homem ocidental : excitação e depressão. Tudo o que temos de fazer é transmutar a busca metafísica de significado numa obsessão com a saúde e a exaltação do bem-estar, e depois tomar antidepressivos quando as nossas capacidades diminuídas nos impedem de nos divertir por aí. O terceiro ato consistirá em ‘pedir livremente’ a morte quando a sociedade nos impuser a imagem de sermos um desperdício caro. Na realidade, estas escolhas sucedem-se inelutavelmente uma à outra. Hemingway queimou a sua vida de bar em bar e de mulher em mulher antes de dar um tiro na cabeça quando sentiu impotência, diabetes e cegueira a aproximarem-se.

Fragilidade, uma fenda na couraça dos corações

É a canção de Starmania : ‘Tudo o que queremos é ser felizes, ser felizes antes de sermos velhos’, como se ‘ser velhos’ fosse necessariamente ser infeliz. Como se a felicidade fosse monopólio da juventude. No entanto, muitas coisas bonitas acontecem aos pés da cama de uma pessoa moribunda. A fragilidade racha a couraça dos corações. Pensemos na magnífica canção de Aznavour, La Mamma, onde as crianças voltam de longe, mesmo as do sul da Itália, mesmo o filho amaldiçoado, tocando suavemente canções ao violão e cantando a Ave Maria. Os nós da vida são desatados perante a mãe moribunda. Pois os mais frágeis dão-nos o sentido do essencial e da gratuidade que faz a eminente dignidade da nossa vida humana : a de não servir para nada. A de estar infinitamente para além do utilitarismo. A de ser uma história sagrada. Somos servos inúteis (Lc 17, 10). Esta é a nossa glória. Morrer com dignidade é certamente beneficiar-se de cuidados que acalmam o sofrimento do espírito e do corpo. Mas também é morrer por nada, e ser amado de qualquer maneira. Não pelo que se tem, mas pelo que se é.

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://pt.aleteia.org/2022/09/23/a-gloria-de-ser-inutil/?fbclid=IwAR01gOiBJDucSI6FogjTaIM9D5yUqRQJr4Zqtri32sN-siF0SBE3xKD-GaA

sexta-feira, 23 de setembro de 2022

Os católicos da faculdade de 'pitacologia'

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

*Artigo de Mirticeli Medeiros,

jornalista e mestre em História da Igreja, uma das poucas brasileiras

credenciadas como vaticanista junto à Sala de Imprensa da Santa Sé


O que é comunismo? Grosso modo, é um regime que instaura o ateísmo de Estado, o unipartidarismo, a socialização dos meios de produção e a extinção da propriedade privada.

Mas, pera, com certeza o Norberto Bobbio é comunista porque descreve o conceito em seu famoso Dicionário de Política. Fogo das labaredas do Twitter nele! Não, mas o Joe Biden (dos Estados Unidos, a terra média do capitalismo, o country-boss da parte blue do mapa da Guerra Fria), com certeza é comunista raiz. Não, já sei!, sobre essa pessoa a gente tem certeza, já que os filósofos da terra plana nos confirmaram : Papa Francisco. Aquele pontífice que se encontrou com Fidel! (com quem João Paulo II e Bento XVI também se encontraram).

Pode parecer uma sátira do inimaginável, mas o mais triste é que essa sandice em espiral tem girado dentro da cabeça de muita gente que mal sabe explicar um conceito, mas se sente autoridade máxima nesses assuntos.

O problema é que essa ignorância canonizada na esfera política também é incensada por muitos grupos católicos. Pessoas que mal conhecem o funcionamento da instituição da qual fazem parte, viram, do dia para a noite, especialistas em teologia, história da Igreja, tomismo, liturgia e política externa do Vaticano. É um verdadeiro show de horrores.

Uma das grandes ‘referências’ de ‘cobertura jornalística’ do Sínodo da Amazônia (2019) pensava que o presidente da comissão de redação da assembleia era o responsável pela escrita do documento final. E ainda expôs seu espanto amador, após consultar o oráculo da própria cabeça : ‘O cardeal admitiu que não é ele quem escreve o texto!’. Pronto, foi o combustível necessário para encher o tanque das velhas teorias da conspiração.

