*Artigo
de Susana Vilas Boas, LMC
‘Por
estes dias, alguém me perguntava sobre a pertinência de escrever sobre a
vocação. «Não é sempre a mesma coisa?» «Não se sabe já que cada
pessoa tem uma vocação específica e que só a realizando se alcança a verdadeira
felicidade?» Estas eram as perguntas fundamentais que iam sendo repetidas
ao longo do diálogo. Estas são também as perguntas que, muitas vezes, levam a
fugir da questão fundamental sobre a vocação – a questão que é dirigida a cada
um de nós. Isto é, a interpelação vocacional que devemos discernir e à qual
temos de dar resposta no concreto (não apenas por meio de teorizações).
Existe
um aspecto comum a toda a vocação. Como afirma o Papa Francisco, ela é «uma
prenda de Deus». Ora, quando oferecemos uma prenda a um verdadeiro amigo,
não procuramos dar-lhe algo de que nós gostamos, mas algo que realmente fará o
nosso amigo feliz. Esta é a forma como Deus nos presenteia. Afirma o papa que
Deus te oferece «um carisma que te fará viver plenamente a tua vida
transformando-te numa pessoa útil aos outros, em alguém que deixa uma marca
na História, será certamente algo que te deixará feliz no mais íntimo de ti
mesmo e te entusiasmará mais do que qualquer outra coisa neste mundo» (Cristo
Vive, n.º 288). Contudo, embora esta seja a essência de toda a vocação, não
podemos afirmar que ela «é sempre a mesma coisa». Por quê? Porque nós
também não somos sempre a mesma coisa!
A
vocação não é um superpoder recebido que nos transforma em algo diferente
daquilo que somos. A vocação é antes reveladora da nossa
autenticidade, daquilo que verdadeiramente somos. Por isso, desde o início do
chamamento – desde a entrega do dom – Deus vai procurando diferentes modos de
nos fazer chegar a ele e de o recebermos. Por exemplo, pensemos no momento de
dar uma prenda a alguém. Para algumas pessoas, o surpreendente será mesmo
entregar-lhe o presente em mãos. Mas, tratando-se de um presente valioso que
pensamos que o nosso amigo se sentirá plenamente feliz ao recebê-lo (e quase ‘sem
jeito’ perante tão grandiosa dádiva), para maior surpresa e para evitar
constrangimentos, podemos deixar o presente em algum sítio, de modo que o nosso
amigo o vá descobrir sozinho. Podemos, ainda, fazer uma espécie de caça ao
tesouro para um crescente de expectativa e maior satisfação no encontro. Muitas
são as formas de dar um presente e Deus, porque nos conhece bem, sabe qual nos
tornará mais felizes e mais capazes de acolher/receber o dom oferecido.
Escuta e
acompanhamento
São
muitas as linguagens de Deus e, consequentemente, as linguagens do discernimento
vocacional. Deus encontrou um modo de se comunicar conosco – um modo único que,
por vezes, nos incomoda – Ele comunica através das outras pessoas! Pois é...
mas, como saber quem nos poderá ajudar a discernir? Estará alguém à altura de
nos compreender verdadeiramente?
Estas
são perguntas que vamos fazendo e que vão adiando a nossa vida. De facto, se
queremos alcançar esse presente de Deus, temos de fazer alguma coisa no
tempo presente. Sabemos, no nosso íntimo, o que ‘gostaríamos de
ser’ e conhecemos pessoas que trilharam um caminho algo similar ao nosso e
que estão hoje plenamente realizadas e a viver a sua vocação. No entanto,
custa-nos arriscar um diálogo e um caminho de acompanhamento. Não porque
duvidamos que Deus possa falar-nos através dessa pessoa, mas porque temos medo
de ouvir o que não queremos! Enquanto for o medo a comandar a nossa vida, nem o
que somos verdadeiramente se realizará nem Deus terá hipótese de agir.
