sexta-feira, 28 de janeiro de 2022

Os doutores de Francisco

  Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 
*Artigo de Mirticeli Medeiros,

jornalista e mestre em História da Igreja, uma das poucas brasileiras

credenciadas como vaticanista junto à Sala de Imprensa da Santa Sé


Com a proclamação de São Irineu de Lyon (século II) como doutor da Igreja, o catolicismo passa a contar com 37 santos com esse título - sendo 8 mulheres e 29 homens. Uma escolha que não foi feita ao acaso, principalmente se pensarmos no que significa atribuir esse reconhecimento a um teólogo do cristianismo hoje.

Foi no século 13 que, em âmbito católico, começaram a surgir os doutores da Igreja, Os primeiros santos a receberem o título, mais precisamente em 1298, foram Gregório Magno, Ambrósio de Milão, Agostinho e Jerônimo. A segunda geração de doutores foi inaugurada por Tomás de Aquino, três séculos depois. Na ortodoxia, não é muito comum a adoção do termo ‘doutor’, mas Basílio Magno, São Gregório Nanzianzeno e João Crisóstomo são considerados os grandes ‘hierarcas da fé’. Já na Igreja Anglicana, preferem usar o termo ‘mestres da fé’.

Segundo os critérios oficiais, que só foram definidos sistematicamente no século 18, durante o pontificado de Bento XIV, se torna um doutor da Igreja aquele que, durante sua trajetória, tenha se destacado no ensinamento e na santidade de vida. Ou seja, não se dissocia a reflexão teológica do testemunho. Além disso, também foi definido, a partir daquela época, que tanto o Papa quanto o concílio têm autoridade para fazer esse tipo de proclamação.

As duas nomeações de Francisco, na verdade, são a expressão máxima de um dos pilares do seu pontificado : o ecumenismo. Foram ‘nomeações ecumênicas’ e em vista do ecumenismo.

Em 2015, o Santo Padre reconheceu Gregório de Narek (século 10) como doutor da Igreja, um santo venerado tanto por católicos quanto pela Igreja Apostólica Armênia, uma das comunidades cristãs mais antigas da história do cristianismo. A instituição integra a lista das igrejas pré-calcedonianas, ou seja, que não reconhecem alguns dos cânones produzidos pelo Concílio de Calcedônia (451 d.C), principalmente o relacionado às duas naturezas de Cristo numa única pessoa, doutrina seguida tanto por Roma quanto por Constantinopla.

Aliás, a Armênia foi o primeiro país do mundo a adotar o cristianismo como religião oficial, no século IV, após a conversão do seu soberano, Tiradate III.

A proclamação de Narek é importante não simplesmente por evocar essa necessidade de aproximação entre os cristãos do Ocidente e do Oriente, mas por reforçar um posicionamento da Santa Sé frente aos dramas vividos pelo próprio país. Narek, além de santo, é um símbolo nacional e um dos mais importantes poetas da história da literatura armênia. E o pontífice, não por acaso, o reconheceu como modelo de fé no ano do centenário do genocídio armênio, em 2015.

Repetindo o que fez seu antecessor, João Paulo II, Francisco condenou uma das maiores tragédias da história, impetrada pelo então Império Otomano, atual Turquia, que continua a negar que tenha existido, de fato, um genocídio. Prefere, em vez disso, defender que houve, na verdade, um ‘deslocamento de pessoas’, interpretação refutada por quase toda a comunidade internacional.

São Irineu de Lyon, portanto, é mais uma ‘aposta ecumênica’ de Francisco. O santo foi o primeiro teólogo a elaborar uma síntese global do cristianismo e embora fosse um ferrenho combatente das heresias de sua época, era reconhecido pela sua forte capacidade de diálogo. Não à toa, ele é venerado por todas as igrejas que praticam o culto aos santos. O grupo acadêmico de diálogo ortodoxo-católico, que já produziu várias obras conjuntas sobre a teologia e a história das duas tradições, foi batizado com o nome do santo. E Irineu não é qualquer doutor, mas um doctor unitatis, segundo definição do próprio Papa Francisco.

O sínodo sobre a sinodalidade, que está em curso, poderá trazer outras surpresas sobre essas nomeações. Lembrando que figuras como Dom Bosco e Oscar Romero integram a lista de ‘doutoráveis’. Entre as mulheres estão Margarida Alacoque e Faustina Kowalska, cuja trajetória também é avaliada pela Santa Sé. E então, será que teremos um ‘doutor sinodal’? É o que veremos.’

 

Fonte  *Artigo na íntegra

https://domtotal.com/noticia/1562072/2022/01/os-doutores-de-francisco/

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