Em qualquer sínodo, essa pessoa é responsável por coordenar a equipe de peritos que, tecnicamente, é quem coloca a mão na massa. Não é o chefe da comissão quem pega a caneta e o papel para fazer esse trabalho. Desde 1967, quando Paulo VI criou o organismo, é assim.

E são essas narrativas escabrosas, muitas vezes sem pé e nem cabeça, que são chanceladas como verdade por muitos católicos. Basta o sujeito colocar um suspensório e enfiar um charuto na boca diante das câmeras do youtube e pronto : a notoriedade esotérica vem. Aplausos para quem faz cosplay de Chesterton. E coitado do Chesterton, que nem merecia ter sua memória tão ridicularizada assim.

A atenção especial aos marginalizados e àqueles que sofrem é uma das pautas prioritárias do cristianismo. E sempre foi. Então não seria estranho que um Papa também se preocupasse com essas questões. Até porque todo e qualquer sumo pontífice tem a liberdade de criar um programa de governo a partir daquilo que ele julgue necessário dar mais ênfase.

Se para esse povo o soberano de um Estado teocrático e monárquico-eletivo , nem quero imaginar as outras pérolas que saem desses círculos ‘iluminados’.

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://domtotal.com/noticias/?id=1589293 

quarta-feira, 21 de setembro de 2022

Estímulo em São Carlos de Foucauld

 Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 
*Artigo do Padre Geovane Saraiva,

jornalista, colunista e pároco

de Santo Afonso de Fortaleza, CE


Nada de vaidade, de presunção ou mesmo de opinião excessivamente elevada e pretensiosa quanto à canonização do Padre Charles de Foucauld, na sua inspiração divina, ao afirmar que gostaria de ser bom, para que se pudesse dizer : ‘se assim é o servo, como não seria seu mestre?’ (cf. Fontes Foucauldianas). A imagem viva do amor por Jesus ele encontrou, quando na palavra do sacerdote Pe. Hivelin, ao pedir-lhe uma orientação que fosse plausível a respeito de Deus, em outubro de 1886, aos 28 anos de idade.

Mudar e estimular, sim, no seu exemplo de vida, a partir daquela feliz circunstância, decisiva em sua vida, repetidas incontáveis vezes por ele : ‘Quando acreditei que existia um Deus, compreendi que não podia fazer outra coisa, que não fosse viver somente para Ele’ (Fontes Foucauldianas). Estímulo, sim, no sentido de aprender e com ele para melhor se perseguir seu ideal de vida, a conversão do coração, mas na compreensão dos nossos Tuaregues hodiernos, na esperançosa confiança no bom Deus, a que penetrou no mais profundo de sua alma, numa súplica universalmente aberta e acolhedora.

Impulso, pela espiritualidade de Charles de Foucauld, aquele que foi seduzido pelo amor de Deus, ao confessar seus pecados e sentir uma indizível alegria, a mesma alegria do filho pródigo. Mudança pelo desafio de acreditar e concordar com a mística cristã, no amor dele por todos, indistintamente, sempre de braços abertos para pessoas boas e não boas. Deus quer, através de São Charles de Foucauld, canonizado aos 15 de maio de 2022, que não nos afastemos do eixo de seu legado e itinerário espiritual : o da conversão permanente, da Eucaristia como centro, a oração do abandono, a busca do último lugar, sem esquecer do Evangelho da Cruz (cf. Espiritualidade para nosso tempo, Edson Damian, Paulinas, 2007).

O Deus que lhe falou na sua incredulidade, indiferença e egoísmo, caindo nas mãos divinas, sendo arrebatado e seduzido por Jesus de Nazaré, que se tornou o único e maior tesouro de sua vida. Mudança, numa palavra, de ânimo levantado e para cima, mas na mais viva esperança de vermos novas todas as coisas (cf. Ap 21, 5), ao mesmo tempo agradecidos ao bom Deus pelo dom da vida do Irmão Carlos de Foucauld – místico, referencial e patrimônio espiritual para a nossa civilização cristã, na experiência do absoluto de Deus.

