Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)
‘São Bento de Núrsia é
habitualmente considerado o pai do monaquismo ocidental, mas ele não foi o
primeiro monge cristão. Esse título muitas vezes vai para Antão, o Grande. A
vida cristã monástica e eremítica nasceu no deserto egípcio pelo menos dois
séculos antes de Bento, por volta do ano 270. Enquanto Paulo de Tebas foi o
primeiro a se aventurar no deserto, foi Antão quem o transformou em movimento.
Aqueles que o seguiram logo formaram uma espécie de sociedade cristã – os
famosos Padres do Deserto. Foi um desses padres, São Pacômio, quem organizou as
primeiras comunidades monásticas cristãs sob a autoridade de uma figura
conhecida como ‘abade’ – palavra derivada do aramaico ‘abba’,
pai.
Isso significa que a famosa
Regra de São Bento não é a primeira regra monástica. No entanto, quando
comparada com as de São Basílio ou Pacômio, a sua é certamente mais ampla.
Organizada em 73 capítulos, é utilizada ininterruptamente pelos monges
beneditinos desde o século VI.
Regra
Uma das passagens mais famosas
da regra de Bento XVI é o capítulo 53. O texto é relativamente breve. Em
poucas linhas, resume o princípio da lendária hospitalidade beneditina. Lê-se
da seguinte forma :
Todos os hóspedes que chegarem
ao mosteiro sejam recebidos como o Cristo, pois Ele próprio irá dizer : ‘Fui
hóspede e me recebestes’.
As comunidades monásticas
consideram a hospitalidade como o cerne de sua missão e identidade,
especialmente se estiverem no deserto ou em outras áreas relativamente
isoladas, onde os mosteiros são frequentemente encontrados – os viajantes que
vagam por essas regiões particularmente remotas precisam de toda ajuda
possível.
A caridade cristã obrigaria os
monges a ajudar. Essa tradição ainda é preservada e honrada hoje. Entrevistamos
o responsável pela hospitalidade da Abadia Beneditina de Cristo no Deserto
(fundada em 1964 pelo Pe. Aelred
Wall), para discutir brevemente hospitalidade, contemplação e vida.
Lugar
Chega-se a esse mosteiro depois
de percorrer 5 km ao longo de uma estrada de terra e cascalho fora da Rota 84,
no noroeste do Novo México. O mosteiro, projetado pelo famoso George Nakashima,
é cercado por quilômetros de uma paisagem desértica protegida pelo governo,
garantindo assim a solidão e a tranquilidade da vida monástica. Começamos nossa
entrevista perguntando ao monge Crisóstomo sobre esta localização excepcional.
Thomas Merton disse
que o Mosteiro de Cristo no Deserto é o melhor edifício monástico dos EUA. É
impressionante como ele se encaixa na paisagem. Você pode dizer mais sobre por
que isso é importante para a comunidade monástica?
Os moradores da cidade tentam
permanecer conectados ao seu entorno por meio de construções, temas
arquitetônicos e cores. Também desejamos seguir esta tradição de nos
misturarmos com o nosso ambiente. Sentimos que ao fazê-lo não estamos apenas
contribuindo para sua preservação, mas estamos valorizando o respeito pela
natureza de que fala o Papa Francisco na Laudato Si’, sua segunda
encíclica. A estruturas [do mosteiro] parece ter sido esculpida nas paredes do
cânion.
A hospitalidade é um
valor bíblico paradigmático. Alguns escritores espirituais explicam que a
criação é o principal gesto hospitaleiro de Deus. Se não fosse por sua
hospitalidade, Abraão nunca teria tido Isaac. Inúmeras referências bíblicas à
hospitalidade (incluindo o nascimento de Jesus) deixam claro que esta é uma
preocupação central abraâmica. Sendo o responsável pela hospitalidade de um
mosteiro (no deserto, nada menos), como o senhor acha que a hospitalidade
poderia ser trazida para a vida cotidiana de todos?
