sexta-feira, 28 de fevereiro de 2020

Na conversa...


 Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

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*Artigo do Padre Fernando Domingues,
Missionário Comboniano


‘«Isso é conversa!», exclamamos nós às vezes, para desqualificar alguma coisa que alguém nos está a dizer.

Ora aqueles dois discípulos que ainda não sabiam da ressurreição de Jesus e caminhavam desiludidos e tristes em direção a Emaús nunca imaginaram que a conversa que iam fazendo iria ter tanto valor. Hoje, cerca de dois mil anos mais tarde, o que eles lá disseram e o que descobriram durante aquela conversa continua a ser motivo de reflexão e de alegria para muitos milhões de pessoas, todos os cristãos!

De fato, foi durante aquela conversa que um certo forasteiro desconhecido se aproximou deles e, entrando na conversa que faziam, começou a «aquecer-lhes o coração». Não conseguiam ainda reconhecer que era Jesus ressuscitado quem caminhava com eles, mas já sentiam o primeiro efeito da sua presença : o «coração aquecido».

Vale então a pena olhar mais de perto para essa conversa que se tornou ocasião para Jesus se dar a conhecer, caminhando com aqueles dois que tinham sido seus discípulos.

Caminhavam juntos. Juntos por conveniência para se defenderem mutuamente se aparecessem salteadores pelo caminho? Juntos por acaso? Talvez se tivessem encontrado a sair de Jerusalém à mesma hora da manhã... Juntos talvez pela dor comum : a morte do Mestre Jesus ainda doía muito, o melhor era partilhar a dor. Ou talvez juntos porque no segredo do coração de cada um deles ainda havia uma brasita de esperança que teimava em ficar acesa : quem sabe se Deus não podia ainda arranjar maneira de transformar aquela triste morte de Jesus em alguma coisa de positivo. Afinal ele tinha dito que «quem perde a sua vida pelo reino de Deus há-de encontrá-la»!

Seja como for, caminhavam juntos e puseram-se a falar. Contavam um ao outro como tinham vivido aqueles últimos dias : o momento extraordinário da Última Ceia com Jesus e o que lhes tinha dito, como lhes tinha lavado os pés, e depois a cadeia incrível de coisas que aconteceram, desde o jardim das oliveiras até ao calvário.

Partilhando o que tinham vivido, foram-se escutando um ao outro, e no diálogo feito com o coração aberto há sempre lugar para mais um. A conversa dos dois tornou-se conversa a três. Jesus entrou na conversa. Não o reconheciam, mas já sentiam algo de novo naquela conversa : «Não nos ardia cá dentro o coração, quando ele falava conosco?»

Quantas vezes experimentei o mesmo nas reuniões das pequenas comunidades cristãs no Quenia! Muitas pequenas comunidades – entre 15 e 30 pessoas – não tinham um espaço próprio onde se encontrar. Fazíamos a reunião na rua, à frente da casa de uma das famílias, enquanto as pessoas iam passando com ar cansado, regressando a casa depois de um dia de trabalho. Às vezes surpreendia em quem passava um olhar curioso, quase invejoso : «Ao menos estes, ao fim do dia, têm com quem falar, sabem escutar...» E naquela hora de partilha, nós líamos um texto do Evangelho, partilha, diálogo, orações, organização da vida da comunidade. E o mesmo «forasteiro do caminho de Emaús» fazia-nos sentir a sua presença. Partíamos do encontro da comunidade com «o coração quente», certos de que Ele tinha estado conosco e nós tínhamos escutado a sua voz. A reunião terminava sempre com um «regressemos a casa em paz e que Ele nos acompanhe!».

Há conversas que valem pouco ou nada, mas há maneiras de conversar que abrem o coração à presença de Jesus que quer caminhar conosco.’


Fonte :

quarta-feira, 26 de fevereiro de 2020

Uma reflexão para a Quaresma: o que é, afinal de contas, o pecado?


 Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 
*Artigo de Aleteia Brasil


‘Estamos na Quaresma. Embora o cuidado da vida de graça seja crucial em cada instante da vida, a Quaresma é um período litúrgico particularmente oportuno para revisarmos com mais profundidade a nossa vida de graça e de união com Cristo.

Para isto, é preciso revisar a nossa relação com o pecado.

Comecemos com a reflexão mais óbvia – e, por isso mesmo, tantas vezes descuidada : o que é o pecado?

O conceito de pecado é bastante simples : basicamente, o pecado é um ato de egoísmo exagerado. Pecado é preferir a si mesmo e antepor-se a Deus e aos outros, cedendo às paixões desordenadas que nos colocam no centro da nossa própria existência e negando a nossa natureza que só se completa quando se abre plenamente ao próximo e a Deus.