Deixai-me
dar-vos um exemplo pessoal muito prático. Quando estou a realizar as minhas
investigações acadêmicas para algum trabalho, uma das primeiras coisas que faço
é procurar falar com alguém sobre o tema que estou a trabalhar. Primeiro,
escolho falar com alguém credível, com mais conhecimentos do que eu sobre o
assunto e que, mais ou menos, sei que tem uma linha de pensamento similar à
minha. Porém, depois lanço-me no diálogo com alguém que pensa de um modo bem
diferente do meu. Neste diálogo sou confrontada com as fraquezas dos meus
argumentos e, ao tentar responder às questões formuladas, vou descobrindo o meu
próprio caminho, o meu modo de abordar e pensar determinado assunto. No final,
sou capaz de produzir algo que não é o pensamento de nenhuma das pessoas com
quem falei, mas algo meu, algo que resulta de um caminho/discernimento pessoal.
De
modo similar, com a escuta e o acompanhamento vocacional, vivemos acompanhados
por alguém credível que, no seu exercício de acompanhamento, nos vai
confrontando e pondo à prova. Não porque nos quer tramar, mas porque nos quer
levar a um caminho autêntico – um caminho onde a vocação não é um capricho, mas
é o resultado deste encontro entre nós e Deus.
Discernir o ponto de
encontro entre o meu sonho e o sonho de Deus
Às
vezes estamos tão autocentrados e tão obcecados por uma ideia, que ficamos
cegos perante nós mesmos e a realidade que nos envolve! Às vezes, o que
sonhamos para nós não é assim tão distante do nosso caminho vocacional, mas o
fato de caminharmos sozinhos leva-nos a olhar esse caminho de modo enviesado e,
pouco a pouco, de modo egoísta e caprichoso. Deus surpreende sempre! Não
devemos, por isso mesmo, negar-nos a viver e a descobrir a surpresa de Deus.
Nós olhamos o presente, muitas vezes, cinzento, e o futuro torna-se algo
difícil marcado apenas pelo preto e branco ou, então, apesar do cinzento de
hoje, vivemos a ilusão de um futuro cor-de-rosa... Deus deu-nos o arco-íris.
N’Ele, o presente ganha novas cores e o futuro em Deus nunca tem apenas uma
tonalidade!
Deus
não rejeita os nossos sonhos, antes, eleva-os a uma plenitude que não podemos
sequer pensar ou imaginar (Ef 3,20). O sonho de Deus para nós
não vai ao encontro dos nossos caprichos, mas está sempre de acordo com a
autenticidade do nosso ser. Ele não responde ao que queremos, mas ao que somos
e queremos ser. Ele não está à altura do que desejamos, antes, leva-nos sempre
mais longe.
‘Sair da rotunda’
O
medo bloqueia-nos, deixa-nos à deriva, impede-nos de avançar. O medo esconde-se
na ilusão do não ter medo, arranjando desculpas para a nossa inação.
Facilmente, apesar de jovens, tornamo-nos velhos resignados perante as
circunstâncias da vida. O nosso discurso sobre a vocação fica reduzido a um
eterno lamuriar : «Eu queria... mas...» Em Deus tudo é possível (Fil
4,13)! N’Ele não há ‘mas’! A realidade é aquela que é, com as suas
dificuldades e desafios. Mas, como já vimos, não temos de vencer os obstáculos
sozinhos! Estamos acompanhados também na procura de soluções para as quais não
temos respostas por nós mesmos. Não será o nosso medo egoísta que nos impede de
avançar? Não será o nosso medo de arriscar a felicidade que nos impede de sair
da rotunda do ‘eu queria..., mas...’? Não será o nosso medo de não
sermos super-heróis que nos leva a não pedir ajuda?
Fica
o apelo de Francisco : «Amigos, não espereis pelo dia de amanhã para
colaborar na transformação do mundo com a vossa energia, audácia e
criatividade. A vossa vida não é ‘entretanto’; vós sois o agora de Deus»
(Cristo Vive, n.º 178).’
Fonte
:
* Artigo na íntegra https://www.combonianos.pt/alem-mar/artigos/8/240/as-linguagens-do-discernimento/
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