Acredito na mesma coisa que
outros escritores espirituais mais instruídos expressaram sobre Deus : Ele é o
grande provedor de hospitalidade. A criação foi feita para a sua Igreja. Para
não teologizar demais como Deus é hospitaleiro com Sua criação, basta perceber
que Ele sabe o que faz. Nós, sua criação, por outro lado, podemos nos
beneficiar de lembretes sobre como participamos de Sua criatividade e Sua
hospitalidade. Sim, dar abrigo aos pobres, roupas aos nus, comida aos famintos
são aspectos importantes da hospitalidade. Jesus nos diz que quando fazemos
isso pelo menor de nossos irmãos, fazemos por Ele. No entanto, a hospitalidade
pode ser estendida às nossas atitudes abertas e amorosas para com as pessoas,
nossa falta de pré-julgamento e nossa disposição de ouvir os outros. Esses
também são atos de hospitalidade que não devemos ignorar.
A maioria das
pessoas pode ter uma ideia quase romântica do deserto, como se tudo fosse
silêncio e paz. Mas o nome do seu mosteiro (‘o Mosteiro de Cristo no Deserto’)
refere-se claramente ao fato de que o deserto é de fato o lugar onde se é
tentado. O senhor poderia compartilhar seus pensamentos sobre isso?
O deserto é de fato
romantizado. E, sim, Cristo foi compelido a ir ao deserto logo após ser
batizado. Lá ele foi tentado por Sua fome (ele jejuou por 40 dias) e Sua
mansidão (ele foi desafiado a provar a Si mesmo como Deus e foi oferecido
domínio sobre centros de poder). Pessoalmente, achei o deserto um lugar lindo e
implacável também. Lindos céus (dia e noite), o canyon, o rio, a flora e a
fauna contribuem para esta paisagem inesquecível. Também pode ser inóspito para
a vida às vezes. Pode ser perigoso. Pode ser muito frio e muito quente, às
vezes no mesmo dia! O deserto, para mim, é um lugar que pode te tirar, não sem
dor, da arrogância da autossuficiência. É também um lugar onde as distrações se
dissipam e a simplicidade da vida emerge : Onde está a água? Onde está a
comida? O que eu realmente preciso para sobreviver?
A vida contemporânea
está repleta de conversas aparentemente intermináveis – telefones celulares e laptops mantêm todos expostos incessantemente a praticamente tudo. Em um mundo
em que reina a informação, a contemplação e o silêncio parecem contraculturais,
até mesmo inúteis. O que pode nos dizer sobre isso?
Acredito que as distrações
daquilo que desejamos perseguir ou focar sempre estiveram conosco. Em nosso
mundo moderno, dependendo das escolhas do indivíduo, essas distrações aumentam
em múltiplos, talvez até exponencialmente! Recentemente, refleti sobre Nossa
Mãe Maria durante sua festa de 1º de janeiro. Ao longo das Escrituras, os
escritores dos Evangelhos a descrevem como guardando coisas e ponderando os
mistérios dessas coisas em seu coração : a Anunciação, água se transformando em
vinho nas bodas de Caná, a visita dos Magos. Maria deve ter guardado muitas
lembranças de seu filho notável, Jesus. Nós, como Maria, armazenamos memórias
de como Deus trabalhou em nossas vidas ao longo dos anos, as quais podem vir à
mente para nós no deserto. Podemos compor um florilegium (um
livreto) que ganha vida quando temos tempo para ficar quietos e sentar em
solidão e silêncio. Pode parecer inútil para alguns, mas eu digo, experimente!
Você nunca sabe que frutos inesperados podem vir de um corajoso passo de fé.’
Fonte : *Artigo
na íntegra
https://pt.aleteia.org/2022/01/21/entrevista-com-um-monge-o-deserto-pode-ser-um-lugar-implacavel/
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