Em São Carlos de Foucauld, Deus quer se manifestar, abrindo caminhos, animando-nos com o alimento e com a água verdadeira, que, com seu próprio exemplo, faça jorrar água das pedras ou dos rochedos dos corações humanos, matando a fome e a sede de sua esposa sedenta: a Igreja. Na caminhada pelos nossos desertos da vida, não prescindir dos ensinamentos metafóricos da caminhada do povo de Deus, também jamais preterir do irmão universal, Charles de Foucauld.

Que o Reino de Deus, na sua universalidade, anunciado e testemunhado pelo Irmão Carlos de Foucauld, ao quebrar crosta de veladas fronteiras e barreiras existenciais, mesmo na imaginação, nas convicções e no intolerante silêncio de irmãos e irmãs na fé, jamais seja causa de empecilhos, mas que facilite como um farol a iluminar a existência humana.

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://domtotal.com/noticias/?id=1589066

segunda-feira, 19 de setembro de 2022

Acolher o estrangeiro: a experiência de uma religiosa em centro para migrantes

 Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 
*Artigo de Maria Giovanna Titone,

das Irmãs de São José de Chambèry


Coordenar a gestão de um dormitório paroquial significa ver tantas realidades. As minhas experiências anteriores de voluntariado com os desabrigados provavelmente focalizaram-se mais em encontrar ‘estratégias’ para os abordar e no pouco que lhes podia dar : algo para comer, beber, e algumas escassas palavras de conforto e encorajamento, juntamente com informações úteis ou supostamente tal.

Dormitório ‘Bom Samaritano’

A gestão de uma instalação de baixo limiar, no entanto, apresenta desafios bastante diferentes. É uma questão de pôr de lado até as melhores intenções para dar lugar à vida daqueles que acolhemos e de permanecer anunciadores da esperança cristã, apesar da impotência a que tantas vezes estamos expostos. O nosso dormitório ‘Bom Samaritano’, que funciona na paróquia de San Rocco em Ravenna, enfrenta o desafio diário de lidar com a resignação e a perda de significado.

É muito impressionante ver a procura contínua de acolhimento por parte de jovens imigrantes, que se encontram no limbo da espera de documentos e da inserção nos CAS (Centri di Accoglienza Straordinari [Centros de Acolhimento Extraordinários]) cada vez mais lotados. Ravenna não está na rota do fluxo migratório, mas correu rumores de que a Questura é rápida com os documentos (informação inexata) e muitos seguem este caminho para chegar mais cedo ao seu objetivo de se legalizar na Itália, mas encontram-se perante longas esperas (de 2 a 8 meses, em média) sem trabalho, alojamento nem dinheiro, por outras palavras, na rua.

Igualmente numerosa é a presença de pessoas que sofrem de perturbações mentais e dependências, que não encontram uma rede de proteção adequada, nem familiar nem de saúde, e assim acabam por entrar e sair de dormitórios como o nosso. As nossas pequenas instalações, que na época da Covid podem acomodar até 15 homens e 3 mulheres, enfrentam assim desafios muito maiores do que elas.

Com frequência, questiono-me sobre o que significa viver o anúncio do Evangelho dentro deste dormitório, no qual se precisa de determinação, atenção aos detalhes e uma visão global, cuidado nas relações com as instituições públicas, conhecimento do território e dos seus recursos, e consciência dos próprios limites, tanto pessoais como no próprio acolhimento, sem se prender a ‘mania de salvador’ nem a desânimos. Com efeito, também nós temos de fazer escolhas difíceis, como recusar algumas pessoas perante atos de agressão ou violações graves das regras internas, ou dizer ‘não’ à receção, reconhecendo que não estamos à altura de lidar com as dificuldades vividas pelos nossos hóspedes. De facto, não compete a nós - pequena estrutura, fundada há mais de 20 anos pelo padre Ugo Salvatori, que foi um presbítero da Diocese de Ravenna-Cervia, e dirigida por voluntários - assumir por nossa conta o drama destas pessoas.