O pecado é a recusa a instaurar com Deus e com os outros uma relação de amor.

O pecado é um ‘converter-se às criaturas’ e ‘rejeitar o Criador’.

Em geral, o pecador só deseja os prazeres proporcionados pelas criaturas; ele não necessariamente quer rejeitar o Criador. No entanto, ao se deixar seduzir por satisfações fugazes proporcionadas pelas criaturas, o pecador sabe, implicitamente, que está agindo contra o amor do Criador : ele sente que o prazer terreno não o preenche, mas, mesmo assim, não resiste a ele. É por isso que o pecado fere o próprio pecador, afastando-o da plenitude oferecida por Deus.

E é por isso que o pecado ofende a Deus: não porque Deus, como tal, seja diminuído, mas porque nós próprios, ao pecar, nos diminuímos diante da grandeza que Ele nos oferece.

Para Jesus, o pecado nasce no interior do homem (cf. Mt 15, 10-20). É por isso que é necessária a transformação interior, do coração. Para Jesus, o pecado é uma escravidão : o homem se deixa ficar em poder do maligno, valorizando falsamente as coisas deste mundo, deixando-se arrastar pelo imediato, por satisfações sensíveis que não saciam a nossa sede de amor e de plenitude.’


Fonte :

terça-feira, 25 de fevereiro de 2020

A solidão da Quaresma

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

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*Artigo do Padre Robert McTeigue, SJ


‘De todas as dores que Jesus sofreu em sua paixão, qual lhe doeu mais? Eu suspeito que foi a dor no seu coração e na sua alma. Há limites para a dor física. Pode-se desmaiar e assim distanciar-se um pouco da dor. Mas a dor psíquica (isto é, dor de coração e alma) pode ser sem socorro e imensurável. Pode demorar, e a raiva, permanecer por muito tempo após o doloroso acontecimento. A dor psíquica pode infiltrar-se na profundidade da alma e encontrar lugares ocultos para atormentar, alimentar-se e crescer. A dor do coração e da alma pode fazer nascer o isolamento e o desespero.

Revendo os relatos bíblicos da noite de Quinta-feira Santa até Sexta-feira Santa, vejo que a dor psíquica que causou maior sofrimento em Jesus foi a solidão. Em Mateus 26, vemos que seus amigos mais próximos, após prometerem que permaneceriam fiéis até a morte, não ficaram acordados com ele no jardim das Oliveiras, apesar de Jesus ter suplicado várias vezes. Judas o traiu com um beijo, e os outros apóstolos fugiram quando as autoridades chegaram. Certamente Jesus sofreu terrível solidão, permanentemente abandonado por seus amigos e rodeado por aqueles que o odiavam.

Após sua prisão, Jesus se apresentou sem advogado, nenhum aliado, nem mesmo um amigo para assumir a sua causa perante o Sinédrio (a mais alta Corte de Justiça na antiga Jerusalém). Mais uma vez, Jesus está sozinho, separado de qualquer um que possa ter reivindicado a amá-lo. Certamente o coração de Jesus, o coração do amor perfeito, sofreu terrível solidão naquele momento.

Em Lucas 22, lemos que Jesus olhou para Pedro justamente na hora em que Pedro o negou, mesmo Jesus sabendo que ele faria isso – assim como Jesus havia previsto. Certamente não era nenhum consolo para Jesus, apenas que ele estava certo sobre a negação de Pedro.

Em João 19, lemos que Jesus lamenta na cruz, ‘tenho sede’. Não é difícil imaginar que sua sede não seja somente de água, mas de amor, de compaixão e de almas.

Mais pungente de tudo, talvez, encontra-se quando lemos em Marcos 15 Jesus clamando na cruz, seu coração trespassado pela dor do abandono, uma dor tão grande que ele se sente abandonado até mesmo por Deus. Certamente uma dor que não é exclusivamente uma dor física, mas uma dor verdadeira e penetrante de coração e alma.

Por que eu menciono tudo isso? Eu poderia partir das palavras acima e fazer um pedido urgente a caminhar com Jesus nesta Quaresma em sua solidão, sua sede de amor e almas, como rezamos nas estações da cruz ou diante do Santíssimo Sacramento. Tais práticas são sempre louváveis, especialmente durante a Quaresma, mas eu falo da solidão de Jesus com um objetivo diferente.

