*Artigo
de Élio Gasda,
teólogo
‘O
cristianismo surgiu do mistério de um Deus encarnado, traído, torturado e
crucificado. Jesus também viveu tempos sombrios. Cristo é o evento divino mais
impactante da história. A nomeação de Deus como Pai-Filho-Espírito é fruto da
experiência de Cristo crucificado-ressuscitado de uma comunidade de fé. Ser
cristão é seguir Alguém que esteve cheio do ‘Espírito Santo de Deus’. É
deixar-se conduzir pelo mesmo Espírito que movia Jesus.
A
pessoa de Jesus Cristo é o eixo da experiência cristã de Deus. Dinamiza e dá
sentido às ações, desperta e alimenta as convicções. A chave de compreensão da
ética de Jesus deve ser buscada na categoria Reino de Deus : ‘Buscai em
primeiro lugar o Reino e a sua justiça’ (Mt 6,33). O Reino não é abstração
ou puramente celestial, mas uma realidade oposta aos mecanismos, sistemas e
estruturas históricas desumanas. Os assuntos do Reino somente podem ser
abordados a partir da realidade humana. A ética de Jesus exige apaixonar-se
pelo Reino. As paixões significam um impulso de vida diante daquilo que nos
atrai ou nos repulsa. Os apaixonados desassossegam, contagiam, criam conflitos,
porque a paixão não conhece limites.
‘Deus
é amor’ (1Jo 4, 8). Conhecemos o amor de Deus na Sagrada Escritura.
Primeiro na criação. Depois em Jesus, nossa experiência do amor de Deus.
Crescido em Nazaré, no ambiente humilde e entre os simples, amadureceu na paixão
pelo Pai e pelo povo, compartilhando suas alegrias, suas dores, suas
esperanças. Jesus é vulnerável ao sofrimento do outro, ‘comove-se’,
transgrede regras sagradas por compaixão. Ele não tem vergonha de chorar,
consola quem chora, contagia com suas palavras. Mas Jesus também se comove em
indignação, sobretudo diante da injustiça e da hipocrisia. A ira é a energia
que coloca em palavras e gestos para vencer a dureza e a mediocridade. É cólera
divina que defende os interesses do Pai.
No
Reino do Pai, o outro é critério maior do ser e do agir de Jesus. Jesus não
apenas percebe a presença do próximo e capta suas necessidades, mas coloca-se
no seu lugar. Ele percebe o outro na plenitude de sua dignidade, dos seus
direitos e de suas diferenças. Seu Jesus se expressa no poder-serviço : ‘... o
Filho do Homem não veio para ser servido, mas para servir e dar sua vida pelo
resgate de muitos’ (Mt 20,28).
O
ato de curar em dia de sábado foi o estopim do complô para matá-lo (Mc 3,6).
Para Jesus, nenhuma instituição milenar é mais valiosa que a dignidade de uma
só pessoa. O filósofo Kant dizia que a decisão ética é fruto de uma resposta à
pergunta : Que devo fazer em uma situação concreta? Ou : Quem eu quero ser a
partir desta decisão? Há momentos em que a pessoa tem a oportunidade de tomar
uma decisão que revela todo seu caráter e compromete toda a existência. São
gestos de enorme densidade humana, a pessoa se revela totalmente diante do
apelo do rosto sofrido do outro. A atitude de Jesus surpreende, provoca,
escandaliza. Mas a ética somente poder nascer deste face-a-face com o outro que
me afeta, inquieta e exige uma palavra que ninguém pode dar em meu lugar.
O
rosto é a prova da existência divina do Outro absoluto. O outro vem ‘do alto’
porque transcende minha compreensão. Nisto se anuncia sua dignidade divina.
Jesus, tocado pela paixão, pela dor do povo, passa da compaixão à sua própria
paixão e sofrimentos de toda ordem, e termina por sentir na sua carne a dor
mais cruel. Jesus viveu radicalmente sua humanidade e revelou sua filiação
divina. Era coerente entre o que dizia e o que fazia. Sendo para o Pai, podia
ser para os outros. Ele se contrapôs à lógica das instituições ao colocar os
discriminados e os pobres em primeiro lugar, ao anunciar a salvação aos
pecadores, devolver a saúde aos enfermos, dar de comer aos famintos, defender
as mulheres e as crianças.
Dedicou
sua vida combatendo as forças da morte, as injustiças, a fome, a violência.
Tendo como único critério o amor ao próximo, era profundamente livre diante da
lei, das autoridades, da religião e dos costumes. Sendo para o Pai, podia ser
para os outros. As pessoas vêm primeiro. A morte foi consequência da sua
maneira de viver. Não se enquadrava na ordem. Era um subversivo (Lc 23,2), um
perigo real aos poderosos.
Ser
cristão é ser um novo Cristo, ter a mesma compaixão de Jesus, deixar-se tocar
pela dor e pelo amor que moveram o coração de Jesus. Quem é incapaz de sofrer
também é incapaz de amar. O coração de Deus está voltado para os abandonados.
Sua cruz está presente em cada uma das cruzes suportadas diariamente pelos
rejeitados. Todos os dramas e tragédias humanas giram em
torno da cruz de Cristo. A cruz é o símbolo maior do protesto de Deus contra estruturas sociais
baseadas na violência. Quando um cristão relativiza o sofrimento do irmão, já
deixou de ser cristão.’
Fonte
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