As administrações com as quais procuramos trabalhar em rede acabam muitas vezes por confiar em realidades como a nossa para responder em caso de emergência a situações que deveriam ser reconhecidas como direitos. Sabe-se bem que há falta de recursos econômicos e de pessoal para acompanhar os casos; há falta de instalações adequadas para acomodar pessoas com necessidades de saúde e habitação. O tempo burocrático necessário para regularizar a presença de imigrantes no nosso país é demasiado longo e incerto... Por todas estas razões, não é suficiente dar-lhes uma cama e um duche, embora isto seja já tudo o que precisam para sair das ruas e do desespero. Precisamos de ser a voz daqueles que não têm voz na nossa sociedade ocidental, chamando a atenção das instituições e da opinião pública para que, recordar os últimos, não seja apenas um slogan de campanha eleitoral, mas uma exigência de civilização, até antes da caridade.

Caridade e esperança cristã

Como cristãos, não podemos contentar-nos com uma política que utiliza símbolos religiosos quando necessário, mas devemos ser exigentes e pleitear que os programas e as escolhas administrativas resultantes respondam às necessidades reais das pessoas, e especialmente dos mais débeis. Caridade e esperança cristã, do ponto de vista que me é oferecido por este pequeno dormitório paroquial, não podem ser satisfeitas com o pouco que podemos fazer, precisamos de uma consciência ativa e crítica que sinta o imperativo de promover a justiça social e se comprometa com escolhas concretas, para exigir que os últimos não sejam instrumentalizados e depois novamente esquecidos. Como Igreja, devemos exigir que os nossos valores fundadores não sejam recordados para criar divisões entre aqueles que podem ou não ter acesso aos sacramentos, mas que sejam consistentemente realizados em escolhas políticas e sociais que promovam uma sociedade na qual cada mulher e cada homem sejam reconhecidos na dignidade de pessoa.

Como afirmou o cardeal Matteo Zuppi, presidente da Conferência Episcopal Italiana, no seu agradecimento ao presidente cessante Draghi, «devemos pensar no sofrimento das pessoas e garantir respostas sérias, não ideológicas ou enganosas, que indiquem, se necessário, sacrifícios, mas deem segurança e razões de esperança»; «o confronto político fundamental não deve carecer de respeito e deve ser marcado pelo conhecimento dos problemas, por visões comuns sem astúcia, com paixão pelos assuntos públicos e sem agonismos aproximativos que tendem apenas para um posicionamento personalista mesquinho e não para resolver as questões».

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://www.vaticannews.va/pt/igreja/news/2022-09/projeto-sisters-historia-irma-maria-giovanna-titone-migrantes.html

sexta-feira, 16 de setembro de 2022

Francisco: de malas prontas para a China

 Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 

Papa Francisco cogita ida à China em visita ao Cazaquistão | ANSA

*Artigo de Mirticeli Medeiros,

jornalista e mestre em História da Igreja, uma das poucas brasileiras

credenciadas como vaticanista junto à Sala de Imprensa da Santa Sé


Não foi a primeira vez que um papa colocou os pés no Cazaquistão. João Paulo II foi para lá em 2011, dias após os atentados de 11 de setembro. Coincidência ou não, os pontífices visitaram o país em momentos cruciais.

Francisco, que concluiu sua visita apostólica a Nur-Sultan na última quinta-feira (15), proferiu mensagens importantes sobre o papel da religião na gestão de conflitos, além de renovar o apelo contra toda forma de fundamentalismo religioso e instrumentalização política da fé.

A ida do santo padre à terra dos cazaques foi articulada por causa do congresso dos chefes das religiões mundiais e tradicionais, que foi sediado na capital do país. O evento quase se tornou palco de mais um encontro histórico entre o pontífice e o patriarca Krill, chefe da Igreja Ortodoxa Russa. Mas o religioso de Moscou cancelou sua ida de última hora. Mesmo assim, a visita, por si só, foi estratégica para a Santa Sé.

O território faz fronteira tanto com a Rússia quanto com a China, dois países que estão na mira do Estado Pontifício por razões óbvias.