Sabemos que Jesus sofredor pode ser encontrado em nosso vizinho (Mt. 25, 40). Os santos sempre nos pediram para executar as obras corporais e espirituais de misericórdia para com o próximo por amor a Cristo sofredor. Tais obras são sempre importantes – especialmente durante a Quaresma.

Minha preocupação aqui é alertar para o fato doloroso que facilmente negligenciamos o vizinho mais próximo no qual podemos encontrar Jesus, e que é nós mesmos. A solidão que é inevitável neste mundo caído aflige Jesus em seu coração e alma quando ele habita em nós.

Cada um de nós sente a ferida da solidão de vez em quando; alguns sofrem de solidão por uma temporada; e parece que algumas pobres almas são afligidas pela solidão como uma ferida que se recusa a curar. O que uma agraciada e frutuosa Quaresma seria se vivêssemos a liberdade e generosidade necessárias para encontrar e amar Jesus compassivamente sofrendo dentro de nós, como nós passamos por nossa própria paixão da solidão.

Por que estamos sós? Porque nós somos incompletos – feitos para amizade, amor e plenitude. Mesmo a nossa melhor forma humana seria solitária, pois há um buraco na forma de Deus em nossos corações que não pode ser preenchido nesta vida.

Estamos sós porque a nossa cultura está doente, ensina-nos a amar as coisas e usar as pessoas, nos tornando ídolos de criaturas e objetos na esperança de seduzir nossa solidão. Nossa cultura nos exorta a ser canibais sexuais, alimentando-se de carne humana, enquanto nega-se à alma humana que tem sido feita divinamente para o verdadeiro amor.

Estamos sós porque podemos ter afastado o amor ou bloqueado fora de nós o amor. E nós podemos ser solitários apenas por circunstâncias – vivendo em separação ou alienação, não por nossa escolha.
  
E dentro dessa vida solitária que todos nós enfrentamos, podemos encontrar o Jesus compassivo, o Homem das Dores, esperando por nós. A Quaresma é um tempo privilegiado para promover a liberdade e bondade necessárias para ir ao encontro de Jesus, que se partiu para atender às nossas necessidades. Vamos olhar para Ele e ter com Ele, começando com a dor da solidão dos nossos próprios corações. Vamos agradecer-Lhe por enfrentar sem reservas ou lamentar as nossas necessidades, dores e incompletudes. Através da nossa oração podemos lembrá-Lo que Ele não está sozinho em nós; ao fazer isso, podemos enxergar que nós também não estamos sozinhos. Tal graça surpreendente pode se tornar uma fonte de resistência e esperança, para que fiquemos com Jesus em seu sofrimento, para que possamos regozijar com Ele em sua vitória.’


Fonte :

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2020

Por que a Quaresma?

 Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 
*Artigo do Prof. Felipe Aquino

‘Desde os primórdios do Cristianismo a Quaresma marcou para os cristãos um tempo de graça, oração, penitência e jejum, afim de obter a conversão. Ela nos faz lembrar as palavras do Mestre divino : ‘Se não fizerdes penitência, todos perecereis’ (Lc 13,3).

Esses quarenta dias que precedem a Semana Santa, são colocados pela Igreja para que cada um de nós se prepare para a maior de todas as Solenidades litúrgicas do ano, a Páscoa, a grande celebração da Ressurreição de Jesus, a vitória Dele e nossa sobre o Mal, sobre o pecado, sobre a morte e sobre o inferno.  

A celebração litúrgica não é mera lembrança do passado, algo que aconteceu com Jesus e passou, não. Jesus está presente na Liturgia. O Catecismo diz que : ‘Pela liturgia, Cristo, nosso redentor e sumo sacerdote, continua em sua Igreja, com ela e por ela, a obra de nossa redenção.’ (§1069). Isto é, pela Liturgia da Igreja Ele continua a nos salvar, especialmente pelos Sacramentos, e faz tornar presente a nossa redenção.

Mas, para que o cristão possa se beneficiar dessa celebração precisa estar preparado, com a alma purificada e o coração sedento de Deus. A Igreja recomenda sobretudo que vivamos aquilo que ela chama de ‘remédios contra o pecado’ (jejum, esmola e oração), que Jesus recomendou no Sermão da Montanha (Mt 6, 1-8) e que a Igreja nos coloca diante dos olhos logo na Quarta-feira de Cinzas, na abertura da Quaresma.

A meta da Quaresma é a expiação dos pecados; pois eles são a lepra da alma. Não existe nada pior do que o pecado para o homem, a Igreja e o mundo.

