Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)
jornalista e mestre em História da Igreja, uma das
poucas brasileiras
credenciadas como vaticanista junto à Sala de Imprensa
da Santa Sé
‘Com a proclamação de São Irineu de Lyon
(século II) como doutor da Igreja, o catolicismo passa a contar com 37 santos
com esse título - sendo 8 mulheres e 29 homens. Uma escolha que não foi feita
ao acaso, principalmente se pensarmos no que significa atribuir esse
reconhecimento a um teólogo do cristianismo hoje.
Foi no século 13 que, em âmbito católico,
começaram a surgir os doutores da Igreja, Os primeiros santos a receberem o
título, mais precisamente em 1298, foram Gregório Magno, Ambrósio de Milão,
Agostinho e Jerônimo. A segunda geração de doutores foi inaugurada por Tomás de
Aquino, três séculos depois. Na ortodoxia, não é muito comum a adoção do termo
‘doutor’, mas Basílio Magno, São Gregório Nanzianzeno e João Crisóstomo
são considerados os grandes ‘hierarcas da fé’. Já na Igreja Anglicana,
preferem usar o termo ‘mestres da fé’.
Segundo os critérios oficiais, que só foram
definidos sistematicamente no século 18, durante o pontificado de Bento XIV, se
torna um doutor da Igreja aquele que, durante sua trajetória, tenha se
destacado no ensinamento e na santidade de vida. Ou seja, não se dissocia a
reflexão teológica do testemunho. Além disso, também foi definido, a partir
daquela época, que tanto o Papa quanto o concílio têm autoridade para fazer
esse tipo de proclamação.
As duas nomeações de Francisco, na
verdade, são a expressão máxima de um dos pilares do seu pontificado : o
ecumenismo. Foram ‘nomeações ecumênicas’ e em vista do ecumenismo.
Em 2015, o Santo Padre reconheceu Gregório
de Narek (século 10) como doutor da Igreja, um santo venerado tanto por
católicos quanto pela Igreja Apostólica Armênia, uma das comunidades cristãs
mais antigas da história do cristianismo. A instituição integra a lista das
igrejas pré-calcedonianas, ou seja, que não reconhecem alguns dos cânones
produzidos pelo Concílio de Calcedônia (451 d.C), principalmente o relacionado
às duas naturezas de Cristo numa única pessoa, doutrina seguida tanto por Roma
quanto por Constantinopla.
Aliás, a Armênia foi o primeiro país do
mundo a adotar o cristianismo como religião oficial, no século IV, após a
conversão do seu soberano, Tiradate III.
A proclamação de Narek é importante não
simplesmente por evocar essa necessidade de aproximação entre os cristãos do
Ocidente e do Oriente, mas por reforçar um posicionamento da Santa Sé frente
aos dramas vividos pelo próprio país. Narek, além de santo, é um símbolo nacional
e um dos mais importantes poetas da história da literatura armênia. E o
pontífice, não por acaso, o reconheceu como modelo de fé no ano do centenário
do genocídio armênio, em 2015.
Repetindo o que fez seu antecessor, João
Paulo II, Francisco condenou uma das maiores tragédias da história, impetrada
pelo então Império Otomano, atual Turquia, que continua a negar que tenha
existido, de fato, um genocídio. Prefere, em vez disso, defender que houve, na
verdade, um ‘deslocamento de pessoas’, interpretação refutada por quase
toda a comunidade internacional.
São Irineu de Lyon, portanto, é mais uma ‘aposta
ecumênica’ de Francisco. O santo foi o primeiro teólogo a elaborar uma
síntese global do cristianismo e embora fosse um ferrenho combatente das
heresias de sua época, era reconhecido pela sua forte capacidade de diálogo.
Não à toa, ele é venerado por todas as igrejas que praticam o culto aos santos.
O grupo acadêmico de diálogo ortodoxo-católico, que já produziu várias obras
conjuntas sobre a teologia e a história das duas tradições, foi batizado com o
nome do santo. E Irineu não é qualquer doutor, mas um doctor unitatis,
segundo definição do próprio Papa Francisco.
O sínodo sobre a sinodalidade, que está em
curso, poderá trazer outras surpresas sobre essas nomeações. Lembrando que
figuras como Dom Bosco e Oscar Romero integram a lista de ‘doutoráveis’.
Entre as mulheres estão Margarida Alacoque e Faustina Kowalska, cuja trajetória
também é avaliada pela Santa Sé. E então, será que teremos um ‘doutor
sinodal’? É o que veremos.’
Fonte : *Artigo na íntegra
https://domtotal.com/noticia/1562072/2022/01/os-doutores-de-francisco/
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