Francisco já expressou o desejo de visitar a Rússia para mediar o fim da guerra. E também nutre a esperança de ir à Terra do Dragão para atuar como promotor da liberdade religiosa, haja vista que milhões de católicos (bem como protestantes e outras minorias religiosas), mesmo após as tentativas de reaproximação entre Santa Sé e Pequim, continuam sendo perseguidos. Caso isso se concretize, será o primeiro líder da Igreja Católica a fazê-lo. Os dois Estados cortaram relações em 1951, logo após a expulsão do embaixador vaticano do país, que aconteceu após a ascensão de Mao Tse-Tung.

Francisco, que é jesuíta, se obtiver sucesso nessa empreitada, evocará um episódio que marcou a história da sua congregação. Foram eles, os membros da ordem fundada por Santo Inácio de Loyola, que conseguiram, a duras penas, penetrar no território chinês no século XVI, após tentativas fracassadas de outros missionários católicos em épocas anteriores.

O governo do Papa Francisco, nesta questão, já acumula avanços discretos. O acordo com a China para a nomeação conjunta de bispos, por exemplo, é tido como uma vitória pela diplomacia vaticana.

Desde o pontificado de João Paulo II já se ensaiava uma tratativa desse porte. Sem contar que Francisco foi o primeiro Papa da história a conseguir autorização para sobrevoar o espaço aéreo chinês quando se deslocou de Roma para a Coréia do Sul em 2014. João Paulo II, quando fez o mesmo trajeto, em 1989, teve que fazer um desvio. Uma demonstração de que o ‘estilo franciscano’ tem conseguido quebrar o gelo de alguma forma. Escalar essa ‘grande muralha’ é para poucos. Mas o líder religioso que conseguir, certamente não beneficiará somente os católicos.

A brecha que se abriu, embora pareça contraditória aos olhos do público leigo, é vista com entusiasmo pelo Vaticano porque o regime comunista considera a interferência pontifícia uma ameaça à soberania nacional. Lembrando que, nesse sistema de governo, a religião também se submete ao Estado. A grosso modo, dar autonomia jurídica à Igreja Católica, a única religião cristã do mundo que é amparada por um estado independente, significa conceder a um chefe de Estado estrangeiro (no caso, o Papa) a autonomia para ‘mandar’ naqueles que estão sob sua jurisdição, ainda que isso aconteça só no campo religioso.

É agora em setembro que Santa Sé e China decidirão se o acordo, que está em fase de experimentação (ad experimentum), se mantém ou não. Já imaginou se formos surpreendidos com o ‘combo’ da ampliação do acordo e um anúncio de uma viagem apostólica do Papa à China? Seria sonhar demais. Ou não, principalmente em tempos de Francisco...

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://domtotal.com/noticias/?id=1588649

quarta-feira, 14 de setembro de 2022

Um Deus às avessas

 Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

*Artigo de Fabrício Veliq,

teólogo protestante

 

‘Talvez uma das maiores radicalidades trazidas pela proposta cristã seja a definição de Deus que seguiu na contramão de tudo aquilo que se esperava dos deuses dentro do contexto judaico e romano. No lugar de um Deus belicoso, que vence por meio da força e da violência, que tem sua vontade cumprida independentemente dos meios que sejam necessários para isso, entra em cena um que é amoroso, manso e humilde, que aceita ser rejeitado, morto e feito como maldito.

Em outras palavras, podemos pensar numa espécie de um Deus às avessas, uma vez que tudo aquilo que era esperado dele foi transformado em seu contrário. No lugar de um Deus que deveria ser forte, ele se mostra no estereótipo da fraqueza, no lugar de um Deus que deveria ser guerreiro, ele se mostra como um pacificador, no lugar de um Deus que deveria reinar como um monarca soberano, ele se revela nascendo na periferia e andando junto com os pobres.

Para além de tudo isso, o autor da 1ª carta de João traz uma definição desse Deus às avessas como amor, ou seja, como alguém que está sempre buscando o bem do outro e que se importa efetivamente com as condições de existência daqueles e daquelas que se achegam a ele. Radicaliza ainda mais, ao dizer que a forma de se testemunhar a respeito do conhecimento que se tem desse Deus às avessas é na demonstração efetiva do amor para com os irmãos e irmãs da comunidade na qual se está inserido.