Todos os exercícios de piedade e de mortificação têm com objetivo de livrar-nos do pecado. O jejum fortalece o espírito e a vontade para que as paixões desordenadas, especialmente aquelas que se referem ao corpo (gula, luxúria, preguiça), não dominem a nossa vida e a nossa conduta. A esmola socorre o pobre necessitado e produz em nós o desapego e o despojamento dos bens terrenos; isto nos ajuda a vencer a ganância e o apego ao dinheiro. A oração fortalece a alma no combate contra o pecado. Jesus recomendou na noite de sua agonia : ‘Vigiai e orai, o espírito é forte mas a carne é fraca’. A Palavra de Deus nos ensina : ‘É boa a oração acompanhada do jejum e dar esmola vale mais do que juntar tesouros de ouro, porque a esmola livra da morte, e é a que apaga os pecados, e faz encontrar a misericórdia e a vida eterna’ (Tb 12, 8-9).

A água apaga o fogo ardente, e a esmola resiste aos pecados’(Eclo 3,33). ‘Encerra a esmola no seio do pobre, e ela rogará por ti para te livrar de todo o mal’ ( Eclo 29,15).

Jesus ensinou : ‘É necessário orar sempre sem jamais deixar de fazê-lo’ (Lc 18,1b); ‘Vigiai e orai para que não entreis em tentação’ (Mt 26,41a); ‘Pedi a se vos dará’ (Mt 7,7) . E São Paulo recomendou : ‘Orai sem cessar’ (I Ts 5,17).

Quaresma é pois tempo de rompimento total com o pecado. Alguns pensam que não têm pecado, se julgam irrepreensíveis, como aquele fariseu da parábola que desprezava o pobre publicano (Lc 18,10 ss); mas na verdade, muitas vezes não percebem os próprios pecados por causa de uma consciência mal formada que acaba encobrindo-os. Para não cairmos neste erro temos de comparar a nossa vida com aqueles que foram os modelos de santidade : Cristo e os Santos.’


Fonte :

domingo, 23 de fevereiro de 2020

Jejum: de que adianta não comer carne, se você devora seu irmão?

 Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 
*Artigo de Corazones.org


‘São João Crisóstomo ensina :

‘A honra do jejum consiste não na abstinência da comida, mas em evitar as ações pecaminosas; quem limita o seu jejum apenas à abstinência de carnes o desonra. Praticas o jejum? Prova-me por tuas obras! Perguntas que tipo de obras?

Se vires um inimigo, reconcilia-te com ele!
Se vires um amigo tendo sucesso, não o inveje!
Se vires uma mulher bonita, passe sem olhar!
Que não apenas a boca jejue, mas também os olhos, e os ouvidos, e os pés, e as mãos, e todos os membros de nossos corpos.
Que as mãos jejuem sendo puras da avareza e da rapina.
Que os pés jejuem, deixando de caminhar para espetáculos imorais.
Que os olhos jejuem, não se detendo sobre feições belas, ou se ocupando de belezas exóticas.

Pois o que é visto é a comida dos olhos, mas se o que for visto for imoral ou proibido, macula-se o jejum e perturba toda a segurança da alma se for moral e seguro, o que é visto adorna o jejum. Pois seria absurdo abster-se da comida permitida por causa do jejum, mas devem os olhos absterem-se até de tocar o que é proibido. Não comes carne? Então não se alimente de luxúria através dos olhos.

Que também os ouvidos jejuem. O jejum dos ouvidos consiste em recusar-se a ouvir assuntos perversos e calúnias. ‘Não receberás notícias falsas’, já foi dito.

Que a boca também jejue de falar coisas vergonhosas e de ficar reclamando. Pois que ganhas se te absténs de pássaros e peixes, e mesmo assim mordes e devoras teu próximo? O que tem fala maligna come a carne de seu irmão, e morde o corpo de seu próximo.’

O que São João Crisóstomo nos diz com esta reflexão?

Que os dias de jejum devem ser especialmente dias para evitarmos o uso desordenado ou inclusive exagerado dos outros sentidos : evitar o que não devo fazer, falar, ouvir, desejar; não buscar satisfazer todas as minhas necessidades emocionais e espirituais; não buscar a todo custo saciar minha solidão; não querer saber tudo; não exigir respostas imediatas a tudo o que vier à minha mente etc.

Nós jejuamos buscando a conversão. Portanto, jejuemos de todas estas atitudes contrárias à virtude. Talvez o seu jejum consista em ser mais serviçal (jejum da sua preguiça e comodidade), pois, assim como precisamos rezar com o coração, também precisamos jejuar com o coração.

Talvez você tenha de jejuar da sua ira, sendo mais amável, mais dócil. Ou jejuar da sua soberba, buscando ativamente viver a humildade em atos concretos.’