Em outras palavras, é na busca do bem efetivo e materializado que se manifesta o amor a esse ‘novo’ Deus apresentado. Dizer que o ama e não praticar esse amor para as pessoas que são próximas transforma quem o diz em mentiroso/a. Como consequência, o amor se torna o critério para baliza de qualquer relacionamento com esse Deus apresentado pela doutrina cristã.

Curiosamente, ao olharmos para nossos dias, tal radicalidade parece matizada, como algo que caiu no senso comum. Ouvir a frase ‘Jesus te ama’, para muitas pessoas não quer dizer muita coisa e, na verdade, em vários lugares já se virou mera abordagem proselitista para tentar convencer alguém a se converter ao movimento evangélico.

Esquecer tal radicalidade trazida por essa definição de Deus, por sua vez, também traz em seu bojo a ideia de que é possível ser cristão/ã sem amar ao próximo, preocupando-se somente consigo mesmo. As ideias de que vivemos em uma selva de pedra, de que é cada um por si e Deus por todos, de que o mundo é mau mesmo e, por isso, mostrar compaixão para com as pessoas é um convite a ser feito de idiota, são muito comuns na sociedade em que vivemos, até mesmo entre as pessoas que se dizem cristãs.

Para muitas pessoas, o relacionamento com Deus deixou de ser comunitário, passando a ser somente uma relação dois a dois, importando-se somente com o que é necessário fazer para ‘ser salvo’ ou ‘ir para o céu’. Em outras palavras, transformou-se a relação com Deus em uma transação comercial para se alcançar algum mundo pleno, esquecendo-se de que, na visão bíblica, a esperança é de que uma nova criação se fará presente neste mundo e não no além.

Recuperar a radicalidade da definição de um Deus às avessas, que é amor, mostra-se fundamental, caso o cristianismo queira ser imitação da vida de Jesus de Nazaré. Sem tal recuperação e tudo o que ela implica, só nos restará lembrar das histórias antigas, mitológicas e violentas escritas em um livro a que chamamos de Bíblia, tentando convencer as pessoas de que ali está algumas palavras de um deus como os outros deuses antigos.

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://domtotal.com/noticias/?id=1588434

segunda-feira, 12 de setembro de 2022

O processo sinodal cultiva um senso de espiritualidade e admiração

 Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 
O cardeal Mario Grech, secretário-geral do Sínodo dos Bispos, fala durante uma coletiva de imprensa para apresentar uma atualização sobre o processo sinodal no Vaticano em 26 de agosto. Também estão retratados o cardeal Jean-Claude Hollerich, de Luxemburgo, relator geral do sínodo, esquerda, e Dom Luis Marín de San Martín, subsecretário do Sínodo. (CNS/Paul Haring)

*Artigo de Michael Sean Winters,

jornalista e escritor

 Tradução : Ramón Lara


À medida que lemos os relatórios sobre o processo sinodal, como o fascinante olhar do meu colega Brian Fraga sobre os relatórios sinodais de organizações não diocesanas nos Estados Unidos, fica claro que a praticidade do caráter americano está brilhando. Os relatórios tendem a ir direto às questões : uma igreja mais inclusiva, maior envolvimento dos leigos na tomada de decisões, maiores oportunidades para mulheres em cargos de liderança, etc.

Dito isso, também está claro que o processo em si é atraente para as pessoas, e é quase impossível enfatizar muito isso. Se os participantes estiverem excessivamente focados em alcançar um resultado específico, o processo sinodal falhará. Fiquei animado ao ler no relatório de Fraga que os participantes sinodais dos alunos e funcionários da minha alma mater, a Universidade Católica da América, ‘viram a entender a sinodalidade como uma maneira de ser igreja no mundo de hoje’.

Hoje, gostaria de considerar dois aspectos deste processo sinodal ‘como um modo de ser igreja no mundo de hoje’ que justificam nosso foco ao estudarmos esses relatórios : a centralidade da espiritualidade no processo e sua relação com o Vaticano II.

‘Nosso Santo Padre convidou a Igreja a um processo de 'sinodalidade', uma maneira de ser uma Igreja que inclui todos os batizados em uma humilde busca para entender o que o Espírito está nos dizendo hoje’, escreveu o cardeal Joseph Tobin na divulgação da reunião sinodal. relatório da Arquidiocese de Newark. (CNS/Arquidiocese de Newark)

A primeira é que a parte mais importante do processo não são as conclusões a que os grupos chegam, mas a disposição com que começam. ’Em outubro de 2021, o Papa Francisco fez um convite a toda a Igreja para se reunir e ouvir o Espírito Santo em oração, partilha e discernimento em preparação para o Sínodo dos Bispos em outubro de 2023’, escreveu o cardeal Joseph Tobin ao divulgar o relatório sinodal da Arquidiocese de Newark. ’Enquanto um sínodo é uma reunião, nosso Santo Padre convidou a Igreja a um processo de 'sinodalidade', uma maneira de ser uma Igreja que inclui todos os batizados em uma humilde busca para entender o que o Espírito está nos dizendo hoje . o objetivo da sinodalidade é encontrar maneiras de conectar o Evangelho, as boas novas de Jesus Cristo, à vida cotidiana das pessoas.

A idéia de que ouvimos o Espírito Santo ouvindo uns aos outros é nova para a maioria dos americanos, mas sempre foi central para ‘uma maneira de ser igreja’. No Ato dos Apóstolos, capítulo 15, lemos sobre o Concílio de Jerusalém, o primeiro concílio na vida da igreja : ‘Então, estamos enviando Judas e Silas, que também transmitirão esta mesma mensagem de boca em boca : 'É decisão do Espírito Santo e de nós não colocar sobre você nenhum fardo além dessas necessidades.' ’

São Papa João XXIII referiu-se ao papel do Espírito Santo em seu magnífico discurso de 1962, Gaudet Mater Ecclesia , abrindo o Concílio Vaticano II : ‘Os santos do céu estão aqui para proteger nosso trabalho; os fiéis estão aqui para continuar a derramar suas orações a Deus; todos vós estais aqui para que, obedecendo prontamente às celestiais inspirações do Espírito Santo, vos ponhais a trabalhar avidamente para que vossos esforços respondam adequadamente aos desejos e necessidades dos diversos povos’.

Devemos ser cuidadosos quando pedimos a orientação do Espírito. O Espírito nos chamará a seguir a Cristo, o que significa sempre carregar nossas cruzes. A característica distintiva do ministério de Cristo nesta terra foi sua obediência radical à vontade de seu Pai. Espero que à medida que o processo sinodal se desenrolar, veremos a palavra ‘obediência’ com mais frequência nesses relatórios.

A relação do processo sinodal com o Vaticano II aumenta cada vez mais à medida que coletamos e comparamos os relatórios de todo o mundo. Eu gostaria de chamar a atenção para a homilia que o Papa Francisco fez na Missa com os novos cardeais no mês passado, porque ele tocou em um tema que eu não vi tocar tão claramente antes : maravilha.

Essa missa, uma missa votiva para a igreja, contou com leituras que convidaram a um foco na admiração : o hino que abre a Carta de São Paulo aos Efésios (1:3-14), que se maravilha com o plano de salvação de Deus, e a passagem do Evangelho de Mateus (28:16-20). em que o Senhor ressuscitado comissiona os Apóstolos.

‘No hino paulino, essa expressão - 'em Cristo' ou 'nele' - é o fundamento que sustenta cada etapa da história da salvação’, observou o Santo Padre. ’Em Cristo fomos abençoados antes mesmo que o mundo fosse criado; nele fomos chamados e redimidos; nele toda a criação é restaurada à unidade, e todos, próximos e distantes, primeiro e último, são destinados, pela operação do Espírito Santo. Espírito, para louvor da glória de Deus’.

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://www-ncronline-org.translate.goog/news/opinion/synodal-process-cultivates-sense-spirituality-and-wonder?_x_tr_sl=en&_x_tr_tl=pt&_x_tr_hl=pt-BR&_x_tr_pto=sc