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sábado, 22 de fevereiro de 2020

A recepção da comunhão ao longo dos séculos

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

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*Artigo do Padre Dr. José Eduardo


A comunhão nunca foi tão acessível… e tão banalizada

‘Até o século XIX, os critérios para comungar eram doutrinalmente tão exigentes que, na prática, poucas pessoas comungavam.

Considerava-se que, para além de uma preparação que eu chamaria de negativa — o fiel não deveria ter consciência de nenhum pecado grave –, era necessária uma cuidadosa preparação positiva : jejum eucarístico desde a meia noite, asseio e modéstia pessoais muito mais salientados que o normal, oração fervorosa com a repetição de inúmeros atos de fé, esperança, adoração, humildade, caridade etc. No dia-a-dia, as pessoas comungavam raramente, somente depois de se confessarem e fora da Santa Missa.

Essa prática era tão consagrada, que Santa Teresa foi considerada suspeita de heresia porque desejava comungar todos os domingos.

A propósito, o Concílio de Trento deixou muito clara a distinção entre o rito da Santa Missa (com a comunhão do sacerdote) e o rito da Santa Comunhão dos fiéis, para salvar a Igreja do erro protestante de se considerar a Missa como somente uma Ceia e, portanto, a Comunhão como o momento essencial da ação litúrgica (e não a consagração).

Os santos sempre sofreram com essa dificuldade em receber o Santíssimo Sacramento, a tal ponto que a própria Santa Teresinha do Menino Jesus chegou a dizer que, quando chegasse ao céu, a primeira coisa que pediria a Deus seria a ‘comunhão diária’ para toda a Igreja.

De fato, ela morreu em 1897 e, em 1903, foi eleito o grande São Pio X, que, em 1905, escreveu o Decreto ‘Sacra Tridentina Synodos’, oferecendo a todos os fiéis a possibilidade de comungarem diariamente.

Isso foi uma grande graça! Um tremendo prodígio!

Contudo, a recepção diária não servia para afrouxar as exigências de uma preparação negativa e positiva para comungar. Antes, era instrumento para difusão de maior santidade na Igreja.

Aconteceu, porém, que, com o passar do tempo, a disciplina se foi afrouxando e, de uma condição em que o fiel se sentia ‘PROIBIDO DE COMUNGAR’, passou-se a uma condição em que os fiéis passaram a se sentir no ‘DIREITO DE COMUNGAR’ : bastaria não ter um pecado grave na consciência que já se sentiriam aptos para aceder ao ‘sacrum convivium’, sem maiores exigências.

Foi uma mudança de 180 graus, já foi uma queda!, mas ainda num quadro em que as pessoas se viam obrigadas a confessar, caso houvesse consciência de pecado mortal.

A situação foi se alterando, porém.

E, há algumas décadas, chegamos ao estado em que os fieis se sentem no ‘DEVER DE COMUNGAR’, como se a não recepção da comunhão fosse em si mesma um pecado. Esse dever, aliás, não é imputado apenas ao leigo, mas também à Igreja : parece que a única forma de inclusão é dar a comunhão, e ninguém possa ser privado desse sacramento, inclusive pelo próprio bem de sua alma. Não só o fiel teria o dever de comungar, mas o padre teria o dever de dar a comunhão a quem quer que seja!

Hoje, as pessoas se confessam de terem ido à Missa e não terem comungado; ou de não terem ido à Missa por não poderem comungar; ou de terem comungado em pecado grave com a intenção de depois se confessarem, porque se sentiam no dever de fazê-lo ou tinham ‘necessidade’… QUANTA CONFUSÃO DOUTRINAL E QUANTO SACRILÉGIO!

A doutrina da Igreja é clara, e não preciso aqui explicá-la. Para comungar, é preciso ter a consciência livre de qualquer pecado grave e estar fervorosamente em pelo menos uma hora de jejum e oração, aguardando a chegada do Senhor na alma!

Na práxis pastoral hodierna, não é que mudamos 180 graus, isso já é coisa do passado! Conseguimos a ‘proeza’ de ainda dar uma cambalhota para outros 180 graus, e parece-me que perdemos o caminho de volta.

Viva a Sagrada Comunhão diária!, mas recebida com as devidas disposições, com aquele espírito sintetizado pelo Apóstolo das Gentes : ‘aquele que comunga sem distinguir o corpo do Senhor, comunga a sua própria condenação. Esta é a razão por que entre vós há muitos adoentados e fracos, e muitos mortos’ (1Cor 11,29-30).

Não seria essa banalidade com que tratamos a Sacratíssima Eucaristia a razão de tanta falta de firmeza na fé, de tanta apostasia, de tanta irreligião, de tanto abandono de Deus e de sua Lei?…’


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sexta-feira, 21 de fevereiro de 2020

Vaticano tira 'véu' sobre o arquivo de Pio XII

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 Papa Pio XII conduziu a Igreja Católica entre os anos 1939 e 1958
Papa Pio XII conduziu a Igreja Católica entre os anos 1939 e 1958

*Artigo de Mirticeli Dias de Medeiros,
jornalista e mestre em História da Igreja, uma das poucas brasileiras
credenciadas como vaticanista junto à Sala de Imprensa da Santa Sé


‘O papa Pio XII volta para o centro das atenções. Desta vez, sem as especulações que caracterizaram o seu pontificado até agora. Para alguns, um pontífice que foi difamado. Para outros, um líder religioso que se omitiu diante das atrocidades de Adolf Hitler. Pio XII e seu famoso silêncio. Por que ele não disse nada? E se ele tivesse dito, quais consequências isso acarretaria? Se quisermos ser honestos o suficiente, os dois questionamentos são válidos. Sobretudo em um período no qual até as perguntas são condicionadas pelas ideologias.

Um papado que não é observado levando em conta o contexto, certamente ficará à mercê de interpretações apaixonadas, como acontece hoje. Uma prova disso são as várias instrumentalizações relativas aos decretos de Pio XII contra o comunismo feitas atualmente. Para quem tem o mínimo de bom senso, sabe que a condenação à esquerda, em se tratando de espectro político, e pensando na conjuntura atual, jamais foi feita.

O problema está em interpretar um documento com o olhar do presente. E em se tratando de catolicismo, isso é extremamente perigoso. É como pegar a bula Unam Sanctam, de Bonifácio VIII, e aplicá-la no presente. Analisar um sumo pontífice, quer dizer adentrar na sua trajetória e na de seus antecessores e sucessores, justamente porque o papado denota essa hermenêutica da continuidade. Se quebramos esse ciclo, faremos as análises mais surreais possíveis.

Não podemos nos esquecer que, à época, o ateísmo comunista e as várias outras atrocidades cometidas pelo regime colocaram a Santa Sé em estado de alerta. Pio XI - que anos antes havia condenado o fascismo, foi muito mais brando, justamente porque Benito Mussolini permitiu uma série de concessões à Igreja Católica e autorizou que ela exercesse, quase que livremente, a sua pastoral.

Além disso, os papas que sucederam Pacelli, atualizando essa condenação ‘aos vermelhos’, souberam exprimir essa diferença. João XXIII que o diga. Ao falar da ‘liberdade de associação’, na sua encíclica Pacem in terris, era consciente que, numa democracia - a qual se reerguia a duras penas no período em que ele viveu -, os dois pólos são importantes.

Pio XII foi declarado servo de Deus por Bento XVI em 2009. O reconhecimento causou indignação entre os judeus. À altura, os jesuítas começavam a desempoeirar os 20 mil documentos relativos ao pontificado de Eugenio Pacelli, nome de batismo do papa de origem romana. Na época, os pesquisadores tinham a esperança de que todo o acervo de atas, cartas e escritos pessoais desse papa finalmente seriam colocados à disposição dos estudiosos.

Portanto, há muito tempo se preparam para essa abertura, que se concretizará com a autorização de Francisco no próximo dia 2 de março. Para a Santa Sé, um modo de mostrar o trabalho feito por Pio XII em prol dos judeus que, de acordo com relatos da própria comunidade judaica, abrigou muitos daqueles que escapavam das tropas nazistas nos palácios vaticanos.’


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quinta-feira, 20 de fevereiro de 2020

Com diálogo, tudo é possível

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

Azdyne Amimour à esquerda, Georges Salines à direita 
Azdyne Amimour à esquerda, Georges Salines à direita 

*Artigo de Jean Charles Putzolu,
jornalista
  
‘Georges Salines é medico. Azdyne Amimour é comerciante. Ambos tiveram uma vida movimentada. Georges trabalhou em vários países e até se estabelecer em Paris com sua família. Azdyne é um incansável aventureiro. Fixou moradia nos arredores de Paris depois de ter viajado pelo mundo. Georges considera-se ateu ‘de raízes cristãs’. Azdyne é muçulmano, praticante, mas não muito, porém é profundamente ligado aos valores do Islã.

Apresentados deste modo, estes dois homens poderiam nunca ter se encontrado. Todavia, os acontecimentos de 13 de novembro de 2015 mudaram seus destinos.

Lola, a filha de Georges, estava na famosa sala de espetáculos ‘Bataclan’ de Paris para assistir ao show do grupo rock americano ‘Eagles of Death Metal’. Lola, tinha 28 anos e trabalhava no campo editorial para crianças. Chegou até mesmo a criar sua microempresa. Era feliz, embora passasse a maior parte do seu tempo no trabalho, mas também viajava muito. Viajar faz parte do DNA de sua família. As viagens satisfazem a sua sede de conhecimentos, de fuga e de natureza. Naquela noite, Lola não resistiu. Alvejada por dois tiros, morreu instantaneamente.

A entrada do Bataclan 
A entrada do Bataclan

Azdyne não tinha mais contato com seu filho. Nos últimos anos suas relações eram tensas e na noite de 13 de novembro de 2015 não tinha a menor ideia de onde estaria Samy. Azdyne e sua esposa Mourna receberiam a informação pouco depois de que Samy era um dos três terroristas do Bataclan.

Na noite de 13 de novembro de 2015, em Paris, em 33 minutos acontece o inferno. Sete terroristas que se declaram membros do Estado Islâmico atacam três lugares diferentes da capital francesa. Às 21h20 ocorreu um ataque suicida diante do Stade de France. O barulho da detonação chegou dentro do estádio onde a seleção francesa encontrava a seleção alemã. Alguns jogadores ficaram surpresos pelo estrondo, levantaram a cabeça, mas o jogo não parou. O Presidente da República, François Hollande, deixou o estádio pouco depois da detonação. Foi informado dos acontecimentos e acompanhou a unidade de crise.

Pouco depois, às 21h25, outros três terroristas atacaram com metralhadoras em um outro bairro de Paris disparando nas pessoas que estavam sentadas nos cafés da Rue de la Fontaine-au-Roy. Em seguida foram até a Rue de Charonne às 21h36 e continuaram o massacre. Os pedestres ficaram encurralados.

Em seguida, o terceiro comando entra em ação no Bataclan onde 1.500 pessoas assistiam um show. Três homens armados entraram no local e atiraram nas pessoas indiscriminadamente. As cenas são indescritíveis.

Estes três ataques simultâneos causaram a morte de 130 pessoas e 350 feridos. Abalaram todo o país e mudaram para sempre a vida de Georges e Azdyne, cujo filho Samy, naquela noite foi morto pela polícia junto com outros seis terroristas.

Samy foi ‘treinado’ na Síria. Tinha se unido ao grupo jihadista Daesh. Azdyne, que condena firmemente o fundamentalismo, fizera uma viagem até lá para tentar convencê-lo a mudar de ideia. Mas sem resultado. Hoje sofre de sentimento de culpa : ‘O que fiz para que meu filho agisse deste modo?’ Vivia perseguido por esta pergunta, junto com muitas outras. Frequentava grupos de discussão de famílias de jihadistas que como ele, tinha filhos na Síria e não entendiam. Se por um lado esta participação o ajudava, por outro falta algo para aceitar o luto. Azdyne não conseguia se conformar.

 A emoção em frente ao Bataclan, alguns dias depois
A emoção em frente ao Bataclan, alguns dias depois

Depois dos atentados, Georges criou uma associação de famílias de vítimas e de sobreviventes. Por um certo período assumiu a presidência da associação que tem como nome ‘13 de novembro : Fraternidade e Verdade’. Os jornalistas o conheciam e seu nome circulava em várias entrevistas devido à midiática e desesperada busca pela filha e se tornou uma das principais personalidades na luta pelos direitos das vítimas dos ataques. Georges também estava de luto, a associação e o livro que escreveu logo depois dos ataques ‘O indizível de A a Z’ servia como terapia para ajudá-lo a superar o impossível. Não se refugiou na oração, não acreditava em nada. Não tinha sentimento de ódio, raiva ou vingança. Não entendia ‘o absurdo’.

Azdyne precisava ir além para superar o ‘seu’ impossível. Os grupos de discussão que frequentava não lhe oferecia plenamente o que buscava, não conseguia aprofundar a questão e sentia necessidade de saber o que acontecia do outro lado.

O outro lado são as famílias das vítimas. Através de terceiros, Azdyne propõe um encontro com Georges. Estamos no início de 2017, pouco mais de um ano depois dos atentados.

Georges recebeu um telefonema com o pedido de Azdyne. Ficou surpreso, um pouco desestabilizado com o pedido. Por que o pai de um terrorista do Bataclan queria encontrá-lo? Ele estaria disposto a encontrar o pai do jovem que poderia ser o assassino de sua filha?

Não recusou o encontro. Georges pensou que, no fundo, este homem que queria encontrá-lo também é uma vítima, um pai que perdeu seu filho. Concluiu que Samy, o terrorista, também é uma vítima; uma vítima de ideias absurdas que ele e outros fundamentalistas propagam, estimuladas por manipuladores. Naturalmente, Georges foi informado no momento do pedido, que Azdyne não compartilha com nenhuma das ideias fundamentalistas dos que instrumentalizam a sua religião. Assim aceitou o encontro e com uma amiga que faz parte da associação de vítimas foi a um café na Praça da Bastilha, no centro de Paris.

 A lápide comemorativa com o nome das vítimas. Na penúltima linha, à esquerda, o nome de Lola, a filha de Georges
A lápide comemorativa com o nome das vítimas. Na penúltima linha, à esquerda, o nome de Lola, a filha de Georges

Quando Azdyne chegou, Georges levantou-se bastante tenso. Assim como Azdyne que de algum modo acreditava que Georges era mais corajoso do que ele em aceitar o encontro. ‘Já tinha perdido tudo’, diz Azdyne. ‘Estava do lado errado da história’, prossegue. ‘Aceitando de me encontrar, George tinha muito mais a perder do que eu’, acrescenta. ‘É um homem conhecido na mídia, presidente de uma associação de vítimas que está presente com frequência na rádio e na televisão e portanto o que as pessoas pensarão dele ao vê-lo se encontrar com o pai de um terrorista?’. Por outro lado, Georges fez-se a mesma pergunta. Antes, falou sobre este encontro com o grupo da sua associação antes de aceitá-lo. A ideia foi acolhida muito bem, mas na realidade não foi sempre assim.

Foi-lhe pedido muitas vezes para explicar o seu gesto. Algumas vezes renunciou a explicação aos que não queriam entendê-lo. Georges não insiste muito nestas circunstâncias, intui que as feridas ainda estão abertas e são dolorosas e que cada um segue seu próprio caminho para se reconstruir. O caminho de Georges, como o de Azdyne, passa por este café da Praça da Bastilha.

A mão de Azdyne estende-se a Georges, na manhã de fevereiro de 2017. As duas mãos se encontram e se cumprimentam. Sentam-se e se apresentam. A conversa, tímida no início, logo assume um tom mais relaxado. ‘Azdyne é uma pessoa comovente’, diz Georges. E acrescenta : ‘cativante’. Falam de suas vidas, de suas famílias e naturalmente falam de Lola e Samy, mesmo sendo doloroso para os dois homens. ‘Foi a minha primeira terapia’, disse Azdyne. ‘Não fui a nenhum psicólogo depois do atentado. Foi-me proposto, mas não faz parte de mim. Queria superar a minha tragédia sozinho’. O encontro com Georges permitiu-lhe concluir um círculo.

 Um dos inúmeros encontros, em um bar de Paris
Um dos inúmeros encontros, em um bar de Paris

Os dois homens encontraram-se várias vezes. A relação entre eles tornou-se amistosa. Ou num café ou restaurante, mas não na casa de um ou de outro. Mantiveram sempre uma certa distância, mesmo breve.

Quando se encontram, chegam a pensar que o atípico percurso comum possa se tornar uma mensagem. Quanto mais tempo passam juntos, conversam, se dão conta que este diálogo tem uma grande força. Ajuda a superar os sentimentos de ódio, a possível sede de vingança, as incompreensões e tudo o que em última análise leva a divisão de uma sociedade. Juntos, lançam uma mensagem exatamente oposta à dos terroristas. Com o diálogo, tudo é possível.

Para que esta mensagem pudesse chegar além dos muitos encontros , George e Azdyne decidiram escrever um livro, contar suas histórias, suas conversas, sua aproximação e suas divergências. Porque obviamente há divergências, mas não são mais fontes de divisão. Não foram superadas e provavelmente jamais o serão, mas são compreendidas e aceitas.

A decisão de publicar as conversas também é um ato político, afirma Georges Salines. ‘Se o pai de uma vítima pode falar com o pai de um terrorista, eu devo poder conversar com meu vizinho muçulmano. Essa ação e essa capacidade de ver o outro como um ser humano faz parte da promoção da resiliência. Aqueles que se dobram a um ato de vingança erram’, conclui o pai de Lola.

O título escolhido para o livro é Nos restam as palavras

 A capa do livro escrito por Azdyne Amimour e Georges Salines
A capa do livro escrito por Azdyne Amimour e Georges